A PECADORA

(Marcelo Rissato)

Era São Paulo, 1918. Uma época marcada por profundas transformações culturais que se traduziam em novos modos de pensar, de agir e de viver o cotidiano. Época de inovações tecnológicas como o telefone, telégrafo sem fio, cinema, bicicleta, automóvel, avião e um tempo em que se inspiravam novas percepções da realidade, com seus cafés-concerto, balés, operetas, livrarias, teatros, boulevards e alta costura. Era uma cópia de Paris, com uma cultura boêmia imortalizada nas ruas do centro da cidade, uma época denominada "Belle Époque".
Em meio a esse romantismo da Belle Époque, o médico cardiologista Dr. Alfredo Noronha, um homem com seus cinqüenta e tantos anos tinha um projeto, um sonho de salvar vidas almejando praticar um transplante de coração. Contudo, a maioria das pessoas o achava um louco. Era uma época de poucos recursos, onde vidas se perdiam por tão pouco e o Dr. Alfredo com seus sonhos futuristas almejava realizar uma inovação na medicina até então. Muitas experiências eram feitas no Hospital do Coração em São Paulo, porém com resultados insatisfatórios.
Numa das confeitarias do centro da cidade, bem próximo à Praça do Patriarca, trabalhava Sâmia, uma bela mulher com seus vinte e poucos anos e dotada de certo mistério.
Ela era a cópia da mulher da Belle Epoque, uma mulher que fazia parte de um grupo essencial para a cultura urbana, era uma espécie de vitrine do processo da vida social, não confundindo uma maior mundanidade da mulher com sua liberação política. Essa mulher possuía um papel mais ativo e uma experiência mais abrangente, mas que não constituía propriamente uma liberdade. As mulheres dessa época eram mais experientes, refinadas e educadas com uma reação adequada às necessidades e ambições dos novos tempos.
No bairro da Aclimação, bem próximo ao centro da cidade, morava um jovem rapaz chamado Rodrigo, que apesar da pouca idade, com seus dezenove anos já havia passado por maus pedaços no decorrer de sua vida.
Rodrigo vivia sozinho, uma vez que havia perdido sua mãe há pouco tempo com um problema no coração e numa certa ocasião, acabou conhecendo Helena, uma jovem também sozinha. Pouco tempo depois, juntos, decidiram marcar casamento. Para os dois talvez fosse a única maneira de resolver a solidão em que se encontravam. No entanto, no dia do casamento, Helena teve um desmaio e foi carregada às pressas para um hospital. O casamento teve que ser adiado e como causa do desmaio foi diagnosticado um problema no coração. A partir desse dia suas vidas se transformaram e passaram a viver mais dentro dos hospitais do que em sua casa.
Helena acabou sendo tratada pelo Dr. Alfredo Noronha, que, ao diagnosticar o seu problema, revelou não haver mais nada a ser feito, senão um transplante de coração, que para a época, talvez fosse impossível. Era algo muito ousado e só poderia ser feito mediante a autorização de algum dos familiares. Como Rodrigo era a única pessoa que ela tinha e essa seria a única maneira de tentar salvar sua vida, assinou a autorização.
Rodrigo sofria com tudo aquilo que estava acontecendo e parecia que aquela doença o perseguia, mas ainda tinha esperanças de salvar a vida de sua futura esposa. Viveu durante muito tempo numa solidão e quando acreditava que poderia ser feliz, veio a doença e ali iniciava-se uma tremenda luta em prol da vida e do amor. A equipe do Dr. Noronha já fizera várias experiências e estudos, entretanto não havia obtido êxito e aquela seria a primeira tentativa num ser humano, que para a época, seria uma das maiores inovações, já que os novos tempos estavam chegando e parecia ser um futuro muito próximo que estava ali diante dos olhos daquelas pessoas e a imprensa a qual estava veiculando aquela experiência, que não obteve sucesso, deixando Rodrigo muito revoltado e se sentindo culpado por ter dado a autorização.
