A PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL: a questão da utilização de animais no ensino e na pesquisa científica.

 

Mariana Nogueira dos Santos Cerqueira ¹                                                                          

SUMÁRIO: Introdução; 1 Princípios gerais da pesquisa científica em animais; 2 Aspectos éticos relativos ao manejo de animais na experimentação;  2.1 Pontos de vista da vivissecção; 3 Regulamentação Governamental; Conclusão; Referências.

RESUMO

A comunidade científica brasileira requer uma sistematização definitiva por meio de uma norma federal abrangente e realista onde a questão da pesquisa científica em animais possa ser mais bem contemplada. O presente trabalho busca estudar as mudanças decorrentes do comportamento social em relação aos animais, tendo em vista a grande discussão à sua utilização no ensino e na pesquisa científica. Desde as mais remotas informações acerca da utilização de animais para experimentação, encontram-se relatos de opiniões favoráveis e contrárias que serão analisadas. Ao longo deste, descreveremos a situação em que se encontra a regulamentação para o uso de animais em treinamento e pesquisas de acordo com a legislação existente em nosso país.

Palavras-chave: Experimentação animal; Pesquisa científica; Regulamentação Governamental; Vivissecção;

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  1. Aluna do 1º período de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

INTRODUÇÃO

           

            Há centenas de anos atrás formou-se uma discussão das diferenças entre homens e animais. Pitágoras (582-500 a. C.) acreditava na metempsicose, uma crença que abrangia a possibilidade de reencarnação da alma humana em animais ou vegetal. Portanto, segundo sua visão era um dever a amabilidade para com todas as criaturas.

            As investigações na área da saúde são realizadas desde a antiguidade, provavelmente iniciadas com os estudos de Hipócrates (450 a. C.), que relacionava órgãos dos seres humanos doentes com os órgãos animais com fins didáticos. Os anatomistas deste período já realizavam vivissecções com objetivos experimentais.

            A primeira pesquisa científica com animais foi realizada por William Harvey, autor do livro Exercitatio anatômica de motu cordis et sanguinis in animalibus, no qual apresenta resultados de experiências a respeito da circulação sanguínea realizadas em mais de oitenta espécies animais.

            No século XVII, René Descartes (1596-1650 d. C.) acreditava que os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da alma, para ele, os animais não possuíam alma e não haveria a possibilidade de sentirem dor.

            Charles Darwin, em 1859, estabeleceu vínculos entre as espécies animais no processo evolutivo, sua teoria possibilitou a extrapolação dos dados obtidos em pesquisas com modelos animais para seres humanos.

            O fisiologista Claude Bernard (1865) , em seu livro An Introduction to the Study of Experimental Medicine, justificava a utilização de animais em pesquisas, alegando que:

Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e absolutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros, para comida e proibir o seu uso para a instrução em uma das ciências mais úteis para a humanidade.  Nenhuma hesitação é possível; a ciência da vida pode ser estabelecida somente através de experimentos, e nós podemos salvar seres vivos da morte somente após sacrificar outros. Experimentos devem ser feitos tanto no homem quanto nos animais. Penso que os médicos já fazem muitos experimentos perigosos no homem, antes de estudá-los cuidadosamente nos animais. Eu não admito que seja moral testar remédios mais ou menos perigosos ou ativos em pacientes em hospitais, sem primeiro experimentá-los em cães; eu provarei, a seguir, que os resultados obtidos em animais podem ser todos conclusivos para o homem quando nós sabemos como experimentar adequadamente.

           

            Ocorreu um grande episódio em 1860 que gerou limites à utilização de animais em ensino e na pesquisa científica: o fisiologista Claude Bernard usou o cachorro de sua filha para dar aulas aos seus alunos. Em resposta a esse ato, sua esposa fundou a primeira associação de defesa dos animais. O fisiologista deixou-nos várias teses de excelente qualidade, que diz-nos que a postura do cientista deve ser indiferente em relação ao sofrimento dos animais em laboratórios.

  1. 1.      PRINCÍPIOS GERAIS DA PESQUISA CIENTÍFICA EM ANIMAIS

            A utilização de animais no ensino e na pesquisa científica deve ser orientado por alguns princípios visto que os animais também tem sua importância, pois existem propostas que são totalmente inadequadas do ponto de vista metodológico, moral e ético, devendo ser impedidas sua realização. Isto valida a nova postura da ciência, que segundo o pesquisador Morin (2008) : “não há lugar para a ciência sem consciência, devido a complexidade de toda a realidade que nos rodeia”.

            O conflito entre seres humanos e animais deve ser evitado sempre que possível, devemos estabelecer estratégias para minimizar este embate, não negando sua existência. O pesquisador tem consciência de que o único meio de se testar novas experiências é através de animais, não havendo outros métodos alternativos, então deve-se estabelecer clareza ao demonstrar que a pesquisa é indispensável quando é essencial para que a hipótese seja comprovada ou refutada e principalmente quando pode contribuir para um novo conhecimento a ser descoberto.

