Tempo nublado, mar agitado, água escura, talvez reflexo do cinza que emanava das nuvens que brincavam de correr pelo céu que prometia chuva a qualquer instante. Estava longe de ser um dia convidativo ao banho de mar, mas ela estava lá, como todas as manhãs.
Charlote adorava caminhar pelas areias nos primeiros minutos do dia e banhar-se no mar. Era frequentadora assídua da praia do Leblon, chegava antes de o dia amanhecer e quando os ditos "intrusos" de seu tão amado espaço começavam a surgir, ela se recolhia e partia envolvida em um longo lenço branco esvoaçante e com chapéu de abas enormes, que a protegia dos olhares curiosos que viam sua figura deslizando pelas areias como uma sombra passageira. Ninguém conseguia ver o seu rosto nem saber quem ela era. Conheciam-na apenas como a "mulher da praia".
Aquele dia, não era um de seus preferidos, pois amava o sol e o calor dele vindo, sentia-se revigorada em suas energias quando era possível senti-lo esquentar a pele, mas mesmo assim, não deixou de ir ao seu lugar mais querido, a praia. Porém não entrou no mar, somente caminhou na área e molhou os pés, ficando mais tempo que o de costume, como o dia não estava oportuno, os frequentadores não apareceram e a praia estava deserta como ela gostava. Andou por um longo tempo observando o mar revolto de águas gélidas ao ponto de adormecer seus pés. A chuva começava a cair e resolveu que já era hora de voltar para casa.
Ao chegar ao prédio em que morava, passou pela portaria de cabeça baixa deu bom dia entre os dentes e subiu de escadas para evitar cruzar com alguém no elevador, sempre que podia escapava do confronto com os vizinhos. Entrou em casa, um pequeno e sombrio apartamento de quarto e sala, cheio de quadros e figuras penduradas pelas paredes que não tinham mais lugar para nada. Tomou um rápido banho, serviu-se de uma xícara de café quente e forte e partiu rumo à galeria de artes que mantinha em sociedade com uma amiga recém chegada da França. Quem a visse passar de forma exuberante, linda em um vestido azul escuro, botas pretas e um longo casaco da mesma cor, jamais poderia imaginar que se tratava da mesma pessoa lúgubre e escamoteada que circulava na praia pela manhã. O porteiro do prédio, mesmo sem nunca ter visto as duas ao mesmo tempo, o que seria impossível, acreditava categoricamente que moravam duas pessoas no apartamento. No início, quando Charlote mudou para o prédio, ficou em dúvida, afinal sempre a via sozinha, mas com o passar do tempo, se convenceu de que eram duas as moradoras do apartamento 301.
Chegou à galeria antes de abrir, gostava de se antecipar a tudo, ser a primeira sempre. Estava preparando a exposição de um jovem pintor Frances, que como ela escolhera o Brasil para viver. Gostava de lançar artistas, apresentá-los ao mundo das artes, era boa nisso, entendia do que fazia. Charlote era jovem, porém ambiciosa e decidida, havia vindo da França para o Brasil há apenas dois anos a fim de aplicar seus conhecimentos no mercado das artes e já havia se estabelecido como uma das mais conceituadas marchand para os pintores brasileiros iniciantes.
Às onze horas da manhã quando a galeria abriu e sua sócia chegou, já havia dado vários telefonemas em prol do evento que iria acontecer no dia seguinte.
- Bonjour, chérie, chegando cedo como sempre..., disse Anne ao entrar na galeria e ver a sócia em plena atividade, enquanto ela ainda parecia dormir.
Charlote vendo as feições de Anne, que parecia não ter saído da cama, levantou foi até a cafeteira encheu uma xícara de café e lhe estendeu, tendo a mesma feito cara feia, mas aceitando em seguida.
Anne era uma amiga dos tempos da escola em Lyon, pessoa pouco interessante e sem ambição segundo o julgamento criterioso de Charlote. Mas que servia bem aos seus interesses financeiros, afinal tinha capital e disposição para investir no mercado dispendioso como o das artes e estava sem destino certo na vida quando recebeu a proposta da sociedade, achando ser uma ótima oportunidade de deixar a França e vir para o calor dos trópicos.
O dia foi de muito trabalho, com o acerto de todos os detalhes para a exposição, nada poderia dar errado, seria a primeira de um artista internacional promovida pela galeria que mesmo se tratando de um novato era de suprema importância, pois só o fato de ser Frances já dava certo estilo e disso Charlote entendia e gostava. Às dezessete horas deixou a galeria, a tarde estava fria e uma chuva fina começa a cair. No caminho para casa comprou uma garrafa de seu vinho predileto que tomou até a última gota antes de se entregar a um sono profundo se deixando relaxar do estresse do longo dia.
Antes de amanhecer já estava na praia, o dia estava fechado como o anterior, porém mais frio, mas nada que pudesse tirá-la de seu tão valoroso passeio matinal. ? Pensando bem, os dias sem sol não são de todo mal, afasta as pessoas da praia e posso tê-la só para mim, pensou enquanto caminhava de forma descontraída pensando estar sozinha, porém ela estava enganada, havia alguém sim e um alguém que há muito a observava de longe sem se fazer perceber.