Rodrigo ao sepultar Helena no Cemitério da Consolação, parecia estar enterrando o seu próprio coração e junto a ele iam todas as alegrias e esperanças, transformando-se, a partir daquilo, numa pessoa melancólica, fria e triste.
O Dr. Noronha se comoveu com a história do rapaz e tornaram-se amigos. Solicitou sua presença no hospital por algumas vezes para conversarem, tentando assim amenizar um pouco aquela grande tristeza que pairava sobre o coração daquele jovem rapaz.
Numa dessas idas e vindas ao hospital, Rodrigo andava a pé pelo centro de São Paulo e acabou entrando na Confeitaria Paulista, que ficava na Praça do Patriarca, e num relance esbarrou em Sâmia, uma das atendentes dali. Aquele encontro não surtiu efeito. Rodrigo se entregou a uma tristeza tão profunda que não tinha olhos para mais ninguém.
Sâmia percebeu a presença do rapaz e naquele instante algo lhe chamou a atenção, porém foi tão rápido que acabou esquecendo e como já estava na hora de ir embora, deixou a confeitaria e foi para casa.
Sâmia havia casado há pouco tempo com Marcelo, por quem nutria uma grande paixão. Era um amor como não se via há muito tempo. Viviam num clima de muita paz e harmonia, porém mal sabia que aquela paz estava prestes a acabar.
Rodrigo se entregou a uma angústia profunda, e devido a essa tristeza, certo dia passou mal e teve que ser levado às pressas para um hospital e, após diagnóstico feito pelo Dr. Noronha, então seu amigo, revelou-lhe que estava também com um problema no coração. O rapaz, que já não via mais sentido em sua vida, sabia que ia morrer e talvez fosse isso mesmo quisesse, pois dela já não esperava mais nada.
Após uma conversa com o Dr. Noronha, assinou um termo de responsabilidade autorizando a realização de um transplante de coração, uma vez que parecia ser esta a única forma de salvar sua vida e mais uma vez as "coisas do coração" interferiam na vida daquele jovem rapaz.
A imprensa notificou a nova tentativa do Dr. Alfredo e as pessoas estavam chamando-o de assassino. Ninguém acreditava que em pleno início do século XX uma façanha tão ousada pudesse obter bons resultados. Contudo, a veiculação negativa que corria de boca em boca e pela imprensa não desanimava aquele audacioso médico, decidido e prontificado em inovar o campo da medicina da época.
Certo dia, Marcelo, o esposo de Sâmia, saiu de manhã de sua casa no bairro da Vila Mariana, despediu-se da amada e foi para o trabalho. Sâmia também seguiu para a confeitaria Paulista mal sabendo que era a última vez que estavam se vendo, quando de repente, ao descer do bonde, Marcelo foi abordado por um jovem que quis assaltá-lo, apavorou-se e caiu sobre os trilhos onde foi atropelado. O corpo foi levado ao hospital ainda com vida, mas devido a uma pancada muito forte na cabeça, veio a falecer.
Dr. Noronha tomou conhecimento da morte desse rapaz e mais que depressa deu andamento ao processo de transplante do coração de Marcelo para Rodrigo, com a autorização de Sâmia, que, mesmo concordando, não quis saber quem seria a pessoa que receberia o coração de seu marido.
Para a surpresa de todos, os resultados foram positivos e isso causou uma revolução no mundo da medicina da época, surgindo novas perspectivas de curas.
Após algum tempo em observação, Rodrigo recebeu alta, tendo que retornar com muita freqüência ao hospital. Numa dessas idas e vindas, andando pelo centro da cidade, no meio da multidão viu a imagem de uma linda mulher que lhe chamou a atenção e procurou segui-la, porém acabou perdendo sua pista bem próximo à Confeitaria Paulista.
Após a morte do esposo, Sâmia resolveu se mudar e alugou um quarto no largo da Aclimação, bem próximo à Rua Galvão Bueno no centro do bairro da Liberdade.