            A pesquisa pode ser considerada imperativa e requerida, imperativa é quando trata-se de uma prioridade maior para minimizar o sofrimento dos seres humanos, como exemplo são as pesquisas das doenças que mais matam: AIDS, câncer, entre outras doenças graves. É requerida quando há decisão legal, como testes de novas drogas e de toxidade de substâncias ilícitas.

            Portanto, as pesquisas em animais devem haver diretrizes mínimas: definição de objetivos legítimos, a imposição de limites à dor e ao sofrimento, a fiscalização de instalações e procedimentos, a garantia de tratamento humanitário e a responsabilização pública.

2 ASPECTOS ÉTICOS RELATIVOS AO MANEJO DE ANIMAIS NA EXPERIMENTAÇÃO

           

            Os aspectos morais sempre foram questionados, vários filósofos dedicaram-se a este tema, nunca havendo consenso quanto à posição que os animais ocupam em relação aos seres humanos.Michel Montaigne (1533-1595) vê os seres humanos iguais aos animais e criticava a pretensão deste em querer julgar os animais. Ao contrário de indicar as diferenças existentes entre homens e animais, Montaigne discorreu sobre as semelhanças existentes entre ambos, como por exemplo quando compara os gestos empreendidos pelos animais para comunicarem-se entre si aos gestos empregados pelas crianças para suprir a palavra que lhes falta. Ele acreditava que raciocínios e atos dos seres humanos acompanham atos dos animais.

            Já o filósofo francês René Descartes (1596-1650) acreditava que pensamento e sensibilidade faziam parte da alma, mas somente os homens possuíam alma racional e os animais, desprovidos de tal alma. A sua visão influenciou vários cientistas do século XVII a realizarem experimentos sem questionar o uso de animais, pois pensavam que os animais, por serem desprovidos de alma racional, não sentiriam dor. Neste período as investigações científicas assumiram um caráter mais experimental.

            O filósofo inglês Jeremy Bentham propõe:

Pode vir o dia em que o resto da criação animal adquira aqueles direitos que nunca lhe deviam ter sido tirados, se não fosse por tirania. Os franceses já descobriram que a cor preta da pele não constitui motivo algum pelo qual o ser humano possa ser entregue, sem recuperação, ao capricho do verdugo. Pode chegar o dia em que se reconhecerá que o número de pernas, a pele peluda, ou a extremidade de os sacrum constituem razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Que outro fator poderia demarcar a linha divisória que distingue os homens de outros animais? Seria a faculdade de raciocinar, ou talvez a de falar? Todavia, um cavalo ou um cão adulto é incomparavelmente mais racional e mais social e educado que um bebê de um dia, ou de uma semana, ou mesmo de um mês. Entretanto, suponhamos que o caso fosse outro: mesmo nessa hipótese, que se demonstraria com isso? O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?

            Suas considerações levam-nos a questões de ordem ética relativas ao sofrimento dos animais em experimentos científicos. Charles Darwin em seu livro A Origem das Espécies mostra-nos semelhanças entre animais e seres humanos e é justamente por isso que deve-se utilizar modelos animais para a experimentação e evolução da ciência, principalmente, em benefício do homem. Apontava também a consciência como a mais importante diferença homem-animal, porém admite que pode haver uma espécie de autoconsciência nos animais.

2.1 Pontos de vista da vivissecção

           

            Vivisseção é o ato de dissecar animais objetivando a realização de estudos anatomo-fisiológicos, é uma intervenção invasiva num organismo vivo, com fins científico-pedagógicos. Essa questão tem dividido a sociedade e os cientistas em três grupos: vivisseccionistas (defensores da vivissecção), abolicionistas e defensores dos 3 Rs.

            Os vivisseccionistas são algumas faculdades, parte da indústria de cosméticos e indústria farmacêutica, que defendem a vivissecção como forma importantíssima na cura de doenças e em pesquisas para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Os abolicionistas são a maioria dos grupos de defesa animal e pequena parte da comunidade científica, almejam o fim da utilização dos animais em testes, pesquisas e métodos acadêmicos. Suas argumentações são de cunho ético, guiados por princípios morais.

            Os defensores dos 3R's:  Replacement, Reduction and Refinament (substituição, redução e refinamento) encontram na obra de Russel e Burch seu principal fundamento. O livro The Principle of Humane Experimental Technique (Russel & Burch, 1959) foi o ponto de partida para os 3R's. Os 3R's influenciaram a legislação relativa aos animais de laboratório e constituem as linhas de orientação para a experimentação animal.

