A boca é o habitat de uma microbiota anfibionte diversa que inclui mais de 500 espécies identificadas, sendo muitas destas potencialmente patogênicas. Normalmente essa microbiota é representada por microorganismos inofensivos que em condições alteradas podem causar especialmente infecções dentárias de baixo grau, porém nos pacientes imunocomprometidos, tanto a microbiota anfibionte como a oportunista pode tornar-se patogenicamente perigosa e causar infecções severas, inclusive, atingindo a corrente circulatória causando infecções generalizadas (MEURMAN et al.1997). Nestes pacientes o alto risco de desenvolver infecções diversas é associado, principalmente, à neutropenia decorrente do próprio curso da doença ou como efeito colateral dos agentes terapêuticos (SIXOU, MEDEIROS-BATISTA, BONAURE-MALLET, 1996; MODEER, WONDIMU, 2000). Uma complexa interação de fatores contribui na etiologia de infecções, dentre os quais menciona-se doenças orais pré-existentes, perda da integridade da mucosa oral, comprometimento do sistema imunológico, xerostomia e proliferação descontrolada da microbiota anfibionte oral e/ou oportunista. Estes fatores são capazes de causar infecções graves que, além de comprometer a qualidade de vida e interferir nos protocolos de tratamento antineoplásico, podem representar risco à vida dos pacientes (MARQUES, WALKER, 1991; CHILDERS et al., 1993).Segundo Wright et al. (1985) e Fonseca (1998) a incidência e severidade das infecções em pacientes sob tratamento antineoplásico são inversamente proporcionais à contagem de neutrófilos no sangue circulante, devido ao comprometimento da defesa celular. Neste sentido Driezen et al. (1986) mencionaram que no paciente sob quimioterapia, por volta do quinto dia da medicação, geralmente ocorre o desenvolvimento de um período caracterizado por granulocitopenia e linfocitopenia, durante o qual aumenta a susceptibilidade a infecções bacterianas, fúngicas e virais; sendo a infecção por Candida ssp. uma das mais freqüentes.

A candidíase é uma doença fúngica oportunista causada pela proliferação de espécies de Candida, principalmente a C. albicans (RICHARDSON, WARNOCK, 1997), a qual, segundo McCullough, Ross e Reade (1996) acredita-se seja a espécie mais patogênica em humanos, formando parte da microbiota anfibiôntica oral. Segundo Neville et al. (1998) aproximadamente 30 a 50 % dos indivíduos em geral são portadores de Candida sem evidência clínica de infecção.

Em pacientes com neoplasias malignas, diversos fatores contribuem para a instalação de processos infecciosos de natureza fúngica, como a mielossupressão, o comprometimento do fluxo salivar e as injúrias à mucosa, dentre outros.

É conhecido o papel dos neutrófilos na defesa contra fungos, porém nos pacientes com leucemia, por exemplo, a medula óssea produz neutrófilos anormais e a quimioterapia de indução-remissão pode causar mielossupressão e neutropenia profunda, as quais podem colocar o paciente em risco de adquirir infecções fúngicas oportunistas, como a candidíase (SALISBURY et al., 1997). Segundo Barrett (1987) mais de 50% das infecções orais em pacientes com leucemia se caracterizam como candidíase.

A patogênese da candidíase pode ser o resultado da resposta primária a várias alterações no microambiente oral, tais como modificações na microbiota, promovidas pela quimioterapia ou pela imunossupressão. Além disso, alterações epiteliais favorecem a aderência da C. albicans, bem como a sua subseqüente proliferação e interação com outras bactérias do meio oral (BUNETEL e BONNAURE-MALLET, 1996). De acordo com Thurmond et al. (1991) e Salisbury et al. (1997) o uso profilático de antibióticos é apontado como outro fator importante na modificação da microbiota oral, favorecendo a colonização e proliferação da Candida.

De acordo com a EC-CLEARINGHOUSE (1993) clinicamente a candidíase apresenta-se sob diferentes formas: a pseudomembranosa, caracterizada pela formação de placa esbranquiçada que ao ser removida deixa uma superfície eritematosa; a forma crônica hiperplásica, que exibe o aspecto de placa esbranquiçada não destacável à raspagem; a candidíase eritematosa, caracterizada pela presença de eritema local ou difuso e, finalmente, a queilite angular, constituída por lesões eritematosas e/ou ulceradas nas comissuras labiais. As formas pseudomembranosa e a eritematosa são as de maior ocorrência em crianças. As localizações mais freqüentes desta infecção fúngica na boca são lábios, mucosa jugal, língua, palato mole e orofaringe (NIH, 1989; PETERSON, D'AMBROSIO, 1992; FLAITS, BAKER, 2000).

As lesões de candidíase geralmente são assintomáticas, no entanto pode ser relatada sensação de queimação, dor moderada ou até mesmo severa quando as lesões são associadas à presença de ulcerações (PETERSON, D'AMBROSIO, 1992; NEVILLE et al. 1998). Além disso, em pacientes com candidíase pode ser constatada halitose e alterações do paladar (FLAITS, BAKER, 2000).

