A natureza jurídica da OAB e a aplicabilidade do regime jurídico do Direito Administrativo [1].

André Luís Oliveira[2]

Leonardo Valles Bento[3]

RESUMO

Trata-se da análise da natureza jurídica de uma autarquia profissional, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a qual é incumbida da inscrição de certos profissionais e de fiscalizar sua atividade. O tema está diretamente relacionado ao sentido de autarquia como entidade da administração pública indireta. Apresentaremos alguns conceitos acerca das entidades que compõem a administração indireta, essencialmente quanto ao conselho de classe desempenhado pela OAB e ao seu poder de polícia, bem como retrataremos as decisões dos Tribunais Superiores em relação à apreciação da sua natureza jurídica.

Palavras-chave: Administração Indireta. Autarquia. OAB

 

1 INTRODUÇÃO

A Administração Indireta do Estado é o conjunto de pessoas jurídicas administrativas ou entidades, que tem o objetivo de desempenhar atividades administrativas de forma descentralizada. Tais pessoas administrativas devem estar vinculadas à respectiva Administração Direta.

Os mecanismos de descentralização têm como característica especifica o fato de não haver controle hierárquico entre a Administração Pública Direta e a pessoa jurídica da Administração Pública Indireta, havendo entre ambas uma espécie diferencial de controle que visa a realização de uma análise finalística.

Enquanto a Administração Direta se constitui de órgãos, a Administração Indireta se compõe de entidades dotadas de personalidade jurídica própria. Essas entidades estão dispostas em quatro categorias com particularidades que as diferem das demais, são elas: Autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações públicas.

Sobre autarquia vejamos o disposto no art. 37, XIX, da CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional n°19/98: “Somente por lei especifica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação.

Como se percebe, as Autarquias serão criadas por lei e adquirirão personalidade jurídica quando da entrada em vigor de sua lei geratriz. Logicamente, em obediência ao princípio da simetria, apenas por lei as autarquias deverão ser extintas. Tendo em vista a temática e os objetivos deste trabalho, as demais entidades componentes da administração pública indireta – Sociedades de Economia Mista, Empresas Públicas e Fundações – não serão aqui analisadas.

Um dos aspectos distintivos mais relevante reside no objeto da entidade que deve ser compatível com sua natureza jurídica, o art. 26 da EC n 19/98, relativo à reforma do Estado, preconiza que “ no prazo de dois anos da promulgação desta Emenda, as entidades da administração indireta terão seus estatutos revistos quanto à respectiva natureza jurídica, tendo em conta a finalidade e as competências efetivamente executadas.”

O termo autarquia significa autogoverno ou governo próprio, no entanto na ciência jurídica tem o sentido de “pessoa jurídica administrativa com relativa capacidade de gestão dos interesses a seu cargo embora sob o controle do Estado”. No entanto, até mesmo este sentido configura-se incoerente, pois existem outras categorias de pessoas administrativas que também procedem à gestão de seus interesses que não são autarquias.

Segundo FILHO (2011, pág.428) “[...] pode-se conceituar autarquia como a pessoa jurídica de direito público, integrante da Administração Indireta, criada por lei para desempenhar funções que, despidas de caráter econômico, sejam próprias e típicas do Estado.” São exemplos de autarquias federais mais conhecidas o INSS – Instituto Nacional de Seguro Social; o IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária entre outras autarquias inclusive no âmbito estadual e municipal.

Feitas tais considerações, se faz oportuno adotar algumas conceituações, transcrevendo o disposto no art. 5º, I, do Decreto-Lei 200/1967, que define a autarquia da seguinte forma:

Autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios para executar atividades típicas da Administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.

Desta forma, procuraremos neste artigo, analisar a natureza jurídica de uma Autarquia Federal, denominada ‘Ordem dos Advogados do Brasil’ (OAB). Em linhas gerais a OAB é uma autarquia profissional ou corporativa que está incumbida da inscrição de certos profissionais a ela submetidos, bem como da fiscalização de suas atividades. A OAB é regida pela Lei n° 8.906 de  4 de julho de 1994.

2 AS FINALIDADES DA OAB E SUA NATUREZA JURIDICA

Dentre as principais finalidades da OAB, destacam-se
(atual Estatuto da OAB, art. 44):

  • Impor aos advogados o cumprimento das obrigações legais e regulamentares, conforme, aliás, já dispunha o art. 141, § 14, da Constituição Federal de 1946: "É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer";
  • Defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, e pela rápida administração da justiça;
  • Lutar pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
  • Promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil;

A Constituição Federal de 1988 eleva a profissão de advogado, estabelecendo que: "O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei" (art. 133)
Para que tais fins sejam plenamente atingidos, é necessário que seja feita uma seleção rigorosa entre os formandos das Faculdades de Direito, para permitir que somente profissionais capacitados passem a fazer parte do quadro de inscritos na OAB.

