INTRODUÇÃO
O objetivo do presente ensaio é realizar uma análise do primeiro capítulo da obra “O pensamento selvagem”, “A ciência do concreto”, de Lévi-Strauss. Nesse capítulo ao qual será o objeto de estudo, Lévi-Strauss faz uma analogia entre o pensamento dos “selvagens” com o científico moderno. Vale pontuar, inicialmente, que para o autor o pensamento dos povos tribais é algo mais “concreto”, enquanto o pensamento científico seria baseado em conceitos mais abstratos. Lévi-Strauss faz uma breve critica a opinião de que os “selvagens” só classificam e conceituam aquilo que apresentar utilidade e aqui inicia-se a genialidade desse antropólogo.
II. O CONTEXTO
Baseando-se no trabalho etnográfico de vários etnógrafos e viajantes, o autor constata a riqueza do pensamento “selvagem”. Muitas sociedades, como os Hanunoo das Filipinas, classificam milhares de animais e insetos em mais de 450 categorias organizadas por semelhanças, e um número tão grande quanto este para os vegetais. Ainda possuem dezenas de classificações para as partes constituintes das plantas e animais. De acordo com Lévi-Strauss (1976), é claro que um saber tão sistematicamente desenvolvido não pode estar em função da simples utilidade prática”.
Com esta classificação feita pelos Hanunoo, Lévi-Strauss demonstra que há uma necessidade de se pensar por se pensar. Ele deixa explícito que o objetivo da classificação não é de ordem prática, mas de uma necessidade intelectual. O universo sem uma ordenação seria indistinguível do caos. A ordem no mundo insere através de princípios lógicos de oposição – como claro e escuro, sagrado e profano, alto e baixo e outros. Logo, as coisas precisam ser
1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Minas Gerais Instituto Superior de Educação “Dona Itália Franco”
agrupadas para poderem ser pensadas e relacionadas, assim como Lévi-Strauss citou esta passagem de Simpson:2
“Os cientistas suportam a dúvida e a derrota, porque não podem agir de forma diferente. Mas a desordem é única coisa que não podem nem devem tolerar. (...) o postulado fundamental da ciência é que a natureza mesma é organizada. (...) se é verdade que a sistemática consiste em tal ordenação, os termos sistemática e ciência teórica poderão ser considerados como sinônimos” (Simpson, G. Principles of animal taxonomy. In: Lévi-Strauss, 1976:29-30).
Neste trecho citado por Lévi-Strauss em sua obra, sabe-se que apesar de Simpson estar falando de ciência, fica evidente que o mesmo pode ser considerado para o pensamento “selvagem”. Aqui, então, Lévi-Strauss conclui que a classificação não é derivada da necessidade, mas pelo seguinte fato: as coisas são consideradas úteis e interessantes porque são primeiro conhecidas e classificadas. Como ele diz, “a exigência da ordem está na base do pensamento” (Lévi-Strauss, 1976, p.30).
Nota-se que o autor se baseia em um duplo princípio para conceituar a palavra classificação: o de universalização e o de particularização. Quando imaginamos um determinado objeto, de modo simultâneo, estamos singularizando-o como único no mundo e, desta maneira, universalizando-o como espécie. Assim, um indivíduo que, a exemplo, reconhecer uma determinada árvore em seu hábitat, logicamente reconheceria uma árvore da mesma espécie em outro local, mesmo que nunca o tivesse visitado, pois sua espécie já estaria classificada em seu pensamento. A espécie como operador lógico tem importância fundamental no pensamento lévistraussiano, pois é a parir dela que se torna possível integrar ao esquema classificatório de naturezas diferentes. Tomemos como exemplo a forma na qual um indivíduo agrupa árvores com determinadas características em comuns, em uma determinada espécie (uma palmeira, uma laranjeira, etc), simultaneamente, o pensamento agrupa árvores de diferentes espécies em uma mesma categoria3 de árvores. Desta forma, pode-se agrupar “árvores” e outras espécies similares em um mesmo conceito de “planta”, e assim sucessivamente. Não há sentido obrigatório para as classificações, portanto, tanto se pode, por exemplo, a partir de “árvore” classificar várias espécies diferentes, quanto a partir de várias espécies diferentes agrupá-las todas num mesmo conceito.
2 Simpson é um técnico moderno da taxinomia. 3 É imprescindível ressaltar que para Lévi-Strauss essas categorias, unidades fundamentais da língua, são produzidas sempre coletivamente, sendo a linguagem e o pensamento produtos sociais, nunca individuais.
A partir desse agrupamento, a espécie enquanto operador lógico assimila classificações de diferentes naturezas, podendo ligar uma categoria a outra, a mitos, à história, etc, dando "vida" ao pensamento. Na realidade, segundo o autor, o operador específico efetua a passagem tanto para o concreto e individual quanto para o abstrato e sistemas de categorias.
Nota-se que aqui se inicia a diferença do pensamento dos povos “selvagens”4 e o pensamento científico. Os povos “selvagens” construiriam seus conceitos a partir de características sensíveis, sendo portanto, seus pensamentos mais concretos; enquanto o pensamento científico se basearia em conceitos mais abstratos.
