A PERDA DA SUBJETIVIDADE DO HOMEM COM A VIDA NO CÁRCERE.

RESUMO: Em todo o planeta existem lugares horríveis para se viver, porém na prisão não há a escolha. Principalmente porque, devido à perda total da liberdade, o indivíduo perde a sua subjetividade.
PALAVRAS-CHAVE: Prisão. Liberdade.

Acontecia uma cerimônia de inauguração de uma fábrica de montagem de móveis instalada numa unidade prisional da Grande São Paulo, que será destinada à qualificação profissional de homens custodiados naquela instituição penal. Fui surpreendido quando um dos maiores conhecedores da prática penitenciária, com quase 40 anos de experiência, ao discursar, proferiu a seguinte frase: "o pior lugar do mundo para se viver é na prisão". 1.

Como aquilo era possível? Após cometerem delitos de todos os tipos e graus de crueldade, quando reclusos, esses homens são protegidos e mantidos pelo Estado e quem paga a conta de tudo isso é o povo. A eles são fornecidos alimentação, vestuário, atendimento médico, assistência jurídica, etc. A máxima popular é de que a única ocupação que possuem é comer e dormir.

Para alguns, o pior lugar do mundo para se viver é o Turcomenistão. O seu presidente desde 1992, um louco chamado Saparmurad Niazov, que prefere ser chamado de "Turkmenbashi", ou "o Grande", é o maior responsável por isso. Há fotos e cartazes dele espalhados por todo o país. O partido de Niazov é o único permitido, e os seus opositores são perseguidos, torturados e mortos pela polícia secreta, a KNB. Os moradores são obrigados a comunicar às autoridades a participação em casamentos e enterros. Os estrangeiros que queiram se casar com mulheres turcomenas têm de pagar 50.000 dólares ao governo. Apesar de possuir a quinta maior reserva de gás natural do mundo, um trabalhador turcomeno é obrigado a viver com o equivalente a 30 dólares por mês, em média. 2.

Para outros, a Coréia do Norte é o pior lugar do mundo para se viver. O país e governado pelo comunista Kim II Dung, o chamado "JUCHE", onde Deus não existe, só o governante. Os telefones são disponíveis somente aos oficiais de governo, os rádios são pré-ajustados à estação do governo, a TV é controlada pelo Estado e não há internet. Estima-se que, desde 1995, cerca de três milhões de pessoas morreram por causa da fome. É extremamente difícil conseguir notícias sobre a região, a Coréia do Norte está fechada ao mundo exterior, nela mandam somente os poderosos e os pobres continuam miseráveis, jogados à própria sorte. 3.

Não pude deixar de pensar nos piores lugares da Terra.
A usina da morte de Chernobyl, no Norte da Ucrânia. O local foi vítima da explosão de um reator nuclear em 1986, onde foi liberada 100 vezes mais radiação que uma bomba atômica e apenas cinco trabalhadores sobreviveram. A contaminação foi tão intensa que cidades e vilarejos foram destruídos e soterrados, mas nada adiantou, a água e o solo continuam radioativos e poderá demorar milhares de anos para se recuperar. O governo isolou uma área de cinco milhões de hectares de terras e declarou o local como inabitável. 4.

Também a cidade de Centralia, que era localizada no estado norte-americano da Pensilvânia, no Condado de Columbia. Em 1962, um acidente em uma das várias minas de carvão iniciou um incêndio no subterrâneo da cidade. O calor intenso vindo do subsolo, gases tóxicos e vários desmoronamentos ocasionaram o abandono do local. Hoje, mesmo após quase cinquenta anos do ocorrido, o fogo continua aceso. Especialistas que calcularam a quantidade aproximada de carvão disseram que não será possível apagar as chamas nos próximos quinhentos anos. 5.

Na França, sobre os Atóis de Mururoa, foram realizados 183 testes nucleares atmosféricos e subterrâneos, de 1966 a 1991. Todos esses testes poluíram o solo e as águas dessas ilhas. A poeira carregada pelo vento acabou contaminando dezenas de pessoas em ilhas vizinhas. As explorações causaram diversas fraturas no solo de basalto de Mururoa e até hoje não se sabe quais poderão ser as consequências disso. 6.

Como não pensar nos moradores de rua com seus telhados de papelão, barrigas cheias de vento e sujeitos a todos os tipos de pragas e doenças. Maltratados pelo mundo, pelo clima e até por quem deveria lhes dar proteção. São rechaçados pela sociedade e acolhidos por poucos. A rua não é morada, deveria ser utilizada só de passagem e não como hospedagem.

Mesmo repudiada por muitos, a pena de prisão continua sendo um mal necessário para a manutenção do Estado e do controle social. Com o surgimento do cárcere foi possível legitimar o poder disciplinar, principalmente por impedir a punição pela vingança que era aplicada diretamente no corpo do condenado.

