O corpo insiste em interrogar o saber dos analistas e os limites da psicanálise, sob vestes imaginárias, tão bem costuradas, encobertas.

Depressão, angústia, inibição, medo. Essa é a clínica do novo milênio; o homem moderno, calado, prisioneiro da imagem, angustiado. Sob tantas vestimentas imaginárias, há um desejo que não se cala, já que esse corpo atravessado pela linguagem, está desde sempre marcado por uma falta constitutiva.

De acordo com Pereira (2000, p.101), a relação do homem com o próprio corpo apresenta um de seus maiores sofrimentos. O corpo tem um estatuto familiar e ao mesmo tempo estranho, o que implica em desconforto.

O paciente, independente da sua doença, é um ser com história individual e com personalidade própria. Uma das características mais marcantes do paciente coronariano é o abalo sofrido pela perda da onipotência e a sensação de se tornar uma pessoa com limitações.

O coração tem significação muito forte quanto ao seu simbolismo. À medida que a função “mecânica” do coração melhora através de procedimentos clínicos, há um aumento da insegurança emocional do paciente. Isso ocorre pela representação de “órgão de vida” que o coração carrega. Desta forma, não é surpreendente que as afecções cardíacas exerçam forte impacto sobre o comportamento das pessoas.

Lacan abordou a questão do corpo inicialmente pela imagem. Em “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1998 [1949], p.97) introduz a idéia do estádio do espelho como uma identificação, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem, levando à construção da noção do eu.

O corpo humano é um corpo erógeno, mergulhado no significante. Segundo Santos (2000, p.293) algo não recalcado no simbólico retorna no real do corpo – uma lesão de órgão. O saber médico esbarra aí na sua falta e pode, eventualmente, tentar contorna-la recorrendo ao saber analítico, na esperança de que esse opere como uma prótese a suprir sua “falha”. A idéia da análise como complemento às outras intervenções no corpo aparece nesse momento. Em algumas ocasiões, são estabelecidas claras ligações entre o sofrimento psíquico e o corpo.

De acordo com Romano (1994, p.51) a representação que cada pessoa tem de si mesma está vinculada a sua imagem corporal. Como a identidade constrói-se a partir de um corpo íntegro e completo, a situação de uma doença cardíaca ameaça então o senso de sentir-se íntegro, constituindo-se em algo que põe em risco a existência da pessoa. Quando o corpo se modifica significa modificações na identidade pessoal e conseqüentemente são situações que geram conflitos emocionais.

As manifestações corporais estão na origem da psicanálise. Sigmund Freud em “Esboço da psicanálise” (1975, v.XXIII, p. 173) propôs um corpo psíquico; um corpo que é afetado permanentemente pelo pensamento, pela linguagem, enfim pela angústia. Aponta, desde os primórdios, a submissão somática e sustenta o determinismo psíquico.

Segundo Angerami-Camon (1996, p.17) o paciente tem um conceito baseado na sua imaginação. Essas fantasias formam-se impulsionadas pelo sentimento de medo e consciência de morte, acrescidas no pós-operatório, da sensação, ou mesmo de vivência, de que foi aberto, morreu temporariamente e foi então unido novamente.  “A  imagem  corporal  do  paciente  sofre modificações e no pós-operatório surgem sensações de restabelecimento ou de rejuvenescimento. Então, surge a mescla de euforia e depressão”.

Sendo o coração considerado fonte de vida, qualquer problema que o afete é sentido como ameaça à vida, gerando angústia. Vargas (1983 apud Ruschel, 1994, p. 40) salienta que toda a angústia implica em tensão e esta pode ser refletida na área corporal, trazendo um comprometimento somático que muitas vezes é localizado no sistema cardiovascular, já prejudicado pela doença cardíaca.

O paciente cardíaco pode apresentar sua patologia congênita ou  ser vítima de um evento inesperado, resultando em uma cirurgia (de acordo com a patologia específica) ou realizando uma angioplastia (cirurgia de pequeno porte). Estas duas últimas modalidades imprevistas, súbitas, podendo tornar-se fonte de grande ansiedade

Romano (1994, p.62) aponta as fases pelas quais passa o paciente cardíaco quando está sob os cuidados pós-operatórios imediatos. Há, primeiramente, uma constatação que sobreviveu à cirurgia, que está vivo; adquire então o estado de alerta e sente a dor e incomodo das incisões.

De acordo com as autoras Oliveira, Sharovsky e Ismael, o período mais difícil do tratamento cirúrgico é o da permanência do paciente na UTI, onde se encontra mais debilitado, ligado em aparelhos, sondas, cateteres e dependente de terceiros. Ao mesmo tempo em que sente alívio da tensão gerada pela ansiedade do pré- operatório, ocorre a queda de suas defesas, podendo acarretar quadros psicorreativos dando origem a depressão, agitação e às vezes estados confusionais de origem psicossomática. Ao sair da UTI, crises de choro e momentos de tristeza são comuns. Isso porque durante essa fase o paciente geralmente passa por momentos de reflexão, analisando e reavaliando valores da vida, e muitos gostariam de tentar modificar algumas situações já vivenciadas. A emotividade pode continuar por mais alguns meses e a melhor maneira de se lidar com ela é admiti-la e deixar que se manifeste naturalmente.