A imagem daquela mulher que Rodrigo havia visto no centro da cidade não lhe saía da cabeça e parecia que nutria uma paixão que nem mesmo ele sabia de onde tinha surgido, até que certo dia estava em seu quarto de pensão no bairro da Aclimação e percebeu aquela linda mulher de cabelos negros, cortado chanel, pele branquinha como o leite, andar vagaroso e com uma expressão triste no rosto, andando pelas ruas e veio a lembrança do dia em que a viu no centro da cidade.
Sâmia era uma mulher típica da Belle Époque. Época marcada pela ostentação e excessos; era uma época de cores fortes, saias afuniladas com botões. As mulheres substituíam saias amplas pela linha barril. Vestidos com enfeites demais e penteados altos, com chapéus em forma de torta e bainhas tocando o piso.
Sâmia aderira à moda, às mangas compridas e aos decotes afogados. À noite as mulheres usavam vestidos decotados para realçar o busto e botões eram os enfeites favoritos.
Os padrões chiques de beleza vinham da França, a Belle Époque se revelava até mesmo nas roupas íntimas e nas toaletes, causando certa repulsa nas mulheres mais conservadoras que não aceitavam tais mudanças na moda e no comportamento das jovens, pois acreditavam que as mulheres que se portavam e se vestiam no estilo francês eram meretrizes e não mereciam respeito, sendo taxadas por elas como "pecadoras".
As mulheres mais conservadoras do bairro observavam Sâmia e sentiam certa inveja de sua beleza, pois não havia um homem sequer que não parasse o que estava fazendo para observá-la enquanto caminhava, com aquele andar vagaroso e tímido.
Rodrigo a seguia por toda parte e observava tudo o que fazia e com quem andava, contudo não sabia sequer o seu nome. A imagem daquela linda mulher não saía de seu pensamento, porém não tinha coragem de se aproximar dela, acreditando não ter nenhuma chance, pelo fato de ser mais velha do que ele.
Certa tarde, aquela mulher entrou na Igreja de Santo Antônio na Praça do Patriarca e as beatas começaram a chamá-la de prostituta, entretanto os comentários não interferiam em nada e ela fazia suas orações normalmente e depois ia embora como qualquer outra pessoa. Rodrigo, que a observava, perguntava às beatas quem era aquela mulher e elas diziam tratar-se de uma prostituta abandonada pelo marido e chamada Sâmia.
A imagem de Sâmia não lhe saía da cabeça, parecia que Rodrigo estava esquecendo-se de Helena e do sofrimento passado e agora vivia em função de Sâmia e um amor acreditava ter surgido com aquele novo coração, uma vez que não deixava de segui-la um minuto sequer, sempre sem coragem de se aproximar e se revelar.
Um dia, Rodrigo estava seguindo-a e percebeu que ela se encontrava sempre com o mesmo homem às 16h00min da tarde num beco no bairro da Mooca. Quando não havia ninguém por perto, o homem abria uma bolsa e lhe mostrava algo, ela fazia um sinal de agradecimento com o rosto, olhava para os lados, entregava-lhe um pacote e cada um seguia o seu caminho.
Rodrigo achava esse encontro muito suspeito e começava a desconfiar que Sâmia tivesse negócios obscuros com aquele homem. No outro dia, Sâmia se encontrou com outro homem no mesmo local e foi seguida por Rodrigo. Ela fazia a troca de pacotes com o homem e depois ia embora, olhando para todos os lados para verificar se alguém os estava observando. Rodrigo seguiu o homem pelas ruas de São Paulo, mas perdeu sua pista, quando entrou numa favela no Campo Limpo, começava a desconfiar que Sâmia fosse traficante de drogas e ficou preocupado, uma vez que achava por ela estar se apaixonando.