Para o Prof. Dr. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, autoridade do Direito Público brasileiro: "A natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil é a de corporação pública ou corporação de direito público, espécie do gênero autarquia, ao lado da fundação pública ou fundação de direito público. Pelo substrato, pela índole estrutural, a Ordem dos Advogados do Brasil é corporação, porque constituída de um conjunto de pessoas. A corporação é constituída de membros, associados ou corporados, de indivíduos que se agrupam formando o corpus.

3 AUTARQUIAS PROFISSIONAIS

Em relação às autarquias profissionais, devem ser feitas algumas considerações. A Lei n° 9.649, de 27.05.98 que teve o objetivo de reorganizar a administração federal, em seu art. 58, passou a estabelecer que os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas seriam exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa. Admitia, também, que os conselhos de fiscalização teriam personalidade jurídica de direito privado, sem vinculo funcional ou hierárquico com os órgãos da Administração Direta. Sua organização e estrutura seriam fixadas por decisão interna do plenário e os litígios de que fizessem parte seriam de competência da Justiça Federal.

Todos esses dispositivos, acima elencados, foram declarados inconstitucionais pela ADI 1.717 de 28.03.2003. Decisão coerente já que é inconstitucional delegar a entidade privada atividade típica do Estado, principalmente quando estão incluídos nesse rol o exercício do poder de policia e de tributação.

Vale ressaltar que na ADI n° 3.026/2006 o Procurador da república, enquanto legitimado, enalteceu o caráter autárquico da OAB, na medida em que exerce poder de polícia fiscalizatório, típico poder da Administração, é entidade criada por lei, possui personalidade jurídica própria, é capaz de se auto administrar e atua no exercício de atividade pública e específica do Estado.

Em oposição a tal tese, manifestando-se acerca da ADI, o STF afirmou que:

[...] não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. A OAB não está incluída na categoria da qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’. Por não se consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não esta sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não vinculação é formal e materialmente necessária” (Relator: Ministro Eros Grau; julgamento:8-6-2006, pelo Tribunal Pleno, DJ 29-09-2006).

Portanto, diante das citadas controvérsias e duvidas em relação à natureza jurídica da OAB, decidiu-se que tal Autarquia não integra a Administração Indireta da União, sendo uma entidade independente, não estando vinculada a qualquer órgão administrativo, nem sob a égide do controle ministerial. Seu pessoal é regido pela CLT, mas não se submete a exigência de prévia aprovação em concurso público.

Ademais, as contribuições paga pelos inscritos não tem natureza tributária; não lhe é aplicada a Lei n° 6830/80 que rege o processo de execução fiscal. Por outro lado, a entidade não se sujeita às normas da Lei n° 4.320/64, nem ao controle contábil, financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial exercido pelo Tribunal de Contas da União.        

4 DECISÃO DO STF (ADI 3.026/2006)

Em decorrência da decisão do STF, acima apresentada, uma entidade de classe, a OAB, que deveria ser entendida e enquadrada como uma autarquia, passa a ser tida como uma pessoa jurídica ímpar no ordenamento jurídico. Acontece que as entidades de classe, enquanto autarquias, sujeitam-se a regras constitucionais próprias, com o objetivo de atender a moralidade e impessoalidade e demais princípios que regem a Administração Pública, devendo, portanto, realizar concurso público, licitações, se submeter ao crivo do Tribunal de Contas e à contabilidade pública.

Portanto, a OAB foi privilegiada por esta decisão da Suprema Corte por não ter que atender as referidas peculiaridades. Neste sentido, vale ressaltar o que preceitua FILHO (2011, p.434) sobre a questão:

Ninguém discute que a OAB é instituição de grande importância e expressivo reconhecimento social, tendo já prestado relevantes serviços a nação em prol da democracia e dos direitos da cidadania. Merece, portanto, todo o respeito por parte da sociedade. Mas, afirmar-se, como afirmou o STF, que se trata de entidade impar, não comparável às demais instituições fiscalizadoras de profissões, constitui discriminação em relação a estas últimas, já que o objetivo nuclear de todas é o mesmo – a regulamentação e a fiscalização do exercício de profissões. Outra anomalia é o fato de não integrar a Administração Indireta. Se presta serviço público indelegável, como foi reconhecido pela mais alta Corte, e exercendo poderes especiais de Estado, como o poder de policia, não se compreende qual sua real posição no sistema de governo, sem que esteja integrada na administração descentralizada do governo federal.