Havia um excesso demasiado na forma de punir, principalmente porque estava intimamente ligado ao poder do soberano. Exemplo conhecido por todos foi a punição aplicada a Tiradentes, onde após ser cruelmente enforcado, impiedosamente, foi esquartejado e teve seus membros fincados em postes como forma de recado a toda a população de Vila Rica.

A prisão é a mais civilizada de todas as penas (PORTO, 2008). A pena de prisão é aplicada com o intento de afastar o indivíduo mal quisto pelo seio social, devido ao cometimento de um crime, e possibilitar o retorno desse indivíduo, melhorado, à sociedade.

O Estado do Rio de Janeiro acolheu a primeira prisão em terras tupiniquins. No ano de 1850, foi inaugurada a Casa de Correição da Corte, popularmente conhecida como Complexo Frei Caneca.

A prisão adotava o modelo de cela única, onde o isolamento dos reclusos visava o distanciar do crime e, com isso, criar meios para que pudesse refletir sobre os seus erros e seu futuro. FOUCAULT preceitua que a "solidão é condição primeira da submissão total". 7. Nesses termos, além da reflexão, o isolamento total facilita a aplicação de técnicas disciplinares que naquela ocasião se confundia com a idéia de adestramento. A visibilidade das celas proporcionava aos detentos a certeza de que estavam sob constante vigilância.

Com o princípio da proibição de excessos ou moderação das penas, que adveio do princípio da legalidade, passou-se a se levar em conta a sensibilidade do homem razoável, e não apenas no rigor da lei ou na periculosidade do delinquente.

Nas precisas palavras de FOUCAULT "para ser útil, a pena deve ser calculada não em função do delito, mas de possível reincidência. Visar não à ofensa passada, mas a desordem futura. Fazer de tal modo que o criminoso não possa ter vontade de recomeçar".

Atualmente, várias são as garantias que cercam o cumprimento da pena de prisão, tais como: a individualização das penas, a humanização das penas, a moderação das penas, a proporcionalidade entre a pena e o delito.

Os arquivos dão conta de que o primeiro estabelecimento prisional do Estado de São Paulo remonta a 1852, a qual era denominada de Casa de Correição. Atualmente no local é instalado o Quartel Tobias de Aguiar, regrado de histórias e "casa" do Batalhão da ROTA.
O Estado de São Paulo possui o maior complexo prisional do país, atualmente com cerca de 160.000 (cento e sessenta mil) pessoas encarceradas. O modelo foi idealizado por Ramos de Azevedo e passou a ter traços próprios, e devido a sua funcionalidade, passou a ser utilizado como modelo para outros Estados da Federação.

Segundo dados de junho de 2009, o Brasil contava com 469.546 presos custodiados, destes, 158.704 no Estado de São Paulo, ou seja, 33,8% dos encarcerados da nação. Em termos demográficos, São Paulo representa 21,6% dos habitantes do país. 8.

Entretanto, especificamente em São Paulo, mesmo com a superlotação, a alimentação é de boa qualidade, as unidades contam com assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, dentistas, médicos, profissionais da área de educação, orientação religiosa, trabalho, etc. Como também, a uma preocupação cada vez mais frequente dos órgãos fiscalizadores internos (Corregedoria e Ouvidoria) e externos (Ministérios Público, Juízo da Execução, Procuradoria, etc.), com a situação dos presídios e o tratamento recebido pelos encarcerados.

Ademais, a Carta Maior de 1988 preceitua ser o Brasil um Estado Democrático de Direito, onde os direitos e deveres devem ser amplamente respeitados e resguardados.

Anteriormente à existência da Constituição Federal, a Lei de Execução Penal de 1984, em seu artigo 3º, garantia aos encarcerados todos os direitos não atingidos pela sentença.

Como pode o cárcere ser o pior lugar do mundo? A resposta à afirmação daquele secretário começou a fazer sentido quando me recordei das sábias palavras de um inqualificável professor a respeito do princípio da liberdade. Dizia o mestre que o direito à liberdade e não à vida é o maior dos direitos e garantias individuais do cidadão. Resumidamente, sustentava o Mestre seu posicionamento citando como exemplo as guerras, onde homens e mulheres dão a vida pela liberdade. 9.

A Liberdade, a impossibilidade de ser livre é o que faz da prisão o pior lugar do mundo para se viver. Não existe a opção, só resta ao ser humano aceitar a sua reprimenda e conviver com os demais custodiados.

Apesar de Centralia, Chernobyl e os Atóis de Mururoa serem locais horríveis e atualmente inabitáveis, foi conferida aos cidadãos a opção de ficar ou ir embora.

A Coréia do Norte e o Turcomenistão são países que se aproximam de uma prisão aberta. Entretanto, quando nos seus lares, o individuo pode exercer a sua liberdade, ele pode ser ele mesmo.