Chegou antes das sete horas da manhã a galeria, estava ansiosa para a exposição, embora tivesse certeza de que tudo estava pronto queria revisar todos os detalhes, era perfeccionista e não sabia delegar nada, tinha que estar no comando.
Um pouco antes do horário previsto os primeiro convidados começaram a chegar, a publicidade feita foi intensa criando um ar de mistério em torno do novo artista o que causou de fato um efeito positivo fazendo com que todos estivessem aflitos para enfim conhecer a obra de tão falado pintor. Estava indo tudo muito bem, acima até das expectativas de Charlote, embora ela mesma não admitisse, pois fazia questão de demonstrar que tinha o controle de tudo, até das emoções. A galeria estava repleta de artistas, figuras da sociedade, políticos, jornalistas, celebridades dos vários níveis, um verdadeiro sucesso. E ela, desfilava deslumbrante pelos corredores, vestia uma capa longa verde musgo com apliques de bordados pretos e botas altíssimas de cano longo, sempre no estilo clássico que lhe dava um ar de muita elegância. Os convidados oscilavam entre apreciar as telas e a beleza de Charlote que não se fazia de rogada, aceitando todos os elogios a ela dispensados, porém sempre mantendo certa distância.
Após umas duas horas do inicio do evento surge uma nova figura, até então não vista no ambiente, um homem alto de cabelos negros penteados cuidadosamente para trás, sem nem um fio fora do lugar. Usava terno preto, cachecol cinza ao redor do pescoço e uma bengala que parecia somente acessório, pois não aparentava precisar de seu auxilio para locomoção. Charlote não notou a presença do novo convidado, mas ele a observava atentamente a cada movimento e após alguns instantes se retirou da mesma forma discreta que chegou.
Ao final da exposição, Charlote e Anne foram verificar o resultado junto ao responsável pelas vendas e foram surpreendidas com a notícia da venda de todos os quadros para um único comprador que não se identificou. O pagamento foi feito em dinheiro através de um portador com uma única exigência, a de que Charlote fosse pessoalmente entregar os quadros no final do dia seguinte no hotel que estava hospedado. Charlote estava acostumada a compradores excêntricos, antes do Brasil já havia sido dona da galeria em Paris, mas nunca havia tido uma exigência como aquela, relutou por um instante, mas depois cedeu, não achou ser de bom tom não atender a um pedido de um consumidor tão disposto a investir no mercado das artes.
Quando saíram da galeria, Charlote, Anne e Arnaud o pintor dos quadros, foram jantar e beber um bom vinho Frances, afinal a exposição havia sido um sucesso, precisavam comemorar. Ficaram no restaurante até bem tarde conversando animadamente e nem notaram que estavam sendo observados por um senhor sentado em uma mesa no final do salão.
O dia amanheceu ensolarado, sem uma só nuvem no céu, nem de longe se parecia com a sombria manhã anterior. E Charlote aos primeiros minutos já estava no mar a se deliciar com o frescor das águas frias que recebiam os raios de sol que riscavam as ondas de forma harmônica e cadenciada. O mar estava calmo, o que permitiu que pudesse nadar e ficar relaxando por algum tempo, não muito, pois com o sol vieram também as pessoas que Charlote abominava a presença em seu santuário sagrado que era a praia. Saiu quase que correndo da água quando avistou os primeiros "intrusos", se enrolou em seu longo lenço, colocou seu chapéu com abas protetoras e partiu em retirada.
Decidiu que aquele dia não iria à galeria, tiraria para descansar e ler um pouco, outra arte que apreciava muito. Porém no meio da tarde recebeu uma ligação de Silva, secretária da galeria, lhe lembrando do compromisso de ir entregar os quadros pessoalmente ao comprador misterioso. ?Oh, mon Dieu Silva... Havia esquecido!... Exclamou ao ouvir a secretária e em meia hora estava na galeria para apanhar os quadros e levá-los ao hotel indicado pelo comprador.
Ao chegar ao hotel se anunciou na recepção sendo autorizada a subir a suíte solicitada onde foi recebida por uma governanta que a pediu que esperasse na sala que logo seria atendida. Era um moderno e luxuoso hotel, porém não agradava aos patrões de Charlote que apreciava as decorações mais clássicas no estilo europeu. Mas não podia deixar de admitir que se tratasse de alguém de vastos atributos financeiros a pessoa a quem havia ido procurar, e isso lhe interessava. Após quase quarenta minutos de espera já estava impaciente, andando de um lado para o outro, quando surgiu um jovem se dizendo secretário do comprador anunciando que o mesmo não poderia recebê-la e que os quadros deveriam ser entregues a ele, apresentando o recebido do pagamento feito no dia anterior na galeria pelas obras.
- Mas por quê? Algum problema? Estava furiosa, mas manteve o controle fingindo preocupação e após examinar o recibo e comprovar a veracidade entregou os quadros e se retirou.
Foi esbravejando por todo o caminho até chegar em casa onde entrou chutando os sapatos e gritando em francês vários palavrões que dedicou ao misterioso comprador, - Quem ele pensa que é para me fazer de tola, me obrigando a ir até ele e não me receber? Pensou antes de entrar debaixo do chuveiro frio para se acalmar.