No outro dia Rodrigo estava em seu quarto no bairro da Aclimação e da janela observava um homem batendo na porta da casa de Sâmia. Ela abriu e o mandou entrar. Rodrigo entrou pelos fundos da casa e de uma pequena janela com um dos vidros quebrados, observava o homem discutindo com ela, depois via o homem agarrando-a e carregando-a para outro cômodo da casa e depois disso não conseguiu ver mais nada. Depois do que viu, acreditou que ela fosse traficante de drogas e prostituta e que aquilo que se dizia a respeito dela poderia mesmo ser verdade, mas mesmo pensando assim, não deixou de segui-la.
Rodrigo pensava muito em Sâmia e resolveu investigar aquele homem na Favela de Campo Limpo, entretanto nada descobriu e isso o deixou mais curioso ainda sobre a vida dela.
Passados alguns dias, viu uma notícia num jornal local sobre a prisão de um traficante na favela do Campo Limpo e se surpreendeu ao descobrir que era aquele homem o qual se encontrava escondido com Sâmia. De seus olhos saíam algumas lágrimas, mas, mesmo assim, sabia que havia descoberto uma nova razão para viver e não poderia deixar passar essa oportunidade. Pensava numa maneira de ajudá-la a sair daquele mundo de perdição, mesmo sem ela saber de nada.
Outro dia, Rodrigo estava seguindo Sâmia pelas ruas da Aclimação e a viu tomando um rumo diferente, depois pegou o mesmo bonde e seguiu para a zona sul até o Hospital do Coração e ao entrar lembrou-se de tudo o que passou naqueles corredores quando Helena ainda estava por ali, de repente a moça desapareceu pelos corredores daquele grande hospital. Rodrigo ficou surpreso e se perguntava o que ela estaria fazendo ali, depois foi embora e já em casa observava de sua janela Sâmia chegando. Pela janela dos fundos, a observou e a viu mexendo em algo, depois fez um pacote e saiu, no entanto, não conseguiu identificar o que continha dentro do embrulho. Seguiu Sâmia até um beco e entregou a encomenda para um homem e recebeu outro pacote menor em troca. Rodrigo resolveu seguir aquele homem, que foi até outro beco e repassou o pacote para um garoto. O garoto foi até a Igreja de Santo Antônio na Praça do Patriarca e entrou pela porta da frente. Quando Rodrigo entrou para ver o que ele ia fazer com aquele pacote dentro da igreja, o garoto já havia desaparecido.
Essas descobertas o deixaram mais curioso ainda, uma vez que achava Sâmia uma pessoa muito misteriosa, porém fascinante e isso o tornava ainda mais apaixonado por ela.
Certa manhã de domingo, Sâmia saiu de sua casa e andando pelas ruas da Aclimação se encontrou com as beatas que a olharam com desprezo. Sâmia baixou a cabeça e caminhou como se ninguém estivesse por perto. As beatas a chamaram de "pecadora", desfrutável, rameira, cortesã, prostituta, meretriz, libertina, decaída, catraia, desregrável, imoral e muitos outros nomes. Sâmia não deu ouvidos e seguiu para a Igreja de Santo Antônio, entrou e fez suas orações. As beatas adentraram a igreja e ficaram a observá-la, depois uma delas foi para a sacristia. Quando o padre Celso foi ao altar iniciar a missa, ordenou que aquela pecadora no meio de seu rebanho saísse imediatamente. Sâmia olhou para os lados, todos a olharam. Totalmente sem jeito, fez o nome do Pai e saiu da igreja. As beatas bateram palmas e Rodrigo, observando tudo, emocionou-se.
Rodrigo procurou o padre Celso para saber o motivo daquele ato e o padre lhe disse que foi obrigado a fazer aquilo, pois corriam boatos sobre aquela mulher, que ela era uma prostituta, uma ovelha desgarrada do rebanho e não queria se converter. Esse tipo de pessoa poderia levar as outras para o mau caminho, por isso teve que livrar seu rebanho desse tipo de gente e nem foi por sua vontade, tinha feito mais por causa das outras mulheres que ameaçaram denunciá-lo para o bispo caso não tomasse aquela atitude e, sem saída, teve que expulsá-la de sua igreja. Rodrigo começou a fazer algumas perguntas para o padre, sobre o bazar o qual as beatas cuidavam. O padre disse que o bazar possuía peças de artesanatos, roupas e bordados conseguidos num preço acessível e eram trazidos para a igreja pelas beatas, para serem vendidos em prol das pessoas carentes, no entanto, não sabia a origem desse material.
