A Outra interpretação para os viajantes do século XVI: O inferno

A descoberta desse "Novo Mundo" como já dita anteriormente reafirmou a cristandade,mas foi acima de tudo responsável por hierarquizar a sociedade nas colônias pelo viés religioso,demonizou e animalizou os índios.

Tanto Frei Vicente de Salvador quanto Gândavo tiveram como preocupação definir o nome da Colônia, julgando que o futuro desta dependesse de tal relação:

[...] Ao qual chamarão brasil por ser vermelho e ter semelhança de brasa,e daqui ficou a terra com esse nome de Brasil.Mas para que nesta parte magoemos ao Demônio,que tanto trabalhou e trabalha para extinguir a memória de Santa Cruz, e desterrá-la do coração dos homens[...] Porque na verdade é de estimar e melhor soa nos ouvidos da gente cristã o nome de um pau quese obrou o mistério de nossa redenção que o doutro que não serve de mais que de tingir panos ou coisas semelhantes (Gândavo , 1980 p 18)

Certeau (2000) em sua análise sobre a etnografia (Imagem do outro: Jean de Léry) averiguou o limite entre o olhar antropológico e a visão do etnodemonólogo. Assim para Laura de Mello e Souza (1986) os viajantes e cronistas espanhóis buscavam enxergar na Meso – América os fantasmas dos medos medievais, a transposição do sabbat medieval para os suntuosos templos pré – colombianos, os sacrifícios humanos como oferendas à Satã.

Não só nos domínios castelhanos houve a já presente analogia, na vida cotidiana dos tupis descrita por jesuítas, sobretudo Nóbrega e Anchieta parecem os costumes dos nativos ora como elos com a doutrina cristã, (como Vainfas aponta, na adequação dos nomes de santos a antepassados ou espíritos com os quais os índios mantinham contato nas famosas cerimônias conduzidas pelos Caraíbas, as "Santidades". Serve como exemplo ilustrativo a derivação de Maria para Tupanassí, para evidentemente ligar o mundo do outro ao cristão) ou como total distanciamento e descaso, ou até na prática da "falsa conversão". (Vainfas, 1995)

O Combate em Rouen [1]analisado por Belluzzo (1996) em frente à Corte de Catarina de Médici, (cujo termo resgatado por Vainfas foi descrito como Sciamachie[2]) retratado por Ferdinand Denis tinha por finalidade através da versão teatral, valorizar o ego europeu frente à conjuntura de mundos era, aliás, o combate com a própria sombra pelo viés religioso, combater a cultura do outro para se reafirmar.

No entanto, acerca da outra interpretação nota-se que o pensamento de Colombo assim como do de Las Casas tinha por característica a apreciação da natureza e da índole indígena, (o que se altera um pouco na ótica de Léry) caracterizando o paraíso no primeiro momento como visão singular, isolada; voltando a tona em um ou outro caso como na busca pela fonte da Juventa por Ponce de Leon ou pelas descrições sobre as andanças de Orellana feitas por Carvajal, que tinham por objetivo além de encontrar ouro confirmar a existência das Amazonas, aos moldes de Hipólita e Pentesiléia no Novo Mundo. (Holanda, 1959) O paraíso tinha em sua orla o fantástico, habitado pelos portentos, ostentos, monstros e prodígios descritos por Isidoro de Sevilha.

O que perdurou quanto à interpretação, agora falando quantitativamente foi a visão infernal, enxergando os monstros descritos por Isidoro na condição de "monstros humanos". Como exemplo clássico da demonização dos nativos (nesse caso especifico os tupis), Belluzzo utiliza a pintura "O Inferno" de autoria anônima.

A autora faz a análise da imagem de maneira sintética, construindo a imagem do Inferno naquele período para os portugueses:

Na cena sobre o pecado carnal e o castigo corporal, pode-se adivinhar a condenação arbitrada pela ética cristã. Dos corpos amarrados e atormentados por práticas diabólicas, os cabelos queimados são de mulheres vaidosas, a língua arrancada é de maledicentes, a pena de engolir os excrementos de animais lançados goela abaixo é infligida ao guloso, o açoitamento ao corpo feminino é uma possível punição à luxúria. [...] Aos espectadores do castigo não passará despercebida uma figura demoníaca com cocar indígena ocupando o trono do Inferno, da mesma maneira que notamos a tanga de penas de outro capeta que carrega o corpo de um religioso pecador (Belluzzo, 1996 p 13)

