A Modernidade, o Homem e a Angústia

Emerson Martins Garcia

Palavras chave: angústia, existencialismo, história, homem, indivíduo, século XX.

Resumo:
Este artigo, na busca de identificar os motivos do sentimento de angústia, percorre sucintamente a linha da história a partir do fim da Idade Média, procurando situar o Homem nos contextos registrados e as possíveis dificuldades encontradas por ele para dedicar-se ao conhecimento de si próprio.
A partir de Sören Aabye Kierkegaard (1813 ? 1855) e do existencialismo, é no século XX que o Homem se identifica indivíduo, e, portanto, pronto a se deparar com a sua liberdade e consequentemente com a angústia.

I ? Introdução

Este trabalho busca mostrar o porquê do surgimento do sentimento de angústia no Homem, como definida e percebida no século XX, em uma abordagem existencialista.
O método adotado consistiu em contextualizar o Homem na história e diversos choques culturais por ele sofridos, levando-o gradativamente a se descobrir como indivíduo, portanto, um "ser aberto", colocado diante da liberdade da escolha que o aprisiona, conforme veremos em Giles .
Tomando-se a linha da história, partindo do fim da Idade Média até o século XX e o início deste, inexorável é, quantitativa e qualitativamente, o número de transformações ocorridas na humanidade, por ela, e para ela.
Entre as conseqüências e heranças dessas profundas mutações, sempre instáveis e não duradouras, o Homem não encontrava espaço para poder identificar e viver seus sentimentos e emoções, ficando à margem da sua individualidade.
A angústia, este sentimento íntimo de opressão, de intranqüilidade contínua, de tensão frente ao mundo, de vertigem diante da obscuridade da escolha e que, ao mesmo tempo cresce ao se deparar com mais liberdade, só encontra espaço para se manifestar e ser identificada como tal no século XX, após autores e filósofos, principalmente Kierkegaard, desnudarem a questão existencial do Homem.

II ? O Homem deixando a Idade Média

Nos séculos XV e XVI, época de rupturas significativas no caminho evolutivo da cultura e conhecimento do Homem, como o fim do período medieval, a ocorrência das grandes navegações e a eclosão do renascimento trazendo uma nova visão de mundo, porém, ainda antes do fim do teocentrismo, o mal que sofria era de enfermidades clínico-patológicas (fisiológicas ou psicológicas) e que guardavam estreita e única ligação com o divino, conseqüência da exclusiva, dogmática, coercitiva e poderosa ação da igreja.
O Homem não podia, à época, afastar, deter, possuir, ter, desejar, repugnar, avaliar, sopear seus sentimentos e suas emoções, uma vez que elas não lhe "pertenciam". Não por estarem proibidas de lhe chegarem às mãos, mas por não serem consentidas por quem detinha o curso e o poder, ou seja, a igreja.
Ao Homem bastava orar e entregar-se a Deus, desvencilhando-se assim dos mais simples e até culposos problemas.
Com a Revolução Copernicana, ainda no século XVI, o heliocentrismo impinge ao Homem um forte impacto cultural, seguido pelas descobertas do frei e filósofo Giordano Bruno.
Se após o heliocentrismo que tira não só a terra do eixo central, mas o Homem também, o que será desse Homem se nem o sol é o indicador do centro?
Não cabe mais a ele discutir a finitude do cosmo, consequentemente, suscita-se no espírito humano questões que, além de remeterem o olhar e pensamentos do Homem para o abstrato, identificam outro centro de interesse, senão o mais importante: ele próprio e sua existência finita, agora ainda mais com menos sentido.
Dentre as diversas e importantes contribuições do filósofo francês René Descartes (1596-1650), (tanto no campo científico como no filosófico), portanto, já no século XVII, mesmo desencadeando em uma razão instrumental e mecanicista aplicada ao corpo humano, a experiência subjetiva inicia sua tomada de espaço, já que, Descartes, ao afirmar: "Penso, logo sou", confere interioridade ao Homem, inaugurando o "sujeito epistêmico".

III ? Os séculos XVIII e XIX _ A sociedade e o Homem.