            Replace é a substituição dos animais  por outros métodos alternativos, tais como: testes in vitro, modelos matemáticos, simulações por computador, deve ser estimulada. É o estabelecimento de alternativas de modelos não-animais para a experimentação. Reduce é a redução de pesquisas científicas em animais envolvendo questões éticas e morais, de compaixão, de conservação ambiental, de natureza científica, econômica, política, social e até mesmo as requeridas legalmente. Refine consiste no refinamento das técnicas utilizadas, que tem por objetivo minimizar a dor e o sofrimento nos experimentos animais, estes procedimentos incluem cuidados de analgesia e assepsia nos períodos pré, trans e pós-operatórios.

3. REGULAMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL

No Brasil, a lei 6.638, de 08 de maio de 1979, estabeleceu as normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais: fica permitido em todo território nacional a vivissecção de animais, os biotérios e os centros de experiências e demonstrações com animais vivos deverão ser registrados em órgão competente e por ele autorizados a funcionar, não permitindo-se vivissecção sem o emprego de anestesia, em centro de pesquisas não registrados em órgãos competentes, sem a supervisão de técnicos especializados etc.

            Estas normas, nunca foram regulamentadas, estipulam somente que  estabelecimentos de terceiro grau podem realizar atividades didáticas com animais. A lei estabelece que as pesquisas devem ser realizadas sempre dentro do critério de não causar sofrimento nos animais envolvidos. Há também códigos que propõem a criação de Comissões de Ética para pesquisa em animais, a exemplo das já existentes para pesquisa em seres humanos.           

            Em 1996 foram apresentados no Brasil vários projetos de lei estabelecendo novas normas para as pesquisas com animais, sem que qualquer um deles tenha sido aprovado, até o presente momento.

CONCLUSÃO

 

            A utilização de animais em experimentos científicos remonta ao século V a.C. Porém, o seu uso intensivo foi crescente a partir dos anos 1800. Muitos avanços nos conhecimentos, especialmente na área da saúde, foram obtidos com modelos animais. É inegável o benefício que trazem as pesquisas científicas em animais para o desenvolvimento da ciência e de novas tecnologias.

            A regulamentação do uso de animais para fins científicos e didáticos é uma preocupação constante no meio acadêmico, concluímos que o uso de animais, sempre que possível, deve ser substituído por outros métodos e que é necessário o comprometimento dos pesquisadores a fim de buscarem uma realização das pesquisas visando adequá-las ao respeito à vida e à tolerância. O respeito à vida que dignifica o animal como merecedor de considerações éticas, e a tolerância que traz consigo a possibilidade de manter a realização de experimentos, desde que adequadamente justificados e planejados com o mínimo de impacto sobre a vida dos animais participantes dos experimentos.

            No Brasil, não existe norma geral sistematizadora atualizada específica referente à vivissecção e experimentação com animais, nem para fins didáticos, nem científicos. A única lei referente a esse tópico data de 1979 e não chegou a ser regulamentada. Entretanto, dois projetos de lei sobre o assunto estão tramitando no Congresso Nacional desde 1995.

            Existem algumas normas e princípios orientadores para a pesquisa em modelos animais, criadas por diversas instituições nacionais e internacionais, que podem ser utilizadas para orientar os pesquisadores. Embora muitas pessoas tenham escrito sobre o status moral dos animais ao longo de muitos anos, ainda não há, nos dias atuais, um consenso sobre a verdadeira posição que os animais ocupam em relação aos seres humanos. Torna-se imperativo adotar dispositivos lúcidos e realistas que garantam a continuação dessa utilização. A comunidade científica dispõe-se a contribuir explicitamente para esse objetivo.

REFERÊNCIAS

 

MARQUES, R.G.; MIRANDA, M.L.; CAETANO, C.E.R.; BIONDO-SIMÕES, M.L.; Rumo à regulamentação da utilização de animais no ensino e na pesquisa científica no Brasil, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-86502005000300013&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 22 set. 2010.

MARRONI, N.P.; CAPP, E. Fisiologia Prática. Canoas: ULBRA, 2001.

PETROIANU,  A. Aspectos éticos na pesquisa em animais, Minas Gerais. Disponível em: < http://www.medicina.ufmg.br/cememor/arquivos/aspectosEticosAnimais.pdf>. Acesso em: 28 set. 2010.

RAYMUNDO, M.M.; GOLDIM, J.R.; Ética da pesquisa em modelos animais, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio10v1/Artigo2.pdf>. Acesso em : 28 out. 2010

______. Aspectos históricos da pesquisa em animais, Porto Alegre. Disponível em: < http://www.ufrgs.br/bioetica/animhist.htm>. Acesso em: 28 out. 2010

Vivissecção. In: GAMBETTA, L. Enciclopédia Barsa. 5. Ed. São Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda., 2005. v. 8. P. 256-264.