Visando tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro, a Lei 12.683/12 estabelece um rol de pessoas (art. 9º) sujeitas a obrigações, quais, dentre outras, a (i) inclusão dos clientes em cadastro regulador ou fiscalizador e (i) comunicação de atividades consideradas suspeitas às autoridades competentes (arts. 10 e 11).

Embora não conste expressamente na enumeração de sujeitos obrigados a auxiliar na identificação de atos que aparentemente constituam prática de lavagem de dinheiro, é possível, em tese, identificar os advogados na classe dos profissionais que prestam serviços de assessoria, consultoria, aconselhamento e assistência em operações imobiliárias, societárias, financeiras, contratuais etc. (art. 9º, XIV[1]).

Diante desse cenário, merece especial atenção a (in)aplicabilidade do dever imposto aos advogados de comunicação referente a atividades suspeitas de lavagem de dinheiro praticadas por seus clientes.

Tradicionalmente, em ordenamentos jurídicos onde a matéria já assume maior envergadura dogmática, costuma-se distinguir as atividades características da advocacia entre (i) atuação ligada a atividades contenciosas, em que o direito de defesa assumiria protagonismo em função do caráter litigioso das relações envolvidas; e (ii) a prática de atos referentes ao assessoramento em operações financeiras, comerciais, tributárias, imobiliárias, contratuais e afins, sem relação direta a um litígio.

Sinalizando tendência de inaplicabilidade dos deveres de comunicação aos advogados que atuam de alguma forma vinculado à representação contenciosa, em contrapartida ao dever imposto aos advogados que atuam na prática de operações, Mercedez Pérez Manzano afirma ― no contexto do ordenamento jurídico da União Europeia e, em especial, da jurisdição espanhola ― que “los abogados sólo están obligados al cumplimiento de los deberes estabelecidos em esta ley em caso de que realicen algun de las atividades a las que el precepto se refiere [asistir em la concepción o realización de la transacción], lo que implica que cuando los abogados están realizando otro tipo de actividades, em particular, las relativas a la defensa, em sentido estricto, del cliente em todo tipo de processos, no están sujetos al cumplimento de los deveres”.[2]

Importando a sistemática alienígena de aplicação dos deveres administrativos relacionados a atos que potencialmente configurem lavagem de dinheiro, parte da doutrina nacional entende que os advogados que prestam serviço sem alguma forma de vinculação contenciosa (operações imobiliárias, societárias, financeiras, contratuais etc.) estariam obrigados a cumprir os deveres de identificação/cadastro de clientes e comunicação de atividades suspeitas (arts. 10 e 11).[3]

Analisando a matéria sob o prisma do ordenamento jurídico brasileiro, em atenção às disposições constitucionais sistematicamente interpretadas no contexto das normas especiais que disciplinam o exercício da advocacia, não parece ser o entendimento mais adequado, sob pena de uma inversão total dos papéis: admitir a existência de duas classes de advogados, uma delas destituída de sigilo profissional, configuraria incabível entorse nos deveres institucionais classicamente consagrados e constitucionalmente delimitados.

Ao tratar da advocacia, a Constituição Federal determina ser o advogado “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.[4] Trata-se, como se vê, de norma constitucional de eficácia contida, produzindo imediata e plenamente seus efeitos (inviolabilidade do advogado), a serem possivelmente delimitados pelo legislador ordinário. [5]

Os contornos da inviolabilidade do advogado estão traçados pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB, normas especiais por meio das quais se deve pautar a atividade dos profissionais, instrumentalizando seus direitos e deveres.

De plano, convém identificar as atividades acobertadas pelas disposições inerentes à advocacia, como premissa essencial para desvendar se possível distinção entre advogados contenciosos e consultivos poderia prosperar. O Estatuto da Advocacia estabelece serem privativas de advocacia (i) a postulação a órgão do Poder Judiciário e (ii) as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.[6]

Vê-se, portanto, que inexiste aprioristicamente qualquer diferenciação entre as atividades de representação contenciosa e atuação consultiva ou assessoria jurídica em operações: ambas são atividades privativas da advocacia e estão acobertados pela mesma disciplina profissional.