Com o filósofo e "sociólogo" francês Auguste Comte (1798-1857) e o desenvolvimento da exigência do exato, do puro, do lógico e verificável matematicamente, firma-se o positivismo.
É Comte quem cunha o termo sociologia e, conforme sua doutrina filosófica, o positivismo, o Homem, parte básica e integrante do "meio sociológico", se insere novamente em um contexto de objetividade e neutralidade, em que suas "vontades humanas" são irrelevantes, passando então a ser regulado, conseqüência de seu pertencimento a essa sociedade, por "leis naturais".
"No estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e a destinação do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para empenhar-se em descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, ou seja, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude." [Cours de philosophie positive (1842), Schleicher editores, Paris, 1908, tomo I, p.3]

Neste relato, além das considerações feitas anteriormente, Comte confere ao espírito humano a "graça" de atuar positivamente, ou seja, força-o a desistir, por conseqüência, da procura de si mesmo.
Porém, é com o também sociólogo francês (fundador da sociologia) Émile Durkheim (1858-1917), sem abordarmos ainda o existencialismo, que o Homem é preterido na sua interioridade e subjetividade pela importância e força coercitiva da sociedade, "(...) já que hoje se considera incontestável que a maioria de nossas idéias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora, conclui-se que não podem penetrar em nós senão através de uma imposição" (...) .
Não é objetivo desse trabalho discutir a definição de "Fato Social" como o objeto de estudo da sociologia, assim definido por Durkheim, mas de chamar a atenção para o lugar onde o Homem, individualmente, é colocado, mesmo que de forma indireta, já que, ressalte-se mais uma vez, não é o Homem o seu objeto de estudo.
Antecedendo ainda as marcantes e profundas alterações promovidas no Homem nos séculos XIX e XX, vale registrar a inconstância, (mesmo que por lapsos de tempo pequenos ou médios na linha histórica que abordamos) senão mesmo inexistência, de bases que
permitissem a ele construir, ou no mínimo buscar, o conhecimento de si mesmo.
Não existe aqui a pretensão de afirmar que a possibilidade da existência de um suposto "alicerce" favoreceria essa construção, mas ressaltar que, teorias, práticas, correntes ideológicas, filosóficas e religiosas, tornavam frágeis até fins do século XIX e início do século XX a possibilidade do Homem "definir e identificar" um eixo central que lhe permitisse um desenvolvimento crítico sobre a sua própria fragilidade.

IV ? Século XX _ O existencialismo, a descoberta do indivíduo e o descerramento de suas fragilidades

"O século XIX começou cheio de esperanças no homem. Acreditava firmemente no futuro da ciência, certo do progresso de uma civilização enriquecida constantemente pelas descobertas técnicas, cuja nocividade só pareceria evidente a alguns espíritos mais avisados. Sucedeu-lhe um século XX em que predominavam a dúvida, o sofrimento e a desilusão."

Diante da expectativa frustrada e marcado pelos acontecimentos da história até então, que o levam a viver de forma marginal perante si próprio, este momento leva o Homem a buscar uma melhor definição para si, conforme mostra Giles : "O indivíduo é energia viva, ativa, autodeterminante, que surge a partir de situações concretas de opção (...)"
Sobre a citação apresentada acima, torna-se necessário questionar qual a intenção dada pelo autor ao usar a palavra opção, uma vez que, até então, inexistia o como, o sobre, o para, o quando e o diante "de que", agora não mais ao Homem, mas ao Indivíduo, optar ou decidir por aquilo que lhe fosse conducente frente à própria vida.
O termo opção usado por Giles não se restringe à escolha sobre aquilo que está disponível, mas também a possibilidade de se construir, criar. A liberdade desfrutada pelo Indivíduo lhe permite esta ação, que, antes de ser uma simples ação, é uma realização, afeta ao seu ambiente, mas, principalmente, sobre si mesmo.
Se existe a possibilidade, livremente, de se construir algo, existe também a possibilidade de destruí-lo.
Entre o limite desses opostos ainda encontramos infinitas possibilidades de realização, porém, além e dentre esses limites existe a opção de não se fazer, não se realizar, não se construir, o que leva o indivíduo a sofrer, estreitar-se, reduzir-se, oprimir-se, ansiar, agoniar-se; se contemplar diante da liberdade para escolher e sempre duvidar da certeza.

