A MORTE, O MORRER E O LUTO VIVENCIADOS PELOS TRABALHADORES DE ENFERMAGEM DENTRO DE UMA UTI NEONATAL

 

FERNANDA SILVA DO NASCIMENTO

 

               ESTÁGIO PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA – MÓDULO III

Trabalho acadêmico apresentado para a disciplina de Estágio Profissional, pelo curso de Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

                                                      

                                                                                            SÃO LEOPOLDO

                                                                           2014/1

 

 

 

 

 

 

                                                        INTRODUÇÃO

 

O campo de estágio profissional possibilita ao aluno vivenciar de forma ampliados fazeres e práticas da psicologia em diferentes contextos, buscando articular teoria e prática entre o aluno e  o local. A função e o trabalho do psicólogo no ambiente hospitalar são um novo desafio na área da Psicologia, e atualmente, estão em fase de estruturação, segundo Camon (2011). A psicologia hospitalar é  a especialidade que busca a compreensão e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento (SIMONETTI, 2004).

          De fato, ao optar pelo estágio na área hospitalar, constatei a veracidade das palavras dos autores citados. Ao buscar minha formação como psicóloga, passei a atuar dentro da UTI Neonatal de um grande hospital. Além da demanda dos pais de neonatos, identificada como objeto de atenção, pude observar também, a questão do sofrimento e suas implicações para os trabalhadores, mais especificamente os técnicos de enfermagem, da morte, do morrer e do luto vivenciados pelos seus pacientes mortos dentro da unidade neonatal. Por atuarem em  setores onde a intensidade dos eventos e a pressão sobre as equipes são frequentes, em função da complexidade dos quadros clínicos e da ocorrência de óbitos, os trabalhadores da enfermagem  da UTI Neonatal também demandam cuidados.

 

 

A MORTE, O MORRER E O LUTO VIVENCIADOS PELOS TRABALHADORES DE ENFERMAGEM DENTRO DE UMA UTI NEONATAL

 

 

        O meu primeiro caso envolvendo um óbito na UTI neonatal, desdobrou-se em um momento no qual eu não estava presente. Ao chegar para o atendimento dos pais daquele bebê, deparei-me apenas com o berço vazio. Seu nome ainda constava no censo hospitalar, o qual seria atualizado apenas no turno seguinte. Dirigi-me a uma técnica de enfermagem próxima e perguntei acerca da criança. Secamente, ela me respondeu que a criança havia falecido e retirou-se da sala. Perguntei então a enfermeira e a uma pediatra de plantão e obtive da médica o silêncio como resposta e da enfermeira um relato sucinto da ocorrência do óbito, seguido de um silêncio relativamente hostil. Tentando comprender a frieza e hostilidade dei-me conta da quietude pesada, quase que em elemento físico, diferente do habitual ruído de conversas entre funcionários. Nenhum sussurro. Apenas os bips dos equipamentos ressoavam. 

        Passei a circular no ambiente e encontrei os funcionários, quase todos na sala de lavagem de mãos. Uma delas precipitou-se em minha direção e pediu “um abraço de psicóloga”, começando quase que imediatamente a queixar-se das horas estafantes de trabalho, do salário, do ônibus... e todas falavam ao mesmo tempo sobre coisa semellhantes: dores de cabeça, dores no corpo todo, saudades de pais, filhos e esposos, vontade de estudar, de dormir, fome...era uma catarse. Falava-se de tudo em alto e bom som, exceto daquela criança e daquela família da qual todas ali haviam cuidado. Constatei, na expressão cansada de seus corpos, suas falas, seus olhares e de seu silêncio sobre aquele óbito, o quanto sofriam. Deste dia em diante, passei a observar e acolher também estas pessoas. Estabeleci vínculo forte com algumas. Encaminhei todas ao serviço funcional. Dei muitos abraços e ouvi suas histórias.

