Sempre que ouço alguma referência ao açúcar união, imediatamente vem a lembrança da Márcia das roscas de polvilho. Estávamos em pleno outono, acho que era 1975. A música Mamma mia do Abba tocava em todas as rádios, o colorado tinha um timaço comandado pelo Pof. Rubens Minelli. Nessa época, meus pais eram proprietários de um bar no final da linha de ônibus Santa Bárbara, em uma das vilas de Porto Alegre. Meu pai cuidava do atendimento, minha mãe cozinhava com a ajuda da D. Vera e nós, eu, minha irmâ e meu irmão caçula fazíamos o apoio logístico (vulgo: "corre para todo lado").
Numa certa manhã entrou uma moça. Ela era a Márcia, sempre descia do ônibus todas as manhâs e subia em direção a vila. Nunca conversava, olhava ou cumprimentava alguém. Mas alguns a conheciam. Ela era maravilhosa. Aquele cabelão, usava uma capa tri-legal que combinava com as "botonas" até os joelhos e os vestidos, então. Meu Deus, cada um mais bonito que o outro, bem justinhos. Alguns eram de um "tecido bem leve" que balanceava com o vento da manhã quando caminhava com aquele ar de "não tô nem aí".
O que o senhor tem aí para comer "caminhando". Meu pai apontou para a vitrine dos "sêcos e molhados".
Essas roscas são de polvilho? Eu sou "doida" por elas.
Sim, e são caseiras. A mulher que faz. Respondeu meu pai.
Comprou, provou e a partir daquele dia tornou-se freguesa. Todas as manhãs, menos fim-de-semana, ela sempre passava no bar para comprar as roscas. Meu pai dizia que ela dançava numa boate lá na Av. Farrapos. O pessoal comentava que ela fazia streep-tease e outras "cositas".
É, pode até fazer. Mas nunca vi ela com ninguém e nem faltou com o respeito. Dizia meu pai.

O bar estava localizado numa lomba e a entrada era precedida por uma escadaria de 4 degraus que cobria toda a extensão da frente, finalizando numa coluna de cimento. Ali, eu e meu irmão ficávamos aguardando o horário para ir ao colégio. Ela parava para conversar comendo as roscas. Devia ter uns 25 anos, mais ou menos, sei lá, não tinha nem idéia e nem interessava também.
- E ai guris, firme na paçoca ? E o nosso time. Ah, claro ela era colorada. Não era demais? E de mais a mais, entendia de futebol. Conversava e se exibia até a mãe ver e naturalmente nos chamar.
- Vamos lá, se não vão descer (ir em direção colégio) tem o que fazer aqui na cozinha. ? Com essa aí, boa coisa vocês não vão arrumar.  Passavam alguns minutos.
-  E daí? Vou ter que ir até aí "cumprimentar a moça"!
- A mãe de voces é "frau" né? Eta barraqueira !!! Deixa pra lá, já vou subir mesmo!
Começávamos a descer em direção ao colégio e ela subir em direção a sua casa. Nunca olhou para trás! Andava altiva, em linha reta. Algumas vezes passava acompanhada de uma ou duas amigas. Não parava, nem comprava as roscas. Sorria, acenava e comentava para as outras: "Esses dois são o meu público fiel".
E assim passavam os dias.
Certo dia, após longas conversas a noite na cama, eu o mano tomamos coragem e a abordamos. Vamos pedir para a Márcia dançar para gente e ver tudo o mais, que falavam dela.
Já tínhamos juntado uma "grana", eramos somente mais um cliente! O dia ideal era terça-feira, o pai vai comprar frutas na Ceasa e é a folga da D.Vera, o que significava que a mãe estaria ocupada no atendimento do café do bar. Tudo planejado, era só esperar.
E se ela gritar ?
Gritar porque? Nós só vamos fazer uma pergunta pra ela. Deixa de ser "jaburu". Vai dar tudo certo.
Ah sei lá, a mãe sempre diz que essas mulheres são escandolosas, que dão gargalhadas.
Ah, a mãe só pensa em coisa ruim, ou trabalhamos ou estudamos, mais parece a Febem. (Que injustiça, hoje sabemos e valorizamos o esforço da D. Armênia para nos criar naquele ambiente. Meus amigos que não estão mortos, estão presos ou trabalham no comércio de entorpecentes. Salvo raras excessões.).
Ela chegou. Eu tremia todo, nem deixei ela falar, fui direto. Eu acredito, que nem fui eu quem falou, porque não ouvi a minha voz.
- Márcia, quanto você cobra para ? ? Gargalhadas. Muitas gargalhadas. - Essa é muito boa, quantos anos vocês têm? 13 ? 14?
- Não, não, eu tenho 15 e ele 14. Nós só queremos ver como é.
- Ver como é o quê? ? a ?
- Não, não. Só queremos ver uma mulher de "roupa íntima" (a frase não foi bem assim, é claro). A gente "juntou" 5 mil. Tu acha que dá? (com mil, aos domingos, nós pagávamos o ônibus, as entradas do "cinema miramar" e ainda tomávamos uma "grapete", cada um). Ficou em silêncio, de repente:
- Então vocês querem me ver de "roupa íntima"! E vão me pagar cinco pratas ? Querem que eu dance também.
- Sim, sim ? Pensou, virou-se e saiu andando. Voltou alguns passos.