Aí reside a incongruência, porque a OAB, embora seja um serviço público, não obedece a normas próprias deste sistema. O fato de não realizar licitação, por exemplo, implica na conseqüência de que a mesma não necessariamente irá contratar por meio de uma seleção que proporcione a escolha mais conveniente para a celebração de contrato. É no mínimo estranho o entendimento segundo o qual a OAB pode ter seus servidores sob o regime celetista e as demais autarquias profissionais devem sujeitar-se ao regime estatutário disposto na Lei n° 8.112/90. Configura-se tratamento jurídico discriminatório para entidades com idêntica situação jurídica, isto sem qualquer suporte legal.

Ademais, é de se questionar qual o foro competente para analisar as causas em que a OAB for parte, posto que a competência da Justiça Federal é taxativamente prevista e não inclui a modalidade de personalidade jurídica impar.

Acerca do tema é válido ratificar o que assevera a doutrina expressa em Di Pietro (2010):

Com essa decisão, a OAB passa a ser considerada como pessoa jurídica de direito público no que esta tem de vantagens (com todos os privilégios da Fazenda Pública, como imunidade tributaria, prazos em dobro, prescrição qüinqüenal etc.), mas não é pessoa jurídica de direito público no que diz respeito às restrições impostas aos entes da Administração Pública direta e indireta (como licitação, concurso público, controle).

Portanto, resta evidente a discriminação em relação ao tratamento dado às autarquias em geral e a OAB especificamente. Ao longo do exposto percebemos a ofensa a vários princípios que regem o Direito Administrativo, tais como: pela ausência de prestação de contas da entidade, fere-se o principio da publicidade e da transparência; pela não necessidade de concurso público, licitação e quanto ao regime jurídico do seu pessoal, em ofensa ao principio da isonomia e da moralidade administrativa.

A decisão da Suprema Corte se torna ainda mais indevida quando observamos de fato que a OAB exerce típica função estatal revelada no seu poder de polícia fiscalizatório, posto que é o órgão representativo da classe dos advogados, atuando de forma a regular e fiscalizar o exercício desta categoria profissional. Desta forma, um ato próprio de Estado se encontra entregue nas mãos de um ente mais peculiarmente privado do que público, segundo o STF, o que se mostra inaceitável.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática aludida neste artigo decorre em parte da decisão do STF, a qual enseja inserir em nosso ordenamento jurídico uma situação que fere a isonomia constitucional, por diferenciar entidades de classe com mesmas atribuições.

Como apreciada, entendemos ser inconstitucional a forma do tratamento dispensado à OAB em detrimento das demais categorias profissionais, contrariando o sistema jurídico e violando preceitos constitucionais próprios como, por exemplo, o dever de licitar.

Desta forma, independente da discussão aqui estabelecida, não podemos dizer que a OAB tem natureza jurídica especial e única, sui generis, sendo pessoa jurídica de direito público interno, que executa serviço público federal, porém não equiparável à autarquia nem à entidade paraestatal, isto seria um erro. O art. 139, § único, do antigo Estatuto da OAB dispunha que "Não se aplicam à Ordem as disposições legais referentes às autarquias ou às entidades paraestatais".

Pessoa Jurídica ímpar é pública ou privada? Pessoa ímpar paga imposto? Tem privilégios processuais? É julgada pela Justiça Federal ou Estadual? Porque na CF no art. 109 tem a competência da justiça federal não se referindo à pessoa ímpar. Portanto a OAB é pessoa jurídica ímpar, ela não está na Administração Indireta, não está entre os demais Conselhos de classe, não está na lista de autarquias especiais, ou seja ela tem o tratamento de uma autarquia para os privilégios e vantagens, mas não tem o tratamento de pessoa jurídica de direito público para as restrições impostas. Sendo uma figura jurídica ímpar na seara das nebulosidades típica de um poder jurídico corporativista e complacente. Resta portanto, que o STF reavalie urgentemente esta situação a fim de adequar tal fato a conformidade do nosso sistema jurídico pátrio.

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira).

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 24° Ed. rev. amp e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011

CRETELLA JÚNIOR, José. Administração indireta brasileira: autarquia, concessionária, permissionária, fundação pública, corporação pública, empresa pública, sociedade de econom. 2.ed.atual. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1987. 615 p.

PIETRO. Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.



[1] Paper apresentado à disciplina Direito Administrativo, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Aluno do 7° período, do curso de Direito, da UNDB

[3] Professor Orientador.