O início do século XXI foi marcado por uma série de expectativas, tanto boas quanto ruins, concernentes aos mais diversos âmbitos da vida humana. Basta ter em mente que a primeira (senão a última do século passado) expectativa se referia ao chamado “Bug do Milênio” – na época, quando da passagem de 1999 para o ano 2000, os alarmistas de plantão foram pródigos em distribuir vaticínios sobre o caos (ou os caos) que se abateria sobre o mundo “desenvolvido” e “tecnologicizado”: sobretudo o sistema bancário seria varrido por uma hecatombe, promovida pela confusão binária dos computadores, incapazes de identificar os anos e, dessa forma, empobrecendo os poupadores e (será?) enriquecendo os de extrato zerado.

Advieram, porém, acontecimentos menos alegóricos e mais dramáticos, com suas conseqüências funestas, que perduram ainda hoje. Há que se falar, certamente, do atentado de 11 de setembro às “Torres Gêmeas”. Não tanto pela “dimensão” do fato em si, mas pelas suas derivações. Vidas são vidas, seja uma ou sejam mais de três mil, conforme apontam os dados referentes ao caso referido; todavia, asfunestas conseqüências não são apenas – e sobretudo – as vidas perdidas diretamente no atentado (e aquelas destruídas indiretamente, das pessoas ligadas às vítimas): as conseqüências que são aqui referidas apontam para as proposições e ordenamentos de caráter político (a grosso modo, as posturas, as diretrizes, as determinações governamentais).

Foi – e está sendo – em nome de medidas que visem reparar o dano causado a um povo e a uma nação, em nome de medidas que visem impedir que novas tragédias como aquelas se repitam, em nome de “justiçar” os autores (e seguidores dos autores) daquelas atrocidades que muitas decisões de caráter administrativo, político, econômico e militar (policial) foram (e estão sendo) tomadas. Não só no espaço geográfico daqueles que se sentiram diretamente ofendidos e violentados, mas em outras regiões onde, supostamente, o mal (entendido como a origem das agressões) se gestara e continuava (continua) a produzir outros perpetradores de ações semelhantes (ou ainda piores).

Dessa forma, líderes – sobretudo o líder do país em questão – consideram “justo”, pois necessário, aniquilar regiões, países e povos; manter em cativeiro inacessível, sabe-se lá em que condições, os suspeitos (suspeitos, fique bem entendido); seqüestrar e deportar para centros de “detenção” e “interrogatório” secretos outros suspeitos; “monitorar” passos, conversações telefônicas, acessos à internet e movimentações bancárias de todo aquele que apresentar uma conduta considerada “anormal” e, portanto, “suspeita”; designar regiões e governantes como pertencentes a um “eixo do mal” que deve ser purificado, o que dá um “salvo conduto” para invadir, depor líderes e intervir politicamente em nações soberanas; considerar quaisquer grupos que não sejam pactuados como “terroristas”... E as referências poderiam se estender.

Mas é fácil se contrapor a ações gritantemente discutíveis, seja sob o ponto de vista político, seja sob o ponto de vista ético e moral. Sobretudo quando tais ações se tentam desenrolar sob o manto da liberdade, da justiça, da restauração da lei e da ordem. Mas há outras ações, cujas dimensões nem sempre podem ser mensuráveis, que igualmente obnubilam a percepção, as mentes, os juízos. Algumas dessas ações gradam-se, sutilmente, de forma a não despertar uma resistência imediata; sobretudo quando implica em posicionamentos considerados de caráter histórico.

Desenvolve-se, contudo, ainda que assim não se afigure, uma propensão para os “nacionalismos” e os “líderes ‘carismáticos’” – líderes carismáticos entendidos como aqueles que conseguem se impor não mediante suas propostas racionalmente inteligíveis e pautadas em programas de governos (partidários), mas como aqueles que conseguem arregimentar grande parte (senão a maioria, em sentido numérico) da população de um país apelando para argumentos de ordem sentimental, emocional, de caráter outro que o racional.

A partir desse recorte podem ser lidas diversas ações, atitudes e posicionamentos econômicos, políticos e militares de alguns dos líderes ou governantes atuais, a começar por aquele do país das “Torres Gêmeas”, que é a face mais acintosa. Todavia, não se pode descurar de outros.

Quando se aproxima, no país, o momento de recordar a tomada do poder por grupos militares (31 de março), é-se levado a refletir sobre os argumentos utilizados para justificar as ações e desmandos por parte dos líderes. É-se levado a refletir sobre o tratamento do “povo”, enquanto pessoas reduzidas à situação de minoridade, infantilizadas, que devem ser não apenas protegidas (que isso é, sim, dever do governo), mas tuteladas, impedidas de contato com aquilo que seus “líderes” julgam pernicioso.

