A natureza ideológica das reformas econômicas implementadas por Fernando Henrique Cardoso: a social-democracia e o neoliberalismo

Sancha Maria F. C. R. Alencar

As reformas econômicas implementadas por Fernando Henrique Cardoso tiveram um cunho eminentemente neoliberal, na medida em que visavam reduzir os custos financeiros do Estado, tanto em nível da União, como em nível dos demais entes federados, que, em virtude da maior atribuição de competências que receberam com a Constituição de 1988, estavam realizando um denominado "federalismo predatório", trazendo instabilidade na ordem macroeconômica.

O período que vai de 1981-1992 é conhecido como a "década perdida" do Brasil, como traz BRUM[1], em virtude do grau de estagnação econômica deste período. Mas, apesar da população ter enfrentado superinflação, houve uma grande modificação: a transição pacífica do regime ditatorial para o republicano, positivando-se as instituições democráticas, para proteger os direitos civis, políticos, sociais e econômicos dos indivíduos.

Depois de uma década de crise econômica, o Governo de Itamar Franco começou a moldar-se para as reformas que adviriam no Governo de Cardoso, principalmente a partir de 1993, quando este foi Ministro da Fazenda e lançou o Programa de Ação Imediata (PAI), conseguindo, através do Plano Real, trazer a estabilização da moeda. Para superar esta crise, foi preciso muito esforço e planejamento, controlando a inflação, equilibrando os preços e salários, reduzindo a irresponsabilidade fiscal dos governantes, saneando financeiramente o setor público.

Para FABIO GIABIANGI[2], as mudanças mais importantes, que ficaram como herança para o futuro, dos oito anos de gestão de FHC foram: a privatização; o fim dos monopólios estatais nos setores de telecomunicações e energia; mudança em relação ao capital estrangeiro; saneamento do sistema financeiro; reforma, ainda que parcial, na Previdência Social; renegociação das dívidas estaduais; aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal; ajuste fiscal; criação de agências reguladoras; estabelecimento do sistema de meta de inflação.

Com as privatizações, possibilitou-se uma diminuição dos gastos públicos com empresas estatais deficitárias, transferindo à iniciativa privada atividades anteriormente exploradas pelo setor público. Assim, o Estado ia deixando de ser interventor direto, para assumir uma postura de gerenciador e regulador.

Quanto aos entes estatais, eles tinham autonomias e prerrogativas para fomentar a economia, possuindo bancos, emitindo títulos da dívida pública, possuindo diversas empresas estatais, acarretando um choque entre as diretrizes econômicas impostas pela União, o que acabou por enfraquecê-la, impossibilitando-a de controlar a moeda nacional e gerir o sistema econômico. Assim, era imprescindível uma reforma que possibilitasse à União o controle das metas econômicas, a fim de permitir a estabilização da economia, nos dizeres de DAVID SAMUELS[3].

Apenas quando no Governo FHC houve uma renegociação da dívida dos Estados, e concessões mútuas entre o presidente e os Governadores, sendo estes compelidos a venderem suas estatais, a desfazerem-se dos seus bancos, a não mais emitirem títulos da dívida pública e, a sujeitaram-se à Lei de Responsabilidade Fiscal, foi que houve uma reestruturação da ordem macroeconômica, passando, pois, ao nível federal o controle das diretrizes e planejamentos para setores específicos e essenciais da economia.[4]

Para o saneamento do sistema financeiro, foram necessárias várias medidas, entre elas a privatização dos bancos estaduais; a instituição do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, que permitia uma linha especial de assistência financeira; ampliação dos requisitos para a criação de bancos, inclusive permitindo a entrada de bancos estrangeiros, para aumentar a concorrência, passando a acompanhar e monitorar de forma mais rigorosa o funcionalmente do sistema financeiro através do Banco Central.

Grande significância teve a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), que trouxe limites para as despesas com pessoal para cada um dos entes federativos, proibição de renegociação das dívidas entre as esferas da Federação. Além disso, houve uma série de ajustes fiscais e restrições orçamentárias, visando combater a falta de controle das contas públicas, impondo severas sanções à sua desobediência.

Ressalte-se, entretanto, que embora estas reformas tivessem cunho neoliberal, não se pode atribuir um sentido pejorativo ao mesmo, como se para buscar os seus ideais tivesse que eliminar totalmente avanços sociais e políticas públicas, pois, tal assertiva não é verdadeira. Tanto que, durante o Governo FHC, também houve investimentos no social, através da criação e aprimoramento de diversos programas sociais, como trouxe GIABIANGI[5], entre eles o Bolsa-Escola, o Bolsa-Renda e o PETI.