Rodrigo saiu da igreja muito pensativo e foi para casa. Ficou imaginando muitas coisas até observar Sâmia saindo novamente. Seguiu-a. Sâmia foi ao hospital. Ele marcou o quarto em que ela entrou. Demorou um pouco dentro daquele quarto e depois que ela foi embora, Rodrigo entrou e viu uma mulher sobre a cama. Conversou com ela e mentiu, dizendo ser amigo de Sâmia. A mulher agradeceu a visita e, por achar que ele fosse mesmo amigo de sua filha, contou toda sua história. Disse que se chamava Maria Catarina e estava muito doente, com um melanoma maligno na garganta sem cura e que sua filha Sâmia era a única que lhe ajudava, sempre trazendo algo para ela e pagava suas despesas, sem saber onde exatamente estava conseguindo dinheiro, uma vez que eram muito pobres. Rodrigo ouvindo isso ficou surpreso e depois de ouvir a história, contou a verdade para Catarina, disse que não conhecia Sâmia pessoalmente, no entanto a observava já há muito tempo e mesmo vendo seus atos, imaginava que fosse uma pessoa muito decente e que estava batalhando muito para tirar sua mãe daquele lugar. Disse ainda estar apaixonado por ela, depois se despediu e foi embora.
Rodrigo entendeu a razão de Sâmia agir daquele jeito, era para tentar salvar a vida de sua mãe e isso o deixava cada vez mais apaixonado, no entanto acreditava que as coisas erradas que poderia estar cometendo, ao menos tinham uma boa razão e pensava em fazer algo para ajudá-la.
Ao voltar para casa, viu um homem entrando na casa de Sâmia, pelos fundos observou que o homem fez a troca de pacotes e lhe entregou algum dinheiro, depois o homem tentou agarrá-la, ela recuou, mas não conseguiu safar-se dele, parecia ter uma dívida com aquele homem que a arrastou para o outro cômodo da casa e Rodrigo não conseguiu ver mais nada.
Mais tarde o homem saiu da casa de Sâmia e as beatas observavam. Sâmia saiu logo atrás e mais uma vez as beatas chamaram-na de pecadora. Ela não deu ouvidos e seguiu seu caminho. Dessa vez, Rodrigo não a seguiu e com um tipo de grampo conseguiu abrir a porta da casa dela. Olhou por tudo e procurou algo, até que encontrou algumas peças de louça com desenhos de anjinhos e panos bordados com mensagens bíblicas, foi a única coisa que encontrou naquela casa, porém quando ia saindo, Sâmia chegou e ele se obrigou a ficar escondido. De repente alguém bateu à porta, era mais um homem que chegava. Sâmia o convidou para entrar e ele aguardou na sala enquanto ela preparou um pacote para lhe entregar. Rodrigo flagrou tudo. Descobriu o segredo de Sâmia, ao vê-la empacotando, entendeu o que acontecia e agora queria ajudá-la ainda mais. O homem saiu da casa e Rodrigo conseguiu sair do esconderijo, indo atrás dele. O seguiu pelas ruas da Aclimação até um beco e o viu entregando o pacote para um garoto. Seguiu o garoto que foi até a Igreja de Santo Antônio na Praça do Patriarca e o viu entregando o pacote para uma das beatas que lhe pagou e depois foi embora. Após todas essas revelações, entendeu que Sâmia não era nada daquilo que tanto falavam, mas sim uma pessoa que, nas horas vagas do trabalho na confeitaria, apenas fazia bordados religiosos e pinturas de anjinhos, os quais vendia para arrecadar dinheiro para sua sobrevivência e ajudar sua mãe internada com câncer em fase terminal.
