VALMIRA RODRIGUES SODRÉ [2]

-Severino, retirante,Sou de Nazaré da Mata Mas tanto lá como aqui Jamais me fiaram nada: A vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.

(NETO, João Cabral de Melo. Morte e vida Severina, parte XII)

A poesia cabralina leva toda a geração seguinte a um empasse: os poetas vão ter que literalmente quebrar pedra, rachar as palavras para exercer o seu ofício. (LIMA, Carlos. 100 anos de poesia: um panorama da poesia no século XX. P. 78).

Segundo Jean-Paul Sartre em seu livro "Que é a literatura?" comenta que a literatura dependendo da forma como for exposta pode engajar-se ou não. Na sua opinião apenas a prosa teria o compromisso com o engajamento social.

Discordamos dessa teoria de Sartre, pois a poesia sempre teve suporte para idéias políticas e sociais, tendo engajamento ou não. Comprovaremos por meio do poema Morte e vida Severina, parte XII, que as concepções sobre a existência do engajamento de poesia existiram e existe, ou seja, Sartre se enganou a respeito do assunto. Comprovaremos com o fragmento do poema supracitado.

­­­­- Seu José, mestre carpina,

para cobrir corpo de homem

não é preciso muita água:

basta que chega ao abdome,

basta que tenha fundura

igual a de sua fome.

O poeta se distancia da visão distorcida de Jean-Paul Sartre sobre o fato de somente a prosa ser comprometida com o engajamento social. Fica evidente com este fragmento que a percepção de João Cabral a respeito dos problemas sociais é de estreita preocupação com as questões relacionadas à realidade e as dificuldades de sobreviver com pouca dignidade. No fragmento constatamos que o poeta pernambucano descreve a situação de miséria que muitas pessoas estão submetidas, comprovando que a poesia também se compromete com o engajamento e com os assuntos sociais.

E para refoçar ainda mais estes argumentos, citaremos Carlos Lima, o crítico afirma o seguinte:

"(...) e pode-se dizer que toda poesia é sempre política. Pois forma no leitor, no ouvinte, no espectador, ainda que de forma indelével, um nova consciência do sensível, criando palavras que sejam a expressão desta sensibilidade que correspondam a novas formas d percepção da realidade. ((LIMA, Carlos. 100 anos de poesia: um panorama da poesia no século XX. p.76)

Com base na desmistificação da afirmativa de Jean-Paul Sartre e no comentário de Carlos Lima, seguimos o nosso estudo, atentando para o momento histórico entre 1930 a 1945. Um período rico na produção poética e também na prosa, no qual o universo temático se amplia e os artistas passam a preocupar-se com o destino dos homens e com o estar no mundo. Entre estes poetas modernistas encontra-se João Cabral de Melo Neto, um poeta de importância impar dentro da literatura brasileira. Formando ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira a tríade máxima da poesia brasileira do século XX. Uma geração que, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelas quais se consideravam responsáveis, deu a época uma produção literária excepcional.

Surgido paralelamente à geração de 45, João Cabral de Melo Neto tornou-se referência no quadro da poesia brasileira, principalmente em virtude de vim criando e mantendo uma postura absolutamente pessoal, seja pela quantidade e pela densidade da obra, seja pela depuração de palavras, que constitui uma de suas qualidades mais evidentes. .

A poesia dramática não foi (é) muito cultivada na Literatura Brasileira. Porém, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) cultivou esse tipo de poesia, em pelo menos dois poemas, a saber, Morte e vida severina (1956), ou Auto de Natal pernambucano, e Auto do frade (1984), muito provavelmente influenciado pelos autores espanhóis que ele leu quando de sua estada como diplomata na Espanha. Este ensaio tem como objetivo estudar o primeiro desses poemas, considerando nele dois aspectos: primeiro, a sua natureza híbrida (Literatura e Teatro), especificamente o caso do AUTO; segundo, a relação que se estabelece entre essa forma ou gênero e o engajamento político-social do poeta. Para a elaboração deste ensaio, recorreu-se aos seguintes críticos e historiadores: Alcides Villaça (2003), Alfredo Bosi (1994), Carlos Lima (2001),Luiz Costa Lima (1995), Georg Lukács (1978), Jean-Paul Sartre (2004), Péricles Eugênio da Silva Ramos (2001) e Massaud Moisés (2003).