No dia seguinte pela manhã quando voltou de seu passeio, foi abordada pelo porteiro que lhe entregou um envelope, o qual pegou de cabeça baixa e seguiu pela escada como de hábito quando chegava da praia.
Ao entrar em casa, rasgou o envelope e leu: - Merci madame, por atender ao meu pedido de entregar os quadros pessoalmente. Desculpe não ter podido recebê-la. Espero-a amanhã nos primeiros minutos do amanhecer para passearmos juntos pela praia, sei onde encontrá-la ? Estava estática quando acabou de ler, como ele podia saber de seus passeios pela praia? Como? ? Afinal quem é ele?... Pensou aflita.
Charlote era uma mulher misteriosa, como o porteiro do prédio pensava, ela realmente parecia duas pessoas distintas. Os passeios pela praia eram guardados a sete chaves, fazia questão de se manter anônima, não admitia dividi-los com ninguém. Lá estava seu lado livre, descontraído e até mesmo frágil onde a única ambição era de desfrutar da sensação de liberdade que o mar lhe causava, totalmente diferente da mulher exuberante, altiva e até mesmo arrogante que coordenava a galeria de artes em busca de poder e sucesso.
A noite foi passada praticamente em claro, não conseguia parar de pensar quem era aquele homem que sabia mais sobre ela do que qualquer um que conhecia. Estremecia só de imaginar que ele pudesse tê-la visto em seus momentos de pura descontração. ? Mas como pode saber dos meus passeios? Nunca deixo meu rosto a mostrar... Terá me seguido?... Pensou durante toda a noite e quando faltava pouco para amanhecer resolveu levantar e fazer um café bem forte que bebeu devagar apreciando o raiar do dia pela janela. O sol estava a despontar e lamentou por não estar na praia vendo-o nascer, mas por mais vontade que tivesse não se sentia capaz e ter que enfrentar aquele desconhecido que pelo visto a conhecia muito bem. Ficou em casa lendo até uma hora que julgo ser conveniente para fazer algumas ligações de interesse da galeria. Depois entrou no computador e acabou por distrair-se só se dando conta que o dia já passava do meio, quando sentiu fome e parou para ver as horas: - Nossa! Duas da tarde..., resmungou e foi até a cozinha procurar por algo para comer passando pela sala e algo lhe chamou a atenção, um envelope por debaixo da porta. Apanhou e interfonou para o porteiro para saber se ele havia colocado lá e o mesmo disse que não e que também não tinha visto ninguém diferente de morador entrar no prédio. Desligou ainda com o porteiro falando do outro lado da linha e abriu o envelope. - Esperei por você durante toda a manhã. O sol estava ótimo como você gosta e a água do mar na temperatura ideal, foi uma pena não ter vindo. Irei esperá-la amanhã no mesmo lugar ? Acabou de ler e amassou o papel com força como que quisesse fazê-lo desaparecer e resolveu que na manhã seguinte iria até a praia acabar com aquela palhaçada, afinal não tinha porque estar se escondendo de alguém que nem sabia quem era. ? Amanhã acabo com isso, pensou indo em direção ao quarto trocar de roupa para ir à galeria, aquela altura havia perdido a fome.
Às cinco e quinze da manhã do dia seguinte, Charlote estava na esquina de sua rua pensando se deveria ou não ir até a praia que ficava dois quarteirões dali e depois de sentir que estava quase furando a calçada de tanto andar em círculos resolveu ir. Caminhou apressadamente e quando viu estava lá no meio da praia parada olhando para todos os lados. O dia foi nascendo aos poucos iluminado pelo fraco sol de inverno e as pessoas foram aparecendo e ela por debaixo de seu chapéu de abas enormes procurava rosto por rosto, mas não encontrou nenhum com a energia que sentiu nos bilhetes que recebeu, ficou ali até um moleque aparecer correndo e lhe entregar um papel onde dizia: - Adorei vê-la. Até manhã. - Maldito, esbravejou rasgando o papel em vários pedaços.
A partir daquele dia, suas idas a praia tornaram-se buscas incessantes pelo misterioso desconhecido que não se deixava ser visto, mas sempre a fazia saber que esteve lá e que a havia visto. Ela a cada dia se sentia mais furiosa, porém com as reservas mais baixas. Seu misterioso observador havia trocado de lugar com ela, agora era o rosto dele que não era visto e não mais o dela, que passou a não mais se proteger dos olhares alheios que foram deixando de ter interesse pela "mulher da praia" uma vez que ela mesma não mais se importava. Aos poucos foi perdendo seu ar enigmático, deixando a mostrar seu rosto que se tornou comum pelas areias da praia do Leblon. Até o porteiro do prédio finalmente pode vê-la de frente e olhá-la nos olhos em sua versão de "mulher da praia", em um dia que voltou para casa sem seu aliado chapéu. O pobre homem quase morreu de susto ao ter sua certeza desfeita de que no apartamento 301 moravam duas pessoas.

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Bia Tannuri

01-08-2011