Já quando de sua chegada no cárcere o prisioneiro começa a perder a sua subjetividade. Ao ingressar em um presídio brasileiro, o sentenciado é "despido de sua aparência usual". 10. Suas vestimentas, seu cabelo, seus acessórios (brincos, pulseiras, etc.), que antes o tornavam diferente dos demais, são modificados e ele passa a utilizar as roupas fornecidas pelo Estado, que é padronizada, e o seu cabelo e sua barba o formato padrão. Com isso, torna-se igual aos demais. Os materiais de higiene pessoal, alimentos, etc., são somente o necessário para a sua subsistência. Além do que, daquele dia em diante, deverá se submeter a rígidas normas disciplinares, e, no caso de descumprimento, será punido.

Segundo GOFFMAN, este processo, que é denominado de perda da subjetividade, consiste na desprogramação do indivíduo, na perda de sua identidade, de modo a torná-lo apto a um novo mecanismo de reprogramação, agora baseado em regras e enquadramento, adestramento e padronização. 11. 12.

A rotina da prisão deverá ser seguida pelo encarcerado, fazendo que este, de forma impositiva, renuncie à própria vontade e ao desejo, anulando dessa forma a sua singularidade.

Durante as 24 horas do dia estará na companhia de pessoas estranhas. O banheiro, a alimentação, as suas vestes e tudo o mais será compartilhado com os irmãos da prisão. Até seus familiares terão de conviver com desconhecidos.

Para não se dar mal na prisão, existem cartilhas, espécies de livros de auto-ajuda comportamental, para auxiliarem o encarcerado: 1º Mantenha-se ocupado; 2º Evite dívidas; 3º Seja homem; 4º Fique na sua; 5º Valorize a higiene e 6º Tenha bom humor (evitando piadinhas). 13.

Nunca se está sozinho no cárcere. Nem mesmo quando se está sozinho numa cela, psicologicamente, não se está sozinho. A qualquer hora pode ser surpreendido pelo "bolão" em uma blitz de rotina. 14. A "cabeça a milhão", por medo do inesperado ou do pior, que no cárcere pode ocorrer a qualquer momento. 15. A prática penitenciária ensina que cadeia quieta é sinal de problema, e cadeia muito alegre, com batucada, principalmente se for descompassada, é sinal "tatu", "internet" e ou outras "novidades". 16.

Não será objeto desse artigo os fatores que levam uma pessoa a voltar a cometer crimes mesmo após ter vivido no pior lugar possível.


1. A frase foi proferida em um discurso na Penitenciária I de Franco da Rocha pelo atual Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Lourival Gomes.
2. http://veja.abril.com.br/28.01.04/p. 48.html. Acesso em 06.10.2010. www.semipa.org.br/secoes/motivooracao/index.php?action=ler&id=120. Acesso em 06.10.2010.
3. http://fernadowilliams.com/nosso-mundo/infernos-na-terra-5-lugares-onde-e-impossivel-viver. Acesso em 06.10.2010.
4. Idem.
5. Idem.
6. FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 200.
7. Schwartsman, Solução depende de pena alternativa e Justiça ágil, Jornal Folha de São Paulo, 17/10/2009.
8. O tema foi tratado no curso de pós-graduação, as terças-feiras, de noite, na Escola Paulista da Magistratura do Estado de São Paulo pelo professor José Orestes de Souza Neri, Desembargador do Tribunal de Justiça Paulista.
9. CALHAU, Léu Braga. Presídios como instituições totais: uma leitura de Erwing Goffman. Disponível em: www.jusnavegandi.com.br.
10. Op. Cit. PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. 1. Ed. ? 2. reimpr. ? São Paulo: Atlas, 2008.
11. Particularmente não gosto da utilização do termo adestramento devido dar a impressão de falta de pensar. O ser humano é um ser que pensa o por isso não pode ser adestrado, entretanto, deve ser orientado e preparado ao retorno social, cabendo a ele e somente a ele exteriorizar às práticas recebidos, diversamente do que ocorrer com o adestramento.
12. http://super.abril.com.br/superarquivo/2005/conteudo¬_418513.shtml. Acesso em 05.10.2010.
13. O Bolão é o nome dado pelos presos pelo acumulo de servidores em um mesmo local com a intenção de se realizar revistas e inspeções nas celas ou para conter atos de indisciplina.
14. Normalmente os presos se utilizam da expressão para justificar a prática de infrações (erros). Devido estar com muitos problemas não conseguiu pensar direito antes de ter cometido.
15. Tatu: buraco nas celas ou pátio da unidade prisional. Internet: é buraco nas paredes das celas, rotineiramente utilizadas para se comunicarem.
16. Novidade: qualquer ocorrência, como: fugas, brigas, mortes, rebeliões, etc.