Fixada a impossibilidade de distinção entre “classes” de advogados, questão que se pretende descortinar é a abrangência do sigilo profissional inerente à advocacia. Nesse sentido, o Estatuto estabelece o sigilo não apenas como direito[7], mas principalmente como dever dos advogados, consistindo infração disciplinar ― sob pena de censura, suspensão, exclusão e multa ― a violação do sigilo profissional.[8]

Não é só. O Estatuto da Advocacia assegura aos profissionais o direito de guardar para si fato que constitua sigilo profissional, recusando-se inclusive a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte.[9] Assim também, o Código de Ética e disciplina da OAB traça como únicas limitações ao sigilo a existência de grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa. [10]

A violação ao sigilo profissional é, inclusive, tipificada como crime na legislação penal[11], sendo os advogados que tomarem conhecimento de fato relevante em função do exercício da profissão também considerados impedidos de depor na condição de testemunhas, segundo a legislação processual cível e penal. [12]

Ora, se o advogado não pode ser compelido a trazer ao conhecimento fato que acobertado pelo sigilo profissional sequer na condição de testemunha, que dizer de uma norma que pretende tornar o advogado o delator de seu cliente?

Sem embargo, parece inquestionável no cenário atual que os advogados postulantes ao Poder Judiciário, ou que tenham sua atuação de qualquer forma relacionada a litígios e atividades contenciosas, não são alcançados pelas obrigações de identificação/cadastro de clientes e comunicação de atividades suspeitas (arts. 10 e 11).

Diferente não haveria de ser, pois já se consagrou que “sem a confidência, ampla e sem reserva, do cliente ao advogado, não há possibilidade de uma defesa eficiente, e a confidência, para que se efetive, precisa estar amparada e garantida pela inviolabilidade do segredo profissional. Somente debaixo desta condição o cliente não terá receio algum de dirigir-se ao advogado. E o dever do segredo profissional e sua inviolabilidade, essencial ao direito de defesa é uma consequência do mesmo”.[13]

Não menos evidente, contudo, deve ser o reconhecimento de que mesmo a advocacia consultiva e a prática de direção e assessoria jurídica, assim considerados atos privativos de advogado, estão acobertada pelo sigilo profissional e, portanto, impossível seria pretender sua sujeição às obrigações administrativas contempladas pela nova lei.

Se de um lado traz-se à baila o direito a ampla defesa, constitucionalmente assegurado (art. 5º, LV), para demonstrar que o sigilo profissional acobertaria a representação contenciosa desempenhada por atos privativos de advogados, impedindo suposto dever legal de comunicação de atividades suspeitas praticados por seus clientes; de outro, não menos importante, está a garantia assegurada por nosso ordenamento jurídico contra a autoincriminação ― o direito de não produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere), contemplado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, ‘g’), norma com eficácia supralegal em nosso ordenamento jurídico.[14]

Logicamente, ao transformar os advogados que atuam em consultorias e assessoramentos na figura de delatores dos seus clientes, a legislação estaria invertendo os papéis institucionais, subvertendo a garantia que veda a autoincriminação dos próprios clientes e inviabilizando a prática de uma advocacia democrática e depositária de confiança pública.

É evidente que a redução do advogado, profissional a quem o cidadão deposita total confiança, à condição de informante dos órgãos de controle de atividade financeira equivale a eliminar a garantia de não produção de prova contra si, já que dessa forma o advogado seria apenas uma ponte para as informações alcançarem as autoridades controladoras.

O sigilo reservado às atividades privativas de advocacia é constitucionalmente assegurado e, como demonstrado, seus contornos estão delimitados pelo Estatuto da Advocacia e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB. A nova lei não faz menção expressa à obrigação dos advogados no cumprimento das medidas de cadastro dos clientes e comunicação de atividades suspeitas de lavagem, o que se poderia mesmo entender como silêncio eloquente por parte do legislador.

Todavia, ainda que cláusula expressa houvesse, imperioso seria reconhecer a prevalência da legislação especial que trata dos advogados (Estatuto da Advocacia e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB), nos termos constitucionalmente preestabelecidos, pois, não é demais lembrar, as regras mais elementares de hermenêutica estabelecem que lei geral posterior não tem o capacidade de revogar lei especial (“lex posterior non derogat legi piori special”).

Com efeito, o ordenamento jurídico sistematicamente interpretado não permite solução outra senão o reconhecimento da extensão do sigilo profissional a todos dados obtidos mediante a prática de atividade privativamente reservada à advocacia: sejam eles ligados à postulação ao Poder Judiciário, quer restrinjam-se a consultas ou assessoramento jurídicos.