(...) os mitos e os ritos oferecem, como valor principal, ter preservado, até nossa época, de uma forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e continuam sem dúvida) exatamente adaptados a descobertas de um certo tipo: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativas do mundo sensível em termos de sensível. Esta ciência do concreto (...) não foi menos científica e seus resultados não foram menos reais. Afirmados dez mil anos antes dos outros, eles são sempre o substrato de nossa civilização (Lévi-Strauss, 1976, p.37).
A partir dessa classificação baseada na sensibilidade, o pensamento pode primeiramente sair do caos e posteriormente se autocorrigir e se complexificar cada vez mais.
Lévi-Strauss salienta que a forma básica de se pensar o mundo para os povos tribais é através dos mitos. Os mitos se pensariam através de um processo que o autor descreve como sendo muito semelhante à bricolagem.
A bricolagem é uma maneira de criar ou reorganizar as coisas a partir de um inventário já estabelecido. Para compreender o significado das coisas, o pensamento mítico agiria relacionando signos, elaborando uma espécie de diálogo para enumerar as respostas possíveis, baseado no que já existe sobre aquilo. Por consequência, uma mudança em algum ponto modificaria necessariamente a relação com o todo o restante.5 Assim, um pedaço de madeira, por exemplo, pode tanto significar um calço quanto material para a construção de alguma coisa. Como a imagem, o signo para Lévi-Strauss é um ser concreto, assemelhando-se ao seu conceito pelo seu poder de referência. Mas o signo e o seu significante não se referem exclusivamente, o significante sempre ultrapassa o seu significado, podendo ser relacionado a
4 Não devemos esquecer que o “selvagem”, para o autor, não é uma condição de raça ou estágio evolutivo, apenas uma maneira de organizar a sociedade, de fazer referência a povos que precederam à escrita. É o pensamento primeiro do homem, aquele pensamento não doméstico. O homem moderno não é, portanto, um ser mais evoluído, nem mais digno por ter um pensamento mais abstrato. Isso seria simplesmente uma característica peculiar da nossa sociedade. 5 Na distinção que Lévi-Strauss faz entre magia e ciência, a magia aparece como um determinismo mais global, enquanto a ciência distingue níveis, os quais não podem determinar outros níveis
outras coisas. Ao mesmo tempo, as unidades constitutivas do mito estão baseadas na linguagem, o que restringe a significação ao que está presente nela. Lévi-Strauss diz que essa relação não é diferente no pensamento científico. A diferença, para o autor é que, enquanto, por exemplo, o engenheiro tenta se colocar além dessa limitação, pensando a partir de conceitos (abstratos), o bricoleur permanece aquém, baseado ainda nos signos (concretos). O conceito abstrato aparece, portanto, para o autor, como o operador de abertura do pensamento, que vai possibilitar novas relações e novas significações. Apesar do pensamento mítico já ter as características de um sistema (sendo generalizador, pois, trabalha com analogias e aproximações), já sendo, portanto, científico, ele ainda é mais restrito do que o pensamento científico moderno. O pensamento mítico ordena e reordena a realidade até encontrar um sentido nas coisas, enquanto o pensamento científico abstrai, para atribuir outro sentido às coisas.6 Lévi-Strauss compara então o modelo da bricolagem com a arte e com a ciência. Para ele, a arte trabalha como numa escala reduzida, simplificando as coisas para se expressá-las, enquanto a ciência atuaria na ordem da metáfora, substituindo um ser por outro mais inteligível, mas sem diminuir sua complexidade. Nessa passagem, o autor fala da criação de uma obra de arte:
Que virtude se liga, pois, à redução, que seja esta de escala, quer afete as propriedades? Ela resulta, parece, de uma espécie de inversão do processo do conhecimento; para conhecer o objeto real em sua totalidade, temos sempre a tendência de proceder começando por suas partes. A resistência que ele nos opõe é sobrepujada com a divisão da totalidade. A redução da escala inverte esta situação: quando menor, a totalidade do objeto parece menos perigosa; pelo fato de ser quantitativamente diminuída, parece-nos qualitativamente simplificada (LéviStrauss. 1976:45).
Para o autor, a renúncia às dimensões sensíveis seria compensada pela aquisição de dimensões inteligíveis.
III. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De um modo geral, faz-se necessário fazer uma retomada ao assunto para concluir o que se decodifica da obra. Para reforçar a temática central do texto é cabível pontuar que Lévi-Strauss, ao empregar a palavra “primitivo”, não se dirige à condição do homem precedente à civilização, como condição de evolução da
6 Apesar disso, Lévi-Strauss diz que o pensamento mítico não é simplesmente prisioneiro dos acontecimentos, “é também libertador, pelo protesto feito contra a falta de sentido , com que a ciência estava, a principio, resignada a transigir”(Lévi-Strauss, 1976, p.43).
raça humana. O sentido se adequa ao contexto de referência ao homem inserido em uma vida cuja escrita era inexistente, um pensamento primeiro e não domesticado. Nessas condições o homem da sociedade moderna não é para ele um ser mais evoluído e nem mais digno por ter um pensamento mais abstrato. A exigência da ordem está na base do pensamento, operado por categorias produzidas coletivamente. A espécie como operador lógico tem função importante no pensamento de Lévi-Strauss, pois é a partir daqui que se torna possível integrar ao esquema classificatório domínios de natureza distintas.