O mesmo inferno, que se encontrava assim localizado abaixo da linha equinocial ou a oeste do Mar Tenebroso tinha por suas características a corrupção dos costumes cristãos no caso dos degredados, a natureza bestial do ameríndio e o ambiente no mínimo exótico, como aponta Fernão Cardim, (cuja obra mesmo possuindo um caráter enciclopédico e que busca apontar a beleza da colônia, fala justamente neste trecho no sentido oposto):

Não faltam baratas, traças, vespas, moscas e mosquitos de tantas castas, e tão cruéis, e peçonhentos, que mordendo em uma pessoa fica a mão inchada por três ou quatro dias, máxime aos reinóis, que trazem o sangue fresco, e mimoso de pão e vinho, e mantimentos de Portugal (Cardim, 1999 p 136. Apud in Olivieri e Villa)

Ainda sobre estes incômodos dos trópicos, Laura de Mello e Souza em O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986) cita o Attun que seriam as pulgas, que foram "a perdição dos camisolões dos padres". O que mostra que ao mesmo tempo em que a natureza era generosa em parte, trazia incômodos a vida cotidiana. Staden (1930) fala sobre morcegos que "chupam os dedos do pé e a cabeça da gente", enquanto Léry[3] (1960) (que como todo viajante, tem por característica o exagero) fala sobre "um lagarto maior do que um homem e com um comprimento de seis a sete pés".

O problema maior, no entanto foi mesmo a conversão dos nativos, que ressuscitava a lenda de que São Tomé, o apóstolo das Índias nestas terras esteve chamado por boa parte dos índios de Pay Tumé ou Zomé, dependendo da localização geográfica. Holanda (1959) ao falar desse mito luso brasileiro remonta a idéia de religiosos até mesmo do século XVII, inclusive discutida posteriormente por Vainfas (1997) como é o caso de Vieira "por que a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata [...] mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo" (p 30)

O motivo do discurso deve-se aos hábitos da colônia, que em pouco tempo estava nas "garras do demônio", com a perversão dos costumes e com a criação da idéia de que abaixo do Equador não existiam os Dez Mandamentos, o que Vainfas descreve de maneira sintética falando dos primeiros séculos da colonização:

Ameríndios luxuriosos, colonos insaciáveis, negros lascivos, mulatas desinquietas, senhores desregrados, sinhás enciumadas, o pecado estava em todas as gentes e lugares. (Vainfas, 1997 p 48)

A "terra dos pecados" como foi outrora a América portuguesa, era também o lugar onde estavam os infiéis, os ameríndios confundidos constantemente com monstros que há tempos povoavam os bestiários, apareciam em cosmografias e que a pouco estavam confinados na terra não explorada.

Monstros e antropófagos

A terra incógnita onde estavam tais criaturas reservou sua presença ao sertão de maneira gradativa decorrente da exploração do litoral num primeiro momento por parte dos portugueses. Tal imaginário foi embebido na cultura ameríndia, encontrou correspondentes de suas superstições no Novo Mundo, adaptou natureza do interesse pelos monstros por parte dos europeus ao novo ambiente, transformou sereias em Ipupiaras, Ciápodos em Curupiras, Cinocéfalos em indios antropófagos, diabos em Juruparis.

Tais monstros existiam materialmente para explicar o mundo não conhecido encontrando na arte construtores de sua aparência, como Arcimboldo, De Bry, Bosch, Brueghel, Burgkmair; além de na poesia surgir sua natureza e descrição como em Dante, Gesner, Thévet e anteriormente Brunetto Lattini embasado em viajantes italianos. (DEL PRIORE, 1996)

A existência de tais seres, elencados a permissão divina para alertar os homens foi não só comprovada por teólogos medievais, serviam no sentido estóico à interpretação sobre os pecados e virtudes do mundo cristão, como aponta Del Priore (1996, p 28 ) : "os pigmeus simbolizavam a humildade,os gigantes, o orgulho,os cinocéfalos;a discórdia,os homens com os beiços perfurados, a mentira " , o que sem dúvida sugere a importância de seres imaginários para a explicação do mundo , enfatizavam portanto questões já respondidas pelos dogmas.Por vezes eram seres amistosos como o Bispo do Mar, que aparecera no litoral e era capaz de conversar com humanos, e antes de se despedir os abençoava.