        A percepção acerca da morte não é algo imutável e não remete-se a aspectos  exclusivamente biológicos, sendo o resultado de um processo construído através da história das sociedades. Até a idade média, a morte era vista como um acontecimento natural dentro do ciclo vital, vivenciada publicamente através de rituais de caráter sobretudo religioso. As pessoas morriam em casa, podendo realizar suas disposições finais e despedidas de familiares e amigos. Quando morria uma criança, os ritos eram praticamente suprimidos, pois a sociedade ocidental daquele período não considerava a infância um aspecto diferenciado do desenvolvimento humano dentro do ciclo vital. Se uma criança morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. Os pequenos então, não chegavam a sair de uma espécie de anonimato.(ARIÉS,1981).

Atualmente vivemos uma completa re-significação da infância e as crianças tornaram-se objeto de atenção e afeto extremos. Em relação a morte, sobretudo de crianças, por mais que exista a certeza de que um dia morreremos, evitamos qualquer pensamento que nos remeta a finitude. Dessa forma, nunca falamos sobre o morrer e sobretudo acerca da morte em nossas rodas de conversas, ao contrário, tentamos baní-la do nosso quotidiano como recurso para preservar a felicidade, “pois perturbá-la equivale a perturbar o sentido da vida e certamente nos levará a refletir sobre temas que entristecem e angustiam”.(ARIÉS, 1981). Ainda nos fala Sulsbacher (SULSBACHER, et al., 2009) que a morte de crianças produz um sofrimento  psíquico maior, em função da atual valorização e diferenciação do universo infantil, da criança e  da infância. O sofrimento pelo fim de uma vida curta e compreendida culturalmente como não vivida está relacionado com sentimentos potencialmente caóticos, mobilizando intensamente os profissionais que dedicam-se aos cuidados diretos ( médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem) de crianças e neonatos. (MATTOS et al., 2009).

Os técnicos de enfermagem são responsáveis por uma grande parcela dos cuidados diretos, execução de procedimentos de risco, alimentação, higienização, promoção de conforto e transporte dos pacientes, entre outros tantos trabalhos imprescindíveis ao bem estar do ser humano hospitalizado. Esses profissionais, que tem um contato contínuo e direto com as crianças sob seus  cuidados e com os pais destes, desenvolvem relações carregadas de afeto ao longo da internação de cada paciente. Algumas vezes, vivenciam a  angústia de lidar com as projeções dos familiares, as quais se manifestam em alguns casos como raiva, revolta e ressentimento

Para os trabalhadores da equipe de enfermagem, a rotina diária dentro da UTI Neonatal exige sensibilidade e disposição para enfrentar o sofrimento dos familiares e a dor dos pacientes ali internados. Estes trabalhadores  estabelecem vínculos muito fortes e uma grande identificação com os pacientes sob seus cuidados. A morte ou sua possibilidade iminente são o pano de fundo do dia-dia dentro de toda unidade de cuidados intensivos, e os que ali atuam são impactados pelo contato com esta realidade. CHAVES,1994). Para estes trabalhadores, no entanto, não há espaço continente para o luto e para a vivência de sua dor. Para dar conta da constante demanda de nascimentos de bebês prematuros cuja evolução clínica evidencia a necessidade de cuidados imediatos de grande complexidade, impõe-se  uma necessidade de controle diante da dura realidade de que o leito de seu paciente que acabou de morrer deve ser higienizado, a fim de que logo outro paciente grave venha a ocupar o seu lugar. A vivência da morte é  assim reprimida com as lágrimas, soterrada nas profundidades da consciência e o luto não é elaborado. Não há tempo, nem lugar, pois destes trabalhadores as circunstâncias exigem uma recuperação quase que imediata a fim de prosseguir em suas tarefas novamente.