Epstein et al. (1996) avaliaram o risco de infecções fúngicas sistêmicas e as conseqüências da infecção generalizada por Candida, em 63 pacientes com transplante de medula óssea e/ou em quimioterapia, os quais foram divididos em dois grupos, onde 44 constituíram o grupo de estudo fazendo uso profilático de fluconazol e 19 o grupo controle. Observaram que 2 pacientes do grupo de estudo e 1 do grupo controle desenvolveram infecção generalizada por Candida, sendo a boca apontada como a fonte desta infecção. Ao avaliar a relação entre o uso de antifúngico, a colonização por Candida e a presença de mucosite, os autores constataram que dos 63 pacientes, 39 (62 %) desenvolveram mucosite, sendo de caráter ulcerativo em 16 casos (26 %), incluindo dentre estes os 3 pacientes que desenvolveram candidíase sistêmica.

Em pacientes neutropênicos a candidíase oral pode causar infecção sistêmica, utilizando como porta de entrada as lesões ulcerativas da mucosa ou através do comprometimento do trato gastrointestinal (NIH, 1989). Muitos casos de óbito em pacientes com câncer resultam da septicemia fúngica, sendo 60% dos casos associados a infecções pré-existentes (GREENBERG et al.1982). Segundo O'Sullivan, Bailey e Hart (1993) a candidíase oral é menos prevalente em crianças com leucemia, porém, quando esta ocorre, o desenvolvimento de infecção sistêmica é mais freqüente.

Segundo Childers et al. (1993) a detecção precoce de Candida ssp., proliferando de forma anormal, pode ser considerada como um indicador do status imunológico e da susceptibilidade do paciente oncológico para o desenvolvimento de candidíase oral, fato que justifica a adoção de medidas preventivas contra a instalação e evolução desta doença.

O tratamento da candidíase oral pode ser realizado topicamente com nistatina ou clotrimazol, tendo a nistatina possivelmente uma maior efetividade nos pacientes que apresentam xerostomia induzida pelo tratamento antineoplásico (PETERSON, D`AMBROSIO, 1992; FONSECA, 1998). Além dos antifúngicos locais, medicamentos sistêmicos tais como o cetoconazol, miconazol, fluconazol e nistatina podem ser utilizados, reservando o uso de anfotericina B para os casos que requerem tratamento agressivo por infecções severas (FONSECA, 1998).

Em pacientes com xerostomia severa radioinduzida, as lesões crônicas de candidíase geralmente requerem tratamento mais prolongado, já que a função protetora exercida pela saliva está comprometida sendo, por vezes, recomendadas baixas doses intravenosas de anfotericina B nos casos refratários ao uso de nistatina ou cetoconazol (NIH, 1989).

Discussão

A boca, pelas suas particularidades anatômicas, constitui um ambiente favorável para a colonização e proliferação de microrganismos, os quais, em condições normais, mantém-se em equilíbrio devido à atividade competitiva por nutrientes e pela ação de fatores físico-químicos próprios do meio bucal (SIXOU, MEDEIROS-BATISTA, BONAURE-MALLET, 1996). Nos pacientes com neoplasias malignas esse equilíbrio ecológico microbiano, geralmente, é quebrado pelo comprometimento do sistema imunológico do paciente em decorrência do curso patogênico da doença, agravando-se a situação com a ação dos agentes antineoplásicos.

Com o sistema de defesa imunológico do hospedeiro comprometido, a microbiota, que uma vez permanecia em perfeito comensalismo, prolifera desordenadamente, ocorrendo também a entrada de uma microbiota oportunista capaz de promover infecções cuja severidade vai depender, além do status imunológico do paciente, de fatores como as condições de higiene oral deste e a presença de outras complicações, como a xerostomia e a mucosite (MARQUES, WALKER 1991; CHILDERS et al., (1993). Barrett (1987) mencionou que aproximadamente 50 % das infecções orais em pacientes com leucemias, por exemplo, correspondem a candidíase.Epsteim et al. (1996), avaliando o risco e as conseqüências de infecções generalizadas por Candida em 63 pacientes com transplante de medula óssea e/ou em quimioterapia, dos quais 44 fizeram uso de fluconazol, observaram que 2 pacientes do grupo que usou o antifúngico e 1 do grupo controle, desenvolveram infecção generalizada por Candida com origem oral, sugerindo que provavelmente o fungo tenha ganho a via sistêmica através de lesões de mucosite ulcerativa apresentadas pelos pacientes.

Baseados nos resultados observados neste estudo, concluímos que as crianças sob tratamento antineoplásico, principalmente as acometidas por neoplasias malignas sistêmicas, apresentam um alto risco de desenvolver infecções orais oportunistas, principalmente por Candida ssp. Estas infecções podem interferir negativamente com os protocolos de tratamento, aumentar o risco de morbidade e até de mortalidade dessas crianças.

Ressaltamos o fato que as condições desfavoráveis de higiene oral, entre outros fatores, podem contribuir como coadjuvante, favorecendo a proliferação de determinado microrganismo e a instalação subseqüente de infecções oportunistas.

Com este estudo esperamos despertar nas equipes de saúde encarregadas do tratamento de pacientes oncológicos pediátricos o interesse constante de estimular, monitorar e manter adequados padrões de saúde oral nestas crianças com o objetivo de prevenir e/ou minimizar a ocorrência de complicações estomatológicas, garantindo-lhes assim uma melhor qualidade de vida.


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