- Tá feito ! Vocês tem lugar ? Minha nossa, ela concordou. Lugar? Que lugar? E agora, pensei.
- Como assim lugar ?
- Ora meninos precisamos de um lugar, música, e etc e tal. Não posso levar vocês pra minha casa. Não levo ninguém para minha casa.
Era verdade, papai já havia falado que ela nunca passou com nenhum acompanhante. - Claro, claro que temos ! Mentira, não tinha nem idéia.
- Bem, quando vocês querem? Pode ser na quinta-feira? Tem que ser no inicio da noite, entre 8 e 10 horas. Melhor ainda, pensem quando querem e me avisem. - Ok, então rapazes? Ah, grana adiantada, certo?
- Sim, sim, quer levar agora ? Risos ? Muitos risos ?
- Não, vocês me pagam no dia, certo ?
Passaram cinco dias, mas pareceram meses, e "brilhou o sol da liberdade". O pai e a mãe iriam sair na terça-feira a noitinha e Deus do céu iluminado, iriam deixar a nossa irmã na casa de uma amiga, e o mais louvado ainda, a pegariam na volta.
- Juan, isso vai dá confusão? Vamos mentir pro pai e pra mãe. Ela sempre acaba sabendo. (É verdade, mãe sabe o que a gente tá e vai fazer. Na verdade ele acabava contando, não aguentava o terrorismo daqueles olhos crueis de mãe ou uma boa propina). - Vai dá pra trás? ? Não, não.
Tudo acertado. No dia e hora marcada ela chegou ! Um cheiro, meu Deus eu nunca mais esqueci. Entrou ?
- Vai ser aqui mesmo? Olha lá meninos! Onde estão os pais de vocês?
- Sim. ? Isto é, saíram ? Aqui está teu dinheiro. Nem conferiu.
- Bem vamos começar ? Peguem um pacote de açúcar !
- Açúcar? ? Pra que açúcar?
Ela se levantou e explicou calmamente passando a mão no corpo:
-Eu vou tirar a roupa e quero que vocês despejem o açúcar no meu corpo. Depois os dois vão tirar "tudinho" sem as mãos. Entenderam ?
- Hã-ham. Gesticulamos que sim, era humanamente impossível falar, era quase impossível se mover. - Eu pego!!! A cena deve ter sido algo. Os dois correndo em direção à cozinha ?
Pegou, abriu o pacote. - Hum, açúcar união! Começou a despir-se.
Eu estava hipnotizado, minhas pálpebras não mexiam e o meu irmão entrou em coma profunda em pé, não conseguia sentar e nem sentir nada. Repentinamente, comecei a ouvir a voz da minha mãe, bem longe.
Nos viramos. Estavam parados bem na soleira da porta, mamãe, papai e minha irmã. Com o som ligado não ouvimos o barulho da chave nem do carro. Eu acredito que se a casa explodisse, nós não ouviríamos. Minha nossa senhora. O rebuliço tá feito. E agora!
Vamos dizer que a moça sujou a blusa no balcão do bar, pensei. Infelizmente, mamãe partiu pra cima de nós aos gritos. - O que é isso ? Quem essa mulher? Ela tá sem a blusa, é a Márcia das roscas Ary, não é? O que vocês estão fazendo? Mas, esses tarados desclassificados, não respeitam nem casa onde comem e dormem. E caminhando em direção ao cabideiro. - Me dá esse cabo aqui que eu vou conversar com essa "zinha".
Só deu tempo de meu pai a agarrar e fazer um sinal para tirarmos a moça dali.
Corremos para os fundos, ainda ouvindo a mamãe. - Chama a brigada para essa mulher. Não para os três ! Esses marginaiszinhos ? Que barbaridade ! Mas eu sabia que aquelas conversinhas não iriam dar boa coisa! É impressionante, "botar" uma mulher dessas dentro de casa ? Eu não acredito que tu não vai fazer nada! Eu vou matar um deles pelo menos.
Passamos a noite na casa da vovó. Não fazia perguntas, apenas ajudava.
A coisa deve estar complicada lá embaixo, para os dois pedirem "asilo"! - Precisam que eu vá junto? Acenamos que sim. Preferi entrar pelo Bar, já para enfrentar o "problema". Mamãe nem olhou pra gente.
Como vai D. Bilah? Perguntou sem tirar os olhos da massa-de-pão.
Bem, bem. E aqui as coisas se acalmaram? Tenham calma com os meninos!
Voces querem que eu fique mais um pouco? Perguntou baixinho. Sim, pensei, talvez uns 10 anos. - Não. Obrigado vovó.
?.
Imagino que não tem necessidade de descrever o que aconteceu. Claro, o "estouro" foi somente a noite, após o expediente fechar, até então, ela não olhava para nós e nós pediamos a Deus que ela não nos olhasse. Eu acho que se ela nos olhasse, viraríamos cinza ou até "pedra".
Bem, ela "somente não nos matou, realmente".
Graças ao meu Pai, não tivemos que ir até a casa da Márcia, para pegar o dinheiro de volta. Papai, disse que desta vez exageramos. Ele não iria se meter. Conversa fiada, na real quem mandava era a mãe.
E assim, passaram séculos e séculos. Nunca mais vimos a Márcia ? E até hoje, gosto de roscas de polvilho.