Os temas referentes ao luto, a morte e ao morrer são pouco explorados desde a formação dos técnicos de enfermagem. Seus professores (enfermeiros, psicólogos e médicos) vem de uma tradição acadêmica  onde a fragilidade  e mesmo a negligência na abordagem de estudos tanatológicosé um fenômeno internacional, de acordo com trabalho de revisão bibliográfica recentemente realizado.(SANTOS et. al, 2013). Oriundos desta formação deficitária e carregados dos significados culturais da atualidade, os quais os conduzem a atitudes de proteção  diante da dor e do sofrimento, os professores provavelmente sentem-se desconfortáveis na abordagem dos temas tanatológicos, elegendo como foco os aspectos técnicos voltados ao alívio da dor e ao desconforto físico. Não se ensina e nem se aprende a vivenciar as angústias contidas obrigatoriamente no quotidiano daqueles que irão trabalhar pela vida em ambientes onde a morte é também uma realidade constante.  É possível que, então, por não estarem suficientemente preparados,os trabalhadores de enfermagem experienciem uma angústia e um sofrimento ainda maiores  a cada  enfrentamento das questões envolvendo a expressão do luto, a ocorrência da morte e do morrer de seus pacientes em ambiente profissional.

A morte estabelece os limites do saber e da ação, o que, dentro do processo histórico do qual fazemos parte, gera uma frustração que pode comprometer a realização profissional. A finitude é então compreendida não como uma parte inexorável do ciclo vital, mas como fracasso, derrota e outros sentimentos negativos. Neste cenário, o trabalhador técnico de enfermagem internaliza a concepção de que as expressões de sofrimento diante da morte devem ser contidas perante colegas e pacientes, pois mostrar-se vulnerável é remeter-se e identificar-se com a própria incapacidade e finitude.

Dessa forma, a possibilidade de um luto mal elaborado faz com que predominem os objetos introjetados persecutórios. Isto leva a lutos patológicos ou quadros melancólicos, em que a depressão ocorre, carregada de culpa. Não raro, esses indivíduos, agora identificados com esse objeto morto, inconscientemente, “passam a viver como 'mortos'-a melancolia seria um exemplo típico”.(KOVÁCS,1992).

Assim, o aspecto emocional pode interferir no funcionamento mental dos trabalhadores técnicos, e o constante desgaste psíquico agravado pelos altos níveis de stress, leva desde a dificuldade de entrar em contato com seus próprios sentimentos até o adoecimento psicossomático, exemplificados pela Síndrome de Burnout, que caracterizada pelo desgaste e sofrimento do profissional causados pela exposição crônica aos estressores psicossociais presentes no desempenho das atividades profissionais. (VARGAS, 2010) e outros transtornos mentais como a Depressão, que atualmente é o quadro psicopatológico que mais afeta os profissionais da área da saúde em instituições hospitalares.(COSTA e LIMA, 2005)

Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo no ano de 2002, evidenciou, que para suportar a dor, o sofrimento e a morte de pacientes, os membros da equipe assistencial (técnicos e auxiliares de enfermagem) utilizam-se de diversos mecanismos individuais de defesa, como a repressão, o controle, a racionalização, o isolamento, a intelectualização, a formação reativa e a projeção classicamente descritos pela psicopatologia e pela psicanálise. (SHIMIZU et. al, 2002).

Pude observar e acolher diversas manifestações e externalizações que vem ao encontro da literatura referenciada em meu estágio profissional atuando na UTI neonatal.  Em seu discurso, e também em seus silêncios, os técnicos de enfermagem traziam exatamente os mecanismos defensivos pouco adaptativos citados anteriormente, não sendo raras as explosões emocionais aparentemente desconectadas dos óbitos, embora ocorressem no mesmo período. Por vezes, alguns trabalhadores falavam de seu primeiro óbito ocorrido há muito tempo, ou de suas experiências pessoais de luto e elaboração diante de outras mortes. Então exteriorizavam sua angústia através do pranto, iniciando a elaboração de fatos ocorridos invariavelmente em épocas muito distantes da atual, carregados de afeto e de dor. Jamais falavam acerca das famílias ou dos pacientes cujos óbitos ocorriam recentemente ou no mesmo dia.