O critério que, malversadamente, se encontra por trás de condutas que podem e devem ser analisadas como obliteradoras da plena cidadania, é o uso de conceitos, símbolos, imagens, posturas aparentemente construtoras de uma nova ordem social, mais igualitária e justa, mas que, porém, concorre, precisamente, para o contrário: favorece e propugna o servilismo, o paternalismo, a submissão... favorecendo formas de arranjos políticos semelhantes às ditaduras, como o caudilhismo, o fascismo, e outros totalitarismos baseados em cultos à pátria e ao “governante” (concebido não como líder, mas como “chefe”, ”condutor”, “redentor”, “salvador da pátria”).

Esse “perigo” é real e insidioso porque, conforme aponta Guibernau i Berdun, “... enquanto outras formas de ideologia, como o marxismo ou o liberalismo, requerem a doutrinação de seus seguidores, o nacionalismo emana desse apego emocional básico à terra e à cultura das pessoas” (Nacionalismos, 1997, p. 86). Além do que, como estratégia, essa postura asséptica recorre não às armas, mas à figura carismática de um “líder”. Afinal, “A presença de um líder carismático é fundamental para o sucesso do movimento na incitação das massas” (Id., ib., p. 107).

Em decorrência disso, o líder pode encarnar, de fato, um papel messiânico, baseado em que “A pretensão do poder pelo líder é baseada na crença de que ele, intuitivamente, compreende e expressa a verdadeira vontade do povo...” (Id., ib., p. 108). E, ao se fazer porta-voz por imanência, pode descurar de ouvir as reais interpelações do povo que representa, reduzindo-o a uma posição infantilizada.

Aproxime-se essa perspectiva de um líder que, de fato, tenha emergido das camadas populares e poder-se-á mesclar todos os ingredientes concorrentes para a “produção” efetiva de um poderoso elemento político que, teoricamente, é capaz de infligir, aos governados, seus ditames – para o bem e para o mal, ou “para além de bem e mal”.

Encarnar esse protótipo de líder, personificar esse símbolo nacional tem algumas conseqüências e um preço. Talvez o primeiro deles seja a desvinculação de um discurso sectário, o apartamento de seguidores ou companheiros fisiológicos e fisiologicamente ligados a uma ideologia de caráter supranacional, como o discurso de classe, subentendendo-se como classe a dicotomia “trabalhadores” (proletários, camponeses) x “patrões” (burguesia). Esse é, com grande probabilidade, o caso brasileiro.

Chamou a atenção, no início, o fato de o presidente Lula ter sido como que “entronizado” em Brasília em meio a um festival de bandeiras partidárias – vermelhas, frise-se. E foi com esse mesmo espírito partidário que o presidente do país (Brasil) se fez receber pelo presidente de outra nação (Bush, dos Estados Unidos): o presidente Lula, em sua reunião com Bush ostentava, na lapela, um broche (botton) de seu partido, o PT. Após ser alvo de várias críticas, dentre as quais se destacava a de que ele era representante do povo brasileiro, da nação e, não, de um partido, o presidente trocou de broche: agora utiliza, na lapela, um em forma de bandeira... nacional.

Também é sintomático o recurso, após esse “incidente”, a símbolos da pátria, como foi o envio do “kit” composto de bandeira e hino nacional (em CD) às escolas, o que é apontado, também por Guibernau i Berdun, como uma das estratégias do resgate e construção do nacionalismo, mas que pode beirar o fascismo: “Um dos aspectos mais importantes e característicos do fascismo era o uso de símbolos, cerimônias e rituais.” (Id., ib., p. 105)

Mas as coisas não pararam aí. Muitos discutem o que teria acontecido com o discurso político do PT e, nesse contexto, com as propostas do presidente. Todavia, se se utilizar como chave de leitura o corte do nacionalismo, as coisas parecem se encaixar. Primeiro, o partido, na pessoa do presidente, substituiu o discurso de classe (que é sectário) por um discurso mais homogêneo, que é o discurso da nação, conclamando todos a se assumirem como povo, como brasileiros – que são o que há de mais importante no Brasil –, independente de serem famosos (como jogador de futebol mundialmente aclamado) ou pessoas “comuns” (como funcionários de aeroporto, ex-menino de rua, professora...).

Segundo, quando da eclosão de uma crise de dimensões nacionais, alavancada por denúncias de “propinas” a políticos para se alinharem ao governo e às propostas do governo – propinas (o “mensalão”) subsidiadas pelo partido a que pertence o presidente – o presidente demonstrou uma desvinculação do partido, em nome do alinhamento à nação. No partido, de coloração e orientação ideológica de “esquerda”, o que se assistiu foi como que os rituais de expurgo da antiga União Soviética: surge um suspeito que tudo nega, mas que tudo acata e assume, deixando-se fulminar pelo partido para que o partido sobreviva, em uma demonstração de que o erro foi pessoal e, não, “coletivo”, partidário, do partido do presidente, em última instância, que nada soube e nada sabe, nada viu, nada ouviu.