Morte e vida Severina obra mais popular de João Cabral é um Auto de Natal do folclore pernambucano. Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparece no titulo: "Morte" e "vida", no primeiro movimento há o trajeto de Severino personagem protagonista, que segue do sertão para Recife em face da opressão econômica e social, Severino tem a força coletiva de um personagem típico, representa o retirante nordestino. Já no segundo movimento, o da "vida", o autor chama a atenção para a confiança no homem e em sua capacidade de resolver problemas.

O olhar é o principal meio de um poeta captar a realidade que circunda. Esse mesmo olhar capta também a eterna novidade das coisas. Para João Cabral de Melo Neto o fazer poético atinge-se através da lógica, do raciocínio, da razão, eliminando-se emoções superficiais, é uma ruptura total com o sentimentalismo, sua poesia reflete os problemas do mundo e do ser humano.

A obra denota objetividade no que tange a crua e cruel realidade nordestina, desenvolvendo-se em alguns casos em direção ao que extrapola o real, o surrealismo.

No nível temático, o escritor revela grande preocupação com sua gente: os nordestinos retirantes. Severino é um homem sofredor, ele insiste, ele se retira. Além disso, o nome Severino é comum entre os nordestinos, motivo que levou o autor a explorá-lo como adjetivo referindo-se à vida do nordestino, do retirante (a morte é severina, a vida é severina), simbolizando o sofrimento em vida e morte dos severinos.

De modo muito particular o poeta revela preocupação com seu estado natal, Pernambuco, especialmente Recife, sua cidade. Ele menciona os mocambos, os cemitérios e o Rio Capibaribe, que aparece personificado.

Fica evidente para o leitor que a percepção de João Cabral de Melo Neto a respeito da sociedade de sua época fez dele um poeta engajadíssimo, motivo que levou alguns críticos literários a considerar o poeta como um cânone da literatura brasileira, como afirma Alfredo Bosi em seu livro História concisa da literatura brasileira, a saber:

Acentua em Cabral a tendência d apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivencia nordestina. Morte e vida Severina, "auto de Natal pernambucano", o seu poema longo mais equilibrado entre rigor formal e temática participante.(BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. p. 471)

A temática do poema merece sérias considerações. Se fizermos ligações com a Idade Média, o que é perfeitamente cabível, iremos perceber o contexto do feudalismo, a resignação do povo que eram fiéis às imposições clericais devido ao teocentrismo.

Se observarmos o percurso histórico da humanidade, percebemos que a posse da terra sempre marcou forte cobiça e ambição humanas. Se relacionarmos com o presente, iremos destacar "os sem terra", as injustiças com a divisão dos latifúndios, o problema da reforma agrária.

O poema dramático Morte e vida severina pode assim ser conceituado por se tratar de um texto poético em forma de auto. O poema, escrito com as características de uma peça teatral, é para ser dramatizado, visto que a historia é contada não por um narrador e sim pelos personagens, que relatam a narrativa por meio de diálogos.

É importante ressaltar que outra questão relevante em Morte e vida Severina tem a ver com o subtítulo Auto de Natal pernambucano, pois é um poema dramático. Percebe-se que a historia é apresentada através de quadros e cenas, portanto corresponde a um poema híbrido (literatura e teatro), com isso podemos classificar como Poema porque é escrito em forma de verso; e é dramático porque sua apresentação se dá através de quadros, com a palavra escrita, sem a qual o teatro é quase impossível.

Portanto, trata-se de um texto destinado a representação, já que é a imitação da realidade por meio de personagens em ação e não pela forma narrativa. A relação do texto com o publico não se dá através da leitura e sim através da mediação de atores que transformam a composição escrita em ação dialogada.