Rodrigo saiu de sua casa disposto a ir à igreja contar tudo ao padre, mas ao passar pela casa de Sâmia, a viu sair chorando e resolveu segui-la até o hospital e por detrás da porta, percebeu que Catarina estava morrendo e no momento de sua morte, contou à Sâmia sobre ele, dizendo que ele a amava muito. No entanto ela disse que não sabia de quem se tratava essa pessoa. Catarina agradeceu tudo o que tinha feito por ela, pegou sua mão, pediu para que procurasse Rodrigo e ficasse com ele, depois virou e morreu.
Rodrigo se emocionou com o que ouvira e foi embora muito pensativo o acontecido. Já em sua casa, pensou no que fazer e tentou criar coragem para se revelar à Sâmia. Quando Sâmia chegou à Aclimação, resolveu procurar o padre Celso e se confessar, contou toda sua história e o que fazia. Fora da igreja as beatas percebiam que Sâmia estava dentro da sacristia e resolveram fazer uma tocaia para pegá-la quando saísse. Depois das revelações que fez ao padre, Sâmia saiu da igreja e as beatas pegaram-na e lhe deram uma surra, a espancando pelas ruas como uma vadia qualquer.
Rodrigo se aproximou, no entanto, as mulheres se aglomeraram em volta dela e não deixaram ninguém se aproximar. Rodrigo buscou o padre, mas quando chegou, era tarde, Sâmia estava no chão desmaiada e inconsciente. O padre chamou uma ambulância e a levaram para um pronto-socorro, porém do PS ela acabou sendo transferida para um hospital do Sistema Único de Saúde, já que não tinha condições de pagar e quando Rodrigo foi procurá-la naquele pronto-socorro, a havia perdido de vista e não conseguiu mais encontrá-la.
A vida na Aclimação seguia sua rotina, só que agora sem a presença daquela que causou tantos falatórios, contudo, para Rodrigo, a vida voltou à rotina que tinha antes de conhecer Sâmia e as lembranças do passado passaram a assombrá-lo. Rodrigo começou a se lembrar de sua perseguição por Sâmia, de Catarina, recordou-se de Helena, sua ex quase esposa e de seus pais e iniciava um processo de depressão novamente. Passou a ficar trancado em casa somente chorando. Sua vida se resumia a choros e às lembranças do passado.
Dr. Noronha ficou sabendo do processo depressivo de Rodrigo e o procurou, uma vez que se preocupava com ele e achava que a tristeza poderia ser prejudicial, mas não havia quem o fizesse voltar à vida normalmente e Dr. Noronha acabou indo falar com o padre Celso e contou-lhe tudo sobre o transplante, pedindo sua ajuda para tentar tornar a vida daquele rapaz mais feliz. O padre acabou descobrindo que o coração que batia no peito de Rodrigo era de Marcelo, o esposo de Sâmia, e talvez isso explicasse a paixão que o rapaz sentia pela moça, era como se Marcelo não existisse mais, porém seu amor ainda sobrevivesse dentro do corpo de Rodrigo, como se os dois fossem uma só pessoa. No entanto, o que fazer agora se Sâmia havia desaparecido?
Padre Celso procurou Rodrigo, contou tudo o que aconteceu e revelou que Sâmia não era aquela pervertida que todos pensavam e sim uma boa pessoa que apenas fazia alguns tipos de trabalhos manuais e os vendia para arrecadar dinheiro para pagar as despesas do hospital de sua mãe, ou trocava por comida para sobreviver, enquanto as mulheres do bairro que a expulsaram de lá, pensavam que ela era uma pecadora pervertida e disse mais, contou toda a história do coração de Marcelo, o esposo de Sâmia, bater em seu peito e Rodrigo, aproveitando o ensejo, contou ao padre toda sua história, dizendo que, quando conheceu Sâmia, apaixonou-se por ela à primeira vista. O padre disse já saber que ela era uma pessoa decente, mas quando ia ajudá-la, havia acontecido aquela tragédia e ela acabou desaparecendo. Pediu ao jovem que saísse de casa e procurasse ajuda para sair da depressão, pois ainda poderiam encontrá-la e acertar as coisas. Depois dessa conversa o padre foi embora.