 Presenciei também a baixa adesão dos técnicos, médicos e enfermeiros ao serem convidados a participar de atividades em grupo a fim de discutir aspectos emocionais relativos ao seu quotidiano de trabalho, o que me remeteu a experiência de Kübler Ross (KÜBLER-ROSS, 1997).  Quando a autora ofereceu e promoveu a possibilidade de discussão do tema morte e morrer, as equipes multiprofissionais mostravam-se resistentes, relutantes em participar de seminários sobre o assunto, por tratar-se de um tema árido e difícil não somente para o familiares, mas também para os profissionais que desenvolviam vínculos com os pacientes e, consequentemente, grande dificuldade de  aceitação e elaboração de seus processos de luto. Porém, a medida em que a participação crescia, e que as equipes multiprofissionais compreendiam as razões de suas defesas e aprendiam a vencer seus conflitos e de seus pacientes, maior era a contribuição para a compreensão e o bem estar de todos os envolvidos no processo da morte e do luto subseqüente. Penso que um trabalho efetivo e contínuo neste sentido tem amplas possibilidades de frutificar, ainda hoje, no contexto hospitalar e sobretudo na UTI neonatal onde atuei como acadêmica de psicologia durante aproximadamente dezoito meses.

       Contudo, compreendo a questão do luto, da morte e do morrer como resultante de um fenômeno multifatorial, passível de transformação através do processo histórico e da contextualização social e  cultural na qual estamos todos inseridos, ora como condutores, ora como conduzidos. Comecemos então a mudança, num primeiro momento, em nossas cabeças e nossos corações.

                                                               REFERÊNCIAS

CAMON, V. (org.) et al. E a psicologia entrou no hospital. São Paulo: Cengage Learning, 2011.

SIMONETTI, A. Manual de psicologia hospitalar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

 

VARGAS, D. Morte e morrer: sentimentos e condutas de estudantes de enfermagem. Acta Paul enferm.  2010; 23(3):404-410.

SULSBACHER,  M., RECK AV. , STUMM EMF, HILDEBRANT LM. O enfermeiro em unidade de tratamento intensivo vivenciando e enfrentando situações de morte e morrer. Scientia Médica, Porto Alegre, 2009, p. 11 – 16,  jan./ mar. 2009.

ARIÉS, P.  História social da criança e da família.  Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1981.

CHAVES,  EC.  Stress e trabalho do enfermeiro: a influência nas características individuais no ajustamento e tolerância ao noturno. (Tese). São Paulo, Instituto de Psicologia da USP, 1994.

KÓVACS, MJ.  Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.

KÜBLER, R. E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

SHIMIZU, H. E. CIAMPONE M. H. T.  As representações sociais dos trabalhadores de enfermagem não enferrneiros (técnicos e auxiliares de enfermagem) sobre o trabalho em unidade de terapia intensiva em um hospital escola. Rev. Esc. Enfermagem USP 2002; 36(2): 148-155.

COSTA,  J. C.  LIMA, R. A. G. Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado à criança /adolescente no processo de morte e morrer.Rev. Latino-Americana de Enfermagem, 2005;13(2): 151-157.

 

SANTOS, A. M. HORMANEZ M.  Atitude frente a morte em profissionais e estudantes de enfermagem: revisão da produção científica da última década. Rev. Ciencia e saúde coletiva, 18(9): 2757-2768, 2013.

 

MATTOS T. A. D. , LANGE, C.  CECAGNO, D. AMESTOY S. C. ,THOFEHRN, M. B. & MILBRATH, V. M. (2009). Profissionais de enfermagem e o processo de morrer e morte em uma unidade de terapia intensive. Revista mineira de enfermagem, Belo Horizonte: Coopmed, 13(3), 337-342