O poema dramático Morte e vida severina adquire vida ao se corporificar numa encenação, os atores emprestam ao texto – composto basicamente por diálogos – sua presença física, seus gestos, seu olhar e sua voz, comunicando ao publico os personagens que estão representando.

Em Morte e vida Severina, que pode ser considerado tanto poesia quanto auto, percebemos de forma marcante a criação híbrida do poeta pernambucano. Ao narrar a trajetória de Severino e os acontecimentos que ele vivencia, o poeta descreve a narrativa em versos, em geral versos heptassílabos formados pela falas do personagem Severino entre outros. É a poesia e o teatro aliados e juntos em uma obra-prima criada para representar, denunciar e encantar com a arte refinada e concisa do seu criador.

João Cabral de Melo Neto ao abordar a situação de miséria e abandono em que vivem os habitantes de algumas áreas do sertão nordestino faz uso de palavras próximas do cotidiano e da realidade das populações das zonas rurais do nordeste. Ao denunciar os problemas que obrigam estas pessoas a abandonarem suas terras e partir para as cidades em busca de melhores condições de vida, o poeta descreve a seca e as suas conseqüências, utiliza figuras de linguagem, principalmente a metáfora, para comparar e assimilar características semelhantes entre os elementos, tornando mais fácil e acessível a compreensão do texto, como no fragmento abaixo:


Severino, retirante,o meu amigo é bem moço,sei que a miséria é mar largo,não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-lavale bem qualquer esforço.
(idem, ibidem,p.223)


No estrofe presente acima, no 6º verso, há o predomínio da figura de linguagem , neste caso a metáfora, no verso "Sei que a miséria é mar largo", constatamos que o poeta faz uso da metáfora para comparar a miséria com o mar largo, para evidenciar aspectos semelhantes entre os dois temas, como: a extensão e a profundidade.


Com uma linguagem clara e precisa, o poeta transmiti a mensagem direta e objetivamente. Na parte XII do poema, objeto de analise desta pesquisa, o diálogo entre o retirante e o morador de um dos mocambos, percebemos na fala de Severino uma permanente insistência no tema da fome e da miséria.


E a relação que se estabelece entre estes assuntos e as palavras selecionadas, como: o rio, a maré, a ponte, o mar, o poço, entre outros, deixa mais patente no plano da expressão, quanto no plano de enunciado o engajamento político e social do poeta.


Na construção do texto o poeta vai fazendo associações entre as palavras, construindo imagens e sentidos figurados para as mesmas. A escolha de uma linguagem especifica, inteiramente relacionadas aos temas abordados, faz com que a mensagem atinja o leitor, o povo. Demonstrando assim, a precariedade e a sub-vida dos retirantes.


Neste ensaio estudamos o poema Morte e vida severina enquanto poema e enquanto peça teatral pela sua natureza híbrida. Abordamos alguns dados a respeito do autor e de seu estilo especifico de fazer poesia, que com pouco diz muito. Fizemos uma breve abordagem do contexto histórico e da geração a que pertencia João Cabral de Melo Neto.


Analisamos o poema, especificamente a parte XII, discutindo sobre os principais pontos observados na obra, tanto no plano do conteúdo quanto no plano da expressão, além de analisar como surge no poema dramático cabralino a denuncia política e social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. "João Cabral de Melo", In Historia concisa da literatura brasileira. 41ª edição. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 469-472.

LIMA, Carlos. "Quem tem medo de poesia política?" In:100 anos de poesia, um panorama da poesia brasileira no século XX. RODRIGUES, Claufe, MAIA, Alessandra (orgs)Rio de Janeiro: O verbo edições, V. II, 2001,p. 76-81.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p.265-273.

SILVA RAMOS,Péricles Eugenio da. "João Cabral de Melo" In A litearatura no Brasil. COUTINHO, Afrânio (dir.) 6ª ED. São Paulo: Global, 2001, V.5, p. 202-206.



[1] ENSAIO apresentado ao Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina CÂNONES E CONTEXTOS NA LITERATURA BRASILEIRA do Curso de Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia- UNEB, campus XXI, como requisito para complementação de nota.

[2] Acadêmica do 4° Semestre, Vespertino