1

Madrugada.

O silêncio invade o bairro. As residências conjugadas. Algumas com as luzes acesas nos terracinhos ou na sala de entrada.  Nenhum cachorro late, nem criança chora. Carros ou motos não passam. Sim, a paz reina. Por quanto tempo? Tão bom se fosse sempre assim... Mas, com a violência que campeia, com os assaltos, “queima-de-arquivo” entre os grupos traficantes, a luta de gangues... Melhor pensar positivo. Basta de encucações!

Apressa os passos. Adentra na rua estreita. Será que Luzia ainda está acordada, esperando-o?

- Só sossego quando você chega, Rui.

Ele procura lhe aquietar o espírito e, sorrindo, por lhe entender a preocupação, o zelo para que nada lhe suceda de ruim:

- Você também exagera criatura. Tenho de trabalhar, fazer serão, me “garantir” no emprego.

Ela silencia, também o compreendendo e, logo se deitam, adormecem.