Para esse conjunto de sentimentos, que normalmente ocorrem de forma simultânea, ou no mínimo combinados, como conseqüência dessa liberdade, podemos traduzi-lo como angústia.
Porém, é importante salientar que, o sentimento de angústia torna-se o principal propulsor do Indivíduo frente a sua vida, já que, conforme vemos em Kierkegaard, citado por Giles, é somente quando está entregue unicamente a si mesmo, vivendo o abandono do meio, é que ele torna-se "existente".
Ao Indivíduo, não viver a liberdade de escolha quando praticada como fuga diante da conseqüência já conhecida de sentir angústia, "terá por único resultado a melancolia que se origina quando, tentando fugir de si próprio e buscando perder-se nas distrações, o homem descobre em si um resíduo de pressentimentos a dizer-lhe que toda a sua tentativa de fuga é em vão".
Podemos inferir que a fuga é em vão, porque ela mesma foi uma opção diante de tantas outras, e a permanência nesse estado também é uma escolha, que inevitavelmente gera nova e mais angústia.

V ? Os últimos anos, o Indivíduo, a liberdade, as múltiplas opções _ Angústia

Vivemos, principalmente a partir da II Grande Guerra, um processo de crescimento e evolução da ciência quase de forma exponencial.
Paralelamente o homem passou a experimentar uma forma diferente de liberdade, mais real, contudo, dialeticamente, ao mesmo tempo em que é real, ela é fictícia, pois não foi construída ou forjada por ele próprio.
Atrelada e justificando estes fatos, uma exacerbada atenção e ações dispensadas a favor do capital, e cada vez mais um capital sem pátria, se apropriam do conhecimento produzido, não apenas pela ciência, mas também pelas outras formas, para "oferecer" ao Indivíduo uma infinidade de opções, que vão da atitude de incitá-lo a consumir qualquer coisa ao ato de pensar, agir, sentir e ter emoções conforme interesses desconhecidos, seja pela sua essência e/ou intenção.
Estas ofertas, muito mais que opções, se tornam regras, são delimitadas por quem as cria ou conduz, se introduzem na sociedade, e por conseqüência no Indivíduo, como conducentes únicas de forma de viver.
Paradoxalmente, o indivíduo encontra nessa liberdade cada vez maior e acentuada

diante das múltiplas opções de escolha e ofertas, inclusive quanto a comportamentos, atitudes e emoções, seus "insumos" para experimentar e viver o sentimento de angústia, já que, conhecendo-se melhor, ou procurando por isso, identifica que sua existência ou objetivos vão muito além do que está disponível.

VI- Conclusão

Diante disso, através da contextualização do homem em momentos da história a partir da Idade Média, naquilo que é inerente à descoberta e construção de sua interioridade, o seu desvencilhamento do poder imposto pelas classes dominantes, essencialmente à igreja, colocou-o frente à necessidade de descobrir-se e valorizar seus sentimentos, emoções e vontades.
Essa busca, frutífera nesse contexto, apesar de inacabada, leva-o a viver sua existência e deparar-se com a maior de suas prisões, a liberdade de escolher e a responsabilidade por si.
O crescente apelo imposto pela sociedade e as classes dominantes atuais, não mais a igreja, mas o poder econômico, impinge agora ao indivíduo a sempre optar por alguma coisa, que confrontada com sua liberdade de escolha e incertezas perante as conseqüências, a viver o sentimento de angústia.

The Modernity, the Man and the Anguish

Emerson Martins Garcia

Key words: anguish, existentialism, history, man, individual, century XX

Summary:

This article, in search of identify the reasons of feeling of anguish, explore summarily the line of history from Middle Ages, searching place the Man in the context registered and the possibles difficulties found by he to devote himself as his own knowledge.
Fron Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855) and fron existentialism, is in century XX, that the Man himself identify individual, therefore, ready to come across with his liberty and consequentially with the anguish.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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