A novidade literária machadiana assentada na personagem de Brás Cubas[1]

Raquel Ferreira de Souza[2]

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Breve Introdução

Antes de começar a minha apresentação e discussão sobre nosso tema, gostaria de falar um pouco sobre "ler Machado de Assis". O grande problema que se mostra nas leituras das obras de Machado é que, em geral, as pessoas antes de terem acesso à obra, lêem textos de comentaristas e/ ou pareceristas, o que as impossibilita de passar por todo o processo de construção de leitura e compreensão, que as obras de Machado de Assis exigem, e que proporcionam um prazer inigualável. Ofereço-vos com toda humildade a minha leitura sobre tal obra, e em específico sobre a personagem de Brás Cubas, e já adianto que minha leitura é um tanto ousada. Entremos, pois, em nosso tema.

Desenvolvimento

Nosso tema apresenta duas chamadas importantes: 1) a novidade machadiana; 2) personagem Brás Cubas. Vejamos!

A novidade aqui destacada refere-se, ainda de forma frágil, a toda mudança gerada na literatura brasileira advinda da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, visto que em meio a um passado literário apático, sem traços literários grandiosos –digo isto por ser mais europeu que brasileiro, ainda que seja belo – surge uma obra que quebra com toda a tradição narrativa literária e apresenta uma nova forma de fazer literatura, a partir de elementos de escrita e de estilo inovadores e ousados demais para seu tempo.

A primeira grande novidade trazida pela obra é ter um narrador "morto", e é importante ressaltar por hora que Machado propositalmente entrelaça as figuras de autor e de narrador – coisa que até bem pouco tempo a teoria literária não admitia - como um apelo ao novo e fruto de confusão do leitor, que possivelmente se indagará sobre quem fala ali, se é Machado de Assis ou se é Brás Cubas.

Cito um trecho da obra que embasa tal colocação:

"Suposto o uso vulgar seja o nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo." (p.17)

Por sua vez, ao analisar um corpus mais abrangente no ensaio "A nova narrativa", Antonio Candido (1989, p. 213) afirma que o escritor atual "(...) deseja apagar as distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular. Por isso usa a primeira pessoa como recurso para confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto permanente e desconvencionalizado, que permite fusão maior que a do indireto livre."

Além de inovar criando um narrador defunto, Machado de Assis deixa clara, através das palavras do narrador, a consciência do novo, a ciência de que este recurso de criação nunca havia sido usado na literatura brasileira, e que além de tudo seria "galante", ou seja, teria estilo escrever assim.

Além disso, há outro fator facilitador para o uso de um narrador morto, que se encontrando nesse estado (morto), o mesmo está fora do tempo cronológico e do espaço real, logo poderia ser feita uma análise profunda do homem e da realidade do seu tempo, sem críticas posteriores, ou seja, haveria a velha justificativa da literatura: só se trata de uma ficção.

A grande conquista machadiana em suas Memórias é a supra consciência da composição literária e lingüística que Machado tem e que assume, através das palavras de Brás Cubas ao leitor, com muita notoriedade. Cito: "Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo" (p.16).

Desse trecho, pode-se levantar duas questões interessantes: 1) o processo extraordinário de produção da obra, que é assumido pelo autor; 2) memórias trabalhadas cá no outro mundo, fragilmente entendido por muitos como meramente "o mundo dos mortos", mas que pode ser visto como um outro mundo que se abre à escrita literária, em que as inovações e quebras de estruturas pré-fabricadas são permitidas; o que fica claro na declaração de Brás Cubas, que diz: " A obra é tudo!" (p.16).

A segunda grande novidade apresentada na obra, tão grandiosa como a primeira, é a "metaliteratura" ou metalinguagem. Machado é o primeiro escritor que usa desse recurso com tanta notoriedade, deixando claro através de várias falas de Brás Cubas que está compondo um livro e que há para tal um árduo trabalho de escolhas a serem feitas para agradar o leitor, ou pelo menos para intrigá-lo.

Em comentário, Antônio Houaiss (1961) em resposta ao que fundamenta a inovação da língua literária em Machado de Assis, diz que "o denominador comum a diversos aspectos inovadores é o metalingüístico, isto é, pela quase obsessiva postura mental de Machado de Assis em não apenas usar da língua, mas ao usar dela, indagar-se de si para si – simulacradamente (...)".