No domingo de manhã, o padre Celso iniciou a missa e no sermão começou a falar de uma moça do bairro que fora escorraçada dali por pensarem mal dela e revelou seu segredo, mesmo porque antes não poderia, era segredo de confissão, porém depois que Rodrigo lhe contou toda a história, revolveu usar isso como exemplo para que as pessoas não julgassem alguém apenas pela aparência e sim por seu coração. As beatas, ao ouvirem isso, ficaram chocadas. O padre disse ainda que as pessoas que a maltrataram, teriam que encontrá-la e pedir perdão por aquilo que fizeram e isso seria o mínimo para se redimir dos atos que cometeram. A igreja estava cheia e, lá na última fila, uma mulher com um véu assistia à missa e ouvia tudo o que estava sendo falado. Ao final da missa, essa mulher resolveu sair antes que o padre dissesse as últimas palavras. Um homem que estava do lado dela gritou algo: "Esta é Sâmia, ela está aqui". Ao ouvir isso, todos se aproximaram e principalmente as mulheres lhe pediram perdão. O padre a chamou na sacristia e conversaram. Contou toda a história de Rodrigo, inclusive sobre o coração de Marcelo estar vivo ainda dentro dele e diz que o rapaz está muito mal. Sâmia revela que já sabia de sua existência, já que sua mãe antes de morrer, lhe contara tudo e que só não sabia a história do transplante, todavia estava esperando melhorar daquilo que aconteceu, para voltar e procurá-lo.
Sâmia e o padre resolveram ir à casa de Rodrigo para encontrá-lo, mas quando chegaram, era tarde demais, a dona da pensão disse que ele saiu muito transtornado, dizendo que queria morrer e já havia falado várias vezes que estava com vontade de se jogar do Viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Sâmia e o padre saíram dali desesperados e seguiram para o centro da cidade. Ao chegarem ao Viaduto do Chá, perceberam uma aglomeração de gente e se aproximaram. Rodrigo estava com uma perna dentro e outra fora da mureta de proteção e, muito transtornado, estava prestes a se jogar dali para acabar com todo aquele sofrimento. Em sua mente voltavam todas aquelas imagens e todas as mortes que aconteceram e, por último, a imagem de Sâmia sendo espancada pelas beatas e num impulso para pular, ouve: "Rodrigo! Eu te amo!". Ao ouvir isso, Rodrigo olhou para os lados e no meio da multidão viu a imagem daquela linda mulher se aproximando e dizendo que o amava. Foi um encontro maravilhoso, e ali decidiram ficar juntos para sempre. Parecia que as mesmas "coisas do coração" que tanto sofrimento havia deixado naquele rapaz, agora o uniam com fortes laços à sua amada. Os dois seguiam juntos do Viaduto do Chá, para o centro de São Paulo e desapareceram no meio da multidão. Para sempre.




"O primeiro transplante de coração no Brasil foi feito no dia 26 de maio de 1968 pelo Prof. Euryclides de Jesus Zerbini em São Paulo-SP (um ano antes, Dr. Barnard fizera na África do Sul o primeiro do mundo). No início do século passado, os primeiros transplantes clínicos foram tentados em animais e depois no homem. A partir da metade do século, o entendimento do processo natural de rejeição do órgão transplantado e a descoberta de medicamentos para combater essa rejeição permitiram a crescente realização de transplantes com sucesso. Hoje, o transplante de órgão é uma rotina que faz parte do tratamento médico especializado".
Dr. José Osmar Medina Pestana
(PRÁTICA HOSPITALAR ? Ano V ? Número 26 ? Mar/abril 2003)