Saliente-se que, na visão de BRESSER PEREIRA[6], as reformas econômicas mencionadas visavam ao desenvolvimento do Brasil, de seu mercado, como também buscava o equilíbrio macroeconômico, não tendo, como defendem alguns, sido implementadas para agradar burocratas e investidores financeiros internacionais.

Em relação à existência ou não de contradição entre o neoliberalismo e a social-democracia, não se pode esquecer que há divergência doutrinária quanto a isto, pois, muitos doutrinadores conceituam o neoliberalismo de forma preconceituosa, como uma forma dos grandes capitalistas e empresários internacionais imporem suas ordens, agravando a desigualdade social e a miserabilidade, neste sentido tem-se PAULO BONAVIDES[7].

Outros, entretanto, como ANDRÉ RÉGIS[8], observam que não há divergência entre o neoliberalismo e a social-democracia, já que as duas ideologias têm um fim em comum, que é o desenvolvimento econômico e social, garantindo uma vida digna para todos. Inclusive mencionando a união das duas ideologias, constituindo a denominada "terceira via".

Pelas próprias reformas que foram verificadas no Estado Brasileiro na década de 90, percebe-se que não há contradição entre o neoliberalismo e a social democracia, podendo, um Estado Social-Democrata implementar medidas neoliberais, sem perder sua característica como tal. Como relata ANDRÉ RÉGIS: "Ao final, pretendo que fique claro que mesmo após todas as reformas neoliberias realizadas no Estado Brasileiro a partir do início dos anos 90 do Século XX, é um equívoco considerar o Brasil como sendo um estado neoliberal."[9]

O neoliberalismo se aproxima do liberalismo, na medida em que rejeita a intervenção direta do Estado na economia, o Estado deixa de ser empresário para se tornar árbitro. As privatizações, a livre concorrência, a ênfase ao mercado e ao consumo são características deste tipo de pensamento, que defende o sistema de vantagens comparativas, busca a desburocratização e desestatização. Mas, muito embora os neoliberais privilegiem a liberdade de iniciativa, eles a atrelam a uma fiscalização mais eficiente por parte do Estado, nitidamente um papel de regulador, através de Agências Reguladoras. Conforme RAMOS TAVARES[10], apesar do modelo neoliberal ser acentuadamente liberal, não se pode descartar a sua contextualização social.

Para os sociais-democratas é necessário que o Estado atue na economia para estabelecer limites, pois a auto-regulação do mercado não consegue superar as crises cíclicas do sistema, além de que se faz imprescindível promover políticas sociais, fortalecendo as instituições públicas, nitidamente em determinadas áreas, visando à igualdade material dos indivíduos e o respeito à sua condição humana, preocupações estas inexistentes na política liberal, pois para eles o fracasso ou o sucesso é um mérito do desempenho dos indivíduos.

Por fim, observa-se que existe, inclusive, uma terceira via, que une as idéias neoliberais à social-democracia, demonstrando que estas ideologias não são excludentes, mas sim, podem se complementar, visando ao Estado de Bem Estar Social.



[1] Brum, Argemiro J. O desenvolvimento econômico brasileiro. 20 ed. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2005. p. 439.

[2] GIAMBIAGI, Fábio, VILELA, André ...(org.).Economia brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 182.

[3] SAMUELS, David. A economia política da reforma macroeconômica no Brasil, 1995-2002. (Trad.) Vera Pereira. Revista Dados. V. 46. N. 4. Rio de Janeiro: 2003. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582003000400006&lng=pt&nrm=iso&tl... - 103k. Acesso em: 23/10/2007.

[4] CARVALHO, André Régis de. (Tese) O novo federalismo brasileiro (trad. – versão preliminar ). 2006. Orientador: David Plotke . New School for Social Research, N.S.S.R., Estados Unidos.

[5] GIAMBIAGI, op. cit., p. 185.

[6] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Crise Econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996. p. 267.

[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 613.

[8] RÉGIS, André; MAIA, Luciano Mariz. Direitos Humanos, Impeachment e outras questões constitucionais. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2004. p. 89.

[9] RÉGIS, André; MAIA, Luciano Mariz. op. cit., p. 76.

[10] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006. p. 64.