 

Dificilmente o psicólogo estará presente no pós-operatório imediato. Mas poderá fazer o acompanhamento tão logo tome conhecimento da possibilidade do paciente ser atendido, devendo informar-se anteriormente, com o médico plantonista e enfermeiros sobre o estado atual do paciente, a fim de informar alguns fatos que poderão anima-lo para a sua recuperação.

 

O atendimento psicológico quando o paciente está acordado ou sem sedativos, nestas condições de entubação, é basicamente presencial. Muitos pacientes sentem a necessidade de toque, pedem a mão e a seguram com tanta força, como se estivessem agarrando a vida. Explicar para o paciente a passagem dele pelo CTI ou Sala de Recuperação, pode ser o primeiro passo. Elucidar junto a ele, aspectos dos procedimentos necessários após a cirurgia, e informar sobre a ausência dos familiares.

 

Quando o paciente estiver sem o tubo, que não o deixava falar, sem dores e sentindo-se melhor, deve-se iniciar o processo de escuta por parte do psicólogo. É importante “a verbalização da cirurgia e dos sentimentos advindos para que se tenha a oportunidade de detectar alguma seqüela negativa” (Chiattone, 2003, p.88)

 

Quando o paciente finalmente é transferido para o quarto ou enfermaria, há um grande alívio para ele próprio, os familiares e toda a equipe. O quarto representa uma ponte de vida deixada lá fora e, por outro lado, ir para o quarto pode representar um abandono da equipe saúde.

 

Chiattone (2003, p.94) afirma que a atuação do psicólogo, principalmente, e dos outros membros da equipe, inclui um maciço investimento nas reações de culpa, hostilidade, agressividade, desestruturação, negação, medo, depressão, isolamento, superproteção e abandono, por parte da família.

 

Enquanto no processo analítico a verdade se apresenta com o rosto tampado e vai se desvelando aos poucos, neste caso, ela parece escancarada. Ao analista, não cabe tampona-la., mas tentar fazer uma borda no real. Primeiro, com sua própria presença e aos poucos com a inserção da palavra, propiciando a deslocação do corpo para a cadeia significante, aliviando esse corpo da carga de tensão que ele despende para dar conta do mal que o envade. O hospital geral permite ao psicanalista pôr em prova a ética da psicanálise, sustentada pelo imperativo ético de não retorcer diante do seu desejo.

 

Adoecer implica em uma mudança transformista nos aspectos que envolvem até mesmo a mesmice do cotidiano, ou até mesmo a superfluidade das condições de inerência da própria vida. “Traz em si resquícios da contemporaneidade vivida no âmago de sua ocorrência”. (Angerami-Camon, 1996, p. 191).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

A relação do homem com o próprio corpo apresenta um de seus maiores sofrimentos. O corpo tem um estatuto familiar e ao mesmo tempo estranho, o que implica em desconforto. Lacan abordou a questão do corpo inicialmente pela imagem. Em “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1998 [1949], p.97) introduz a idéia do estádio do espelho como uma identificação, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem, levando à construção da noção do eu. É da suspeita à redução ao próprio corpo que surge o afeto da angústia. A representação que cada pessoa tem de si mesma está vinculada a sua imagem corporal. Como a identidade constrói-se a partir de um corpo íntegro e completo, a situação de uma doença ameaça o senso de sentir-se íntegro, constituindo-se em algo que põe em risco a existência da pessoa. O sofrimento humano inevitavelmente se presentifica em uma instituição hospitalar - a angústia, a tristeza, a solidão, a coragem, inerentes no ser humano e evidenciados diante de situações de urgência e acasos da vida, mobilizam no hospital, médicos e outros profissionais e legitimam a participação do psicanalista nas diversas unidades de tratamento, exigindo uma psicanálise constantemente renovada e “reiventada”. As cirurgias cardíacas, além de compartilharem aspectos comuns a outros tipos de cirurgias, têm como especificidade toda a simbologia que o coração apresenta em nossa cultura. O paciente traz suas fantasias em relação à cirurgia e ao próprio coração - este um órgão vital, centro motor da circulação do sangue e a suposta sede da sensibilidade moral, das paixões, sentimentos, amor e afeto. Ao debruçar sobre a temática da configuração do imaginário no processo de hospitalização deparamo-nos com a questão que estabelece os limites do imaginário com a realidade;  é como se o sujeito tivesse no adoecer um confronto intermitente entre o que havia concebido para a sua vida anteriormente e a realidade que lhe é apresentada em termos de concretude existencial – a partir disso, emergem as conseqüências da cirurgia cardíaca no comportamento do sujeito. Um confrontamento entre aquilo que experiencia em relação ao sofrimento e a idealização sobre sua condição de plenitude, onde não há lugar para o surgimento da possibilidade do adoecer. Desta forma,  quaisquer que sejam as fantasias do sujeito, o psicólogo tem por função reconhecer sua importância para o paciente e compreender o que está envolvido neste sofrimento, observando atentamente e com paciência suas palavras e silêncios.