Um paradoxo que tem seu contraponto nos julgamentos de “carrascos” nazistas, como se pôde ver em Nuremberg, mas que teve seu ponto mais minimamente detalhado em Eichmann, conforme anotado por Arendt (Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal). Nesses casos últimos, os perpetradores de qualquer ato considerado pelos demais como ignominioso era apresentado – e defendido – pelo autor como sendo, tão somente, o cumprimento de um dever. “Ao contrário daquilo que tentam me impingir, diriam, não sou um monstro; antes, o contrário: o exemplo de um grande servidor da nação e de um exímio cumpridor de seu dever e das ordens emanadas dos superiores.”

Ultimamente, o que se tem visto e ouvido é o discurso da origem do líder, que lhe conferiria uma capacidade de encarnação plena da vontade e aspiração do “povo”, do qual o líder seria representante de fato e de direito. Tal circunstância garantiria ao presidente o poder e a prerrogativa de ocupação do cargo de presidente (mantenedor do poder), pois ele, legitimamente, seria aquele que – talvez unicamente – poderia proporcionar ao “povo nacional” aquilo de que ele necessita. Dessa forma, a pretensão ao poder e seu exercício, bem como o apanágio de ser o legítimo e único capaz de verdadeiramente representar o povo tem uma raiz na própria auto-imagem e história, uma vez que “A pretensão do poder pelo líder é baseada na crença de que ele, intuitivamente, compreende e expressa a verdadeira vontade do povo...” (Guibernau i Berdun, ib., p. 108)

A conseqüência da assunção dessa nova postura é que o discurso ideológico assume o lugar do discurso político, a linguagem emocional desloca a linguagem racional; e isso é proporcionado, justamente, devido às características pessoais do líder e, não, de sua programação de governo ou programa partidário. O líder não apenas é, enquanto indivíduo, mas é enquanto categoria, simbolizando, em si, aquele que pode ser o destino daqueles a quem pretende representar e a quem se dirige: “A primeira e mais importante tarefa do chefe era [é] servir como uma encarnação simbólica do mito que configura o destino histórico de seu povo” (Guibernau i Berdun, ib., p. 107).

Poder-se-ia, aqui, trazer a figura de Hugo Chavéz, da Venezuela, que tem protagonizado o encabeçamento de ações que atestam seu personalismo, base de um nacionalismo que, não raramente, pode redundar em uma das tantas formas de totalitarismo. Há totalitarismos de “direita” e de “esquerda”. Há que se atentar que uma das faces do nacionalismo é o fascismo; porém, quando o líder (governante) emerge como a alternativa a situações críticas, de ameaça (interna ou externa, verídica ou fictícia)..., nesse caso, “’O chefe fascista não pode ser visto como um ditador, no sentido tradicional dessa palavra.’” (O’Sullivanapud Guibernau i Berdun, op. cit., p. 108)

Com tudo o que tem sido discorrido, o que se pretendeu foi indicar uma nova chave de leitura para os procedimentos atuais do petismo e, além, de um “lulismo”, que se configura, mais e mais, como um fenômeno de massa, um fenômeno característico do populismo, que se ufana – discursivamente – em estar ao lado da grande massa popular, construindo obras de caráter “popular”, ao mesmo tempo em que sua política efetiva permite que entre os setores que mais lucrem esteja o bancário.

Mas esse não é o problema único e exclusivo do novo momento político. São suas conseqüências que devem ser melhor observadas. Afinal, atualmente, os conceitos “transparência”, “processo participativo”, “justiça”, dentre outros, tornaram-se, em grande parte, em discursos inócuos, em recursos de estilo, um resgate do “nominalismo” mais abstrato, que procura fazer coincidir o termo com a realidade que pretende enunciar, esquecendo-se, como afirmava Piaget, que o caráter moral de uma sociedade é essencial para sua democratização.

E caráter moral implica – exige – o respeito mútuo, o tratamento do outro como igual, igual enquanto ser humano que possui, também, sua especificidade, sua diversidade, o direito de pensar de maneira diversa, pois é a diversidade de opiniões que caracteriza a democracia, não o discurso uníssono, que se disfarça de diálogo, mas que é, de fato, um monólogo.

Como falar de democratização se aqueles de quem se deve esperar exemplaridade dão o anti-exemplo: proteção dos apaniguados, justificativas baseadas na legalidade a despeito da falta de ética e da moral (como o caso daqueles que renunciam ao mandato nos últimos segundos para preservar direitos políticos e, devido a isso, conseguem conquistar a aposentadoria), busca de unanimidade à custa de distorções legais e de princípios...

Enfim, o maior trunfo de uma pessoa e, quiçá, de um povo, é seu patrimônio ético e moral, mas que não deve se restringir ao “povo”: deve principiar pelos seus líderes e representantes. Em quaisquer níveis e instituições, a qualquer tempo.

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

GUIBERNAU I BERDUN, Maria Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.