De tal comentário extraímos facilmente o caráter metalingüístico existente em tal obra de Machado, que pode ser demonstrado a partir de alguns exemplos, que cito agora:

"Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos que apostolado." (p.22)

A metalinguagem aqui parte do uso das palavras "livro e obra", o código pelo código – como diriam os lingüistas – o livro que fala de como escrever livros, ou melhor, como escrever boas narrativas; que a meu ver, é o que se propunha Machado de Assis ao escrever essa obra de transição. Outro fator relevante a se considerar no trecho citado é a ciência do autor/narrador sobre a recepção de sua obra pelos leitores da época, que pode ser percebida na colocação "agora austera, logo brincalhona"; austera, porque para os leitores e críticos da época seria de fato dura de ser recebida, visto que para toda mudança é necessário um preparo; e brincalhona, porque logo se perceberia que o poder de manipulação lingüístico de Machado de Assis era tão grande que ele brincou com vários recursos de escrita complexos demais para aquele momento literário. Vejamos outro trecho:

"Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio, pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que há uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pitoresca. E repito: não é meu". (p.200)

Já neste trecho podemos evidenciar os termos "capítulo e efeito do livro", como fonte de consciência metalingüística, e de preocupação com a construção passo-a-passo (capítulo) e o efeito pretendido com os escritos; além de contar com uma "leve e irônica" crítica aos maus leitores da época, que ao invés de lerem as obras pela apreciação da arte literária, liam-nas para fugir da realidade –principalmente o público feminino.

O uso do recurso de metalinguagem em Machado de Assis está diretamente ligado ao diálogo instaurado com o leitor durante toda a obra, que além de se mostrar o terceiro maior recurso (sem ordem de valores) de inovação literária, mostra-se como uma forma de, verossimilmente, deixar o leitor fazer parte da história narrada, claro que enganosamente, instigando-lhe à curiosidade de se saber o final – que é característica de todo bom ouvinte/ leitor. Tal curiosidade é instigada em vários momentos da obra quando podendo dizer algo, o narrador dirige-se ao leitor pedindo-lhe paciência, como por exemplo quando diz: "Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora." (p. 18).

Isto faz com que o leitor participe da construção do romance, ora diretamente, ora indiretamente, por meros comentários sobre a obra, ou quando o interpela quanto ao uso de algum vocábulo; o que ocorre algumas vezes durante a escrita.

Diríamos até que a melhor estratégia para segurar a atenção do leitor às Memórias é tal diálogo, visto que ele sempre se mostra provocativo, num processo fático, que já pressupõe a reação e a resposta do leitor frente à obra.

Antônio Houaiss (1961) afirma ainda que:

"A consciência da língua e da linguagem em Machado de Assis é certamente uma de suas conquistas mais importantes; ao mesmo tempo, sua concepção do livro-vida (ou vida-livro), ou seja, é uma manifestação de uma cosmovisão que atribuía à linguagem e seus usos o valor de uma das formas mais explícitas de ser homem e, concomitantemente, uma das formas mais poderosas de esconder, subtrair, deformar, iludir a humanidade e, assim, obter desumanamente de outrem algo para proveito próprio (não dele Machado de Assis, de seus personagens)".

Pondo isto em palavras mais simples, o poder de manipulação de linguagem – aqui no sentido estrito da palavra "manipulação", que é "ter nas mãos" – que Machado de Assis possuía, o qual reflete em seu narrador, levaria o leitor a qualquer lugar que ele quisesse, sem muito esforço, ou seja, certamente o leitor acreditaria no que ele propusesse.

Tendo levantado até o momento as inovações mais especificamente referentes à linguagem e aos recursos usados por Machado de Assis, salvo a primeira parte desta apresentação, em que foi trabalhada a apresentação do narrador, parte esta pertencente à vertente estrutural, mas que inevitavelmente deveria aparecer primeiro, passaremos à discussão sobre a estrutura da obra e de seu narrador, que aqui em nossa análise, não podem de maneira alguma serem separados.

Inevitavelmente, toda narrativa apresenta a seu modo elementos essenciais à sua construção, que normalmente são: foco narrativo, tempo, espaço, enredo e personagens. Pensemos, pois agora, esta estrutura aplicada à obra em análise.

Antes de tal desenrolar, cito as palavras da Professora Walnice Nogueira Galvão[3] sobre tal: "Machado é transgressor das normas do bom romance realista e vira a narrativa de cabeça para baixo". Cito ainda as palavras do próprio Brás Cubas quanto ao seu método de escrita:

"Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta o leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas umpouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão." (p. 34)

Comecemos pois, a nossa análise quanto aos elementos essenciais da narrativa na obra em questão:

1) O foco narrativo é construído por um narrador-personagem que se apresenta na 1ª pessoa, no entanto está morto, logo se visto tradicionalmente, não comporia os personagens, pois não há ações reais enquanto narra, apenas memórias. Mas como nossa leitura exposta aqui não é tradicional, tal narrador se apresenta como o ápice do romance. É válido acrescer que o fato de se criar um narrador morto fez com que vários críticos literários classificassem tal obra como pertencente ao Realismo-fantástico;

2) O tempo desenvolvido na obra é totalmente fragmentado, ou seja, não há nenhuma espécie de cronologia, a começar pelo fato de o narrador iniciar suas memórias pelo episódio de sua morte, e não de seu nascimento, o que seria mais comum. É válido dizer que o tempo aqui, além de psicológico, é memorialístico, ou seja, aparece a partir das lembranças daquele que conta; e que a memória, por sua vez, não é cronológica, é episódica e semântica – construída em episódios não ordenados, como já fora comprovado por filósofos da linguagem, como Wittgenstein, cito pois um trecho da Gramática Filosófica de Wittgenstein (2003)[4]:

"Lembrar-se, logo, certamente não é o processo mental o qual, à primeira vista, alguém [quem?] imaginaria. Se eu digo, corretamente, 'eu me lembro disso', as mais diferentes coisas podem ocorrer, e mesmo meramente isto: que eu digo isso". (p. 181)

Cito ainda o poeta inglês W. H. Auden[5]: "A memória deve restaurar os passos e a margem; o rosto e o lugar do encontro";

3) No caso do espaço, se pensado dentro dos episódios narrados e recriados a partir da memória do narrador, pode ser visto como real (pois em algum momento aconteceu e existiu), mas se observado aos olhos do presente do narrador, que não ocupa lugar algum porque está morto, deve ser desconsiderado, ou ainda considerado psicológico; eu, no entanto com muita ousadia, arrisco-me a dizer que Brás Cubas ocupa o "não-lugar"[6], teoria esta ainda pouco conhecida e desenvolvida em meio aos estudos literários;

4) No caso do enredo e das personagens, tentaremos trabalhá-los conjuntamente, visto que ambos já foram citados indiretamente em nosso desenvolvimento. O enredo se desenvolve a partir das memórias não lineares do narrador, mas que visto como um todo, ao final da obra, cabe ao leitor organizar as informações narradas e perceber o desenrolar da história de vida e de morte desse defunto-narrador. Já as personagens são citadas apenas dentro dos episódios de memória que o narrador apresenta, e mesmo assim em forma de "antagonistas", já que o principal desta obra é o próprio narrador (Brás Cubas), isto para não dizer que ele é a obra prima da literatura de Machado de Assis.

Breve conclusão

A obra que se apresenta a nós para análise é riquíssima e audaciosa, mas por uma questão de restrição temática e temporal, deixo alguns outros aspectos que envolvem tal para outro momento.

Termino esta minha apresentação dizendo àqueles que já a leram: "leiam-na novamente" e descobrirão mil possibilidades de leitura, mas sem uma idéia fixa de descobrir sua totalidade. Lembrem-se da advertência feita pelo próprio Brás cubas: "Caro leitor, Deus te livre de uma idéia fixa"; e para aqueles que não a leram ainda: "leiam", não apenas para conhecê-la, mas para se deliciarem com um bom romance, escrito por um gênio da literatura brasileira e universal.

Penso até que Machado de Assis escreveu uma obra que ele, como ótimo leitor e ótimo crítico literário, gostaria de ler! Como declarou o próprio Brás Cubas, cuja voz de Machado é assumida nitidamente: "Eu deixo-me estar entre o poeta e sábio". (p.21)

Obrigada pela oportunidade de expor minha leitura sobre tão grandiosa obra!

Referências

I-ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. SP: Klick Editora,1997.

II-HOUAISS, Antônio. Estudos vários sobre palavras, livros e autores. (1979).

III-_________________ Crítica a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. RJ: Objetiva, 1961.

IV-_________________ Edições críticas de Obras de Machado de Assis, pela Comissão Machado de Assis. RJ: Objetiva, 1975.

V-GALVÃO, Walnice Nogueira. Caderno Mais.In comentário sobre o centenário de morte de Machado de Assis. SP: Folha de São Paulo, 2008.

VI-QUELHAS, Iza Therezinha Gonçalves. Um discurso sobre o não-lugar uma leitura de "um discurso sobre o método" de Sérgio Sant'anna. Acesso em 15 de setembro de 2008: http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit02/sliit02_54-64.html

VII-WITTGENSTEIN, Ludwig. Gramática Filosófica. SP: Edições Loyola, 2003.

VIII- CANDIDO, A. Fora do texto, dentro da vida. In: Candido, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:Ática, 1989.



[1] Trabalho apresentado no dia 18/09/2008, na 6ª Semana Literária do ISTA (Instituto São Tomaz de Aquino).

[2] Graduada em Letras (PUCMINAS); Pós-graduada em Arteterapia em educação (UCAM/RJ); Pós-graduada em Gestão de Negócios (UNOPAR/PR); Mestranda em Filosofia (FAJE/ISI); professora e coordenadora universitárias.

[3] Professora da Universidade de São Paulo (USP) em depoimento ao jornal Estado de Minas, em exemplar especial aos cem anos de morte de Machado de Assis.

[4] Leia a obra na íntegra em: http://books.google.com.br/books?id=6j6Af6f52scC&pg=PA181&lpg=PA181&dq=wittgenstein+philosophi al+grammar+memory&source=web&ots=Zyh4bjaOek&sig=Y2mE6ckgGhhSzJD6Fhml7fmuJII&hl=PT BR&sa=X&oi=book_result&resnum=1&ct=result

[5] Auden : poeta, dramaturgo, editor e ensaísta. Considerado o maior poeta inglês do século XX. Dito em entrevista.

[6] Para conhecer mais sobre a teoria do "não-lugar", leia o artigo "Um discurso sobre o não-lugar
uma leitura de "um discurso sobre o método" de Sérgio Sant'anna"
. Tal é voltado para a filosofia, mas aclara a parte literária. Ver referências.