Não há de se confundir a advocacia com as demais atividades praticadas pelos sujeitos contemplados no art. 9º da nova lei. Tratando-se a advocacia de serviço público e função social, o profissional que a desempenha “é rigorosamente obrigado a manter segredo do que lhe foi confiado na qualidade de advogado: qualquer forma, em qualquer circunstância, em qualquer momento, ele não pode trair a confiança que lhe fora depositada."[15]

Importante sublinhar, contudo, que não se pretende atribuir imunidade ao advogado para a prática da conduta de lavagem dinheiro. Muito pelo contrário. Caso o profissional contribua dolosamente para a incorporação de recursos provenientes de atos ilícitos na economia, realizando, concebendo ou planejando operações, de modo a ocultar ou dissimular a origem dos valores, incorre sem qualquer ressalva na prática do crime de lavagem de dinheiro.

Porém, ainda nesses casos é de rigor que se reconheça a inexigibilidade de que o advogado criminoso sujeite-se às obrigações administrativas impostas pela nova lei (arts. 10 e 11). O fundamento, todavia, não é o sigilo profissional.

Em casos de atuação ou participação dolosa do advogado na prática de crimes de lavagem de dinheiro, sua função não está acobertada pelo sigilo, pois não constitui atividade jurídica. Trata-se, pois, de atividade criminosa: nesse caso, é o princípio da vedação à autoincriminação do próprio advogado (na condição de autor ou partícipe do crime) o que justifica a inaplicabilidade de eventual dever de comunicação que se lhe pretenderia estender.

Dessa maneira, conclui-se pela inaplicabilidade dos deveres administrativos previstos arts. 10 e 11, quais, dentre outros, a (i) inclusão dos seus clientes em cadastro regulador ou fiscalizador e (i) comunicação de atividades consideradas suspeitas às autoridades competentes aos advogados, em todos os âmbitos de atuação do advogado. A uma, porque ao agir no exercício regular da profissão (representação contenciosa e consultoria, assessoria ou direção jurídicas) o sigilo profissional é absoluto, nos moldes consagrados pela legislação especial, não podendo ser restringido por uma norma geral; por outro lado, ao concorrer ou participar dolosamente de incorporação na economia de recursos provenientes de atos ilícitos, realizando, concebendo ou planejando operações, de modo a ocultar ou dissimular a origem dos valores, o princípio da vedação à autoincriminação do próprio advogado justifica a inaplicabilidade dos deveres de cadastro e comunicação.



[1] Art. 9o  Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: 

(...)

XIV - as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações:

a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; 

b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; 

c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; 

d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; 

e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e 

f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais

[2] PÉREZ, Manzano. Neutralidad delictiva y blaqueo de capitales: el ejercicio de la abogacía y la tipicidade del delito de blanqueo de capitales, p. 14. <http://www.larioja.org/upload/documents/684320_LLP_N_53-2008.Neutralidad_delictiva.pdf >

[3] DE GRANDIS, Rodrigo. O exercício da advocacia e o crime de lavagem de dinheiro, p. 129.

[4] Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

[5] “1. O art. 133 da Constituição Federal, ao estabelecer que o advogado é "inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão", possibilitou fosse contida a eficácia desta imunidade judiciária aos "termos da lei". (HC 84446, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 23/11/2004, DJ 25-02-2005 PP-00029 EMENT VOL-02181-01 PP-00130 RTJ VOL-00192-03 PP-00974 LEXSTF v. 27, n. 316, 2005, p. 439-449 RMDPPP v. 1, n. 4, 2005, p. 124-131)

[6] Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

I - a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;

II - as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

[7] Art. 7º São direitos do advogado:

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia;

 

[8] Art. 34. Constitui infração disciplinar:

VII - violar, sem justa causa, sigilo profissional;

[9]Art. 7º São direitos do advogado:

XIX - recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional;

[10] CAPÍTULO III

DO SIGILO PROFISSIONAL1

Art. 25. O sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa.

Art. 26. O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte.

Art. 27. As confidências feitas ao advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte.

Parágrafo único. Presumem-se confidenciais as comunicações epistolares entre advogado e cliente, as quais não podem ser reveladas a terceiros.

[11] Violação do segredo profissional

 Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

 Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

[12] CPC: Art. 405. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.

§ 2o São impedidos:

III - o que intervém em nome de uma parte, como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes.

CPP: Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

[13] SERRANO, Antonio Fernandes. El secreto profissional de los abogados. Madrid, 1953, p. 8.

[14] 4. Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.
(HC 94702, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/10/2008, DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-03 PP-00583)

[15] "l'avocat est rigoureusement tenu de garder secret ce qui lui a été confié em as qualité d’avocat: sous aucune forme, sous aucun pretexte, à aucune époque, il ne peut trahir ce secret." (tradução livre)

LEMAIRE, Jean. Les Régles de la profession d’avocat et les usages du Barreau de Paris. 3ª ed, 1976. p. 441.