Ambroise Paré e Paracelsoem pleno século XVI se questionavam sobre o surgimento de monstros,atribuindo a geração destes à imaginação materna ou ao desvio dos fluxos de licor vital , o que entre outras coisas , era capaz de cobrir uma criança de pêlos por todo o corpo e de despertar seu apetite por carne humana.O apetite por carne humana atribuído aos indígenas os caracterizava como cinocéfalos, ou seja criaturas devoradoras de carne humana, levados a discórdia, as guerras, a cauinagem

O discurso quanto a aceitação da ingestão de carne humana, como definiu Glória Kok (2001) seguia a lógica de que o sal proporcionava prazer , prazer este já elencado ao demônio como apontam os tratados demonológicos .Sobre o tema Michel de Montaigne no seu famoso ensaio sobre os canibais remonta exemplos de canibalismo na Europa desde a antiguidade:

Crisipo e Zenão, chefes da escola estóica, admitiam não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se necessário, nem mesmo em nos alimentarmos deles como fizeram nossos antepassados que, assediados por César em Alésia, resolveram, a fim de prosseguir resistindo, matar a fome comendo os velhos, as mulheres e todos os que não fossem úteis ao combate. (Montaigne, 1980, p 103)

O pensador francês, no entanto, aponta inconscientemente a ligação com o bárbaro, uma vez que os gauleses eram assim vistos pelos romanos. Portanto o canibalismo mesmo que despido dos rituais antropofágicos associou – se sempre ao barbarismo, salvo os casos de guerra e fome aguda ao longo da Idade Média.

Assim o que tornava passível de aceitação o canibalismo era a fome, esta ausente nos tupinambás como descreve Staden: "Não o fazem por fome, mas por grande ódio e inveja".(1930 , p 156) Além da fome e da inveja percebe-se em uma gravura de Theodor de Bry (baseado nas descrições de Staden) um grande apetite por carne humana,demonstrado na voracidade com que os tupinambás devoram as partes do corpo de um prisioneiro recém executado, com postas ainda no moquém.

Na cena, Staden protesta ao fundo; assim o objetivo da cena é representar o bárbaro, o pagão que não dá ouvidos a doutrina cristã, como apontou Glória Kok (2001) falando sobre a água do batismo que na visão dos índios deixava a carne sem gosto.

O viajante europeu observava portanto um mundo atípico, olhando o novo a partir das velhas idéias e antigas constatações, sobretudo enxergando pelo prisma religioso e ressuscitando temas e analogias com o classicismo da antiguidade.



[1] "No espetáculo, franceses e brasileiros, identificados pela nudez, apresentam a mesma performance corporal.Igualam-se no trato direto com a natureza, na vida perigosa e na coragem, Na travessia dos mares. Confrontados em luta,opõem-se: as nações indígenas tupinambás e tabajaras, em terra; as galeras portuguesas que patrulham as costas brasileiras e as galeras de corsários franceses, no mar."(Belluzzo,1996 .P 14)

 

[3] "Parecia revestido de escamas esbranquiçadas, ásperas e escabrosas como casacas de ostras; ergueu uma pata dianteira e com a cabeça levantada encarou - nos fixamente [...] o monstruoso e medonho lagarto, abrindo a boca por causa do grande calor que fazia e soprando tão fortemente que o ouvíamos muito bem" (Léry, 1960 p 128)


  REFERÊNCIAS


BELLUZZO, Ana Maria de Moraes . A propósito do Brasil dos Viajantes. Revista USP. São Paulo. Junho/Agosto. 1996.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 2000.

DEL PRIORE, Mary. Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo Ibero-Americano. Séculos XVI-XVIII. São Paulo. Companhia das Letras, 2000.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz e Tratado da Terra do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1980.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.

KOK, Glória. Os Vivos e os Mortos a América portuguesa: da antropofagia à água do batismo. Campinas. Editora da Unicamp, 2001

MONTAIGNE, Michel Eyquem de.Ensaios.tradução de Sérgio Milliet.São Paulo.Abril Cultural, 1980.

SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986

STADEN, Hans.Viagem ao Brasil – Versão do texto de Marpurgo, de 1557. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1930.

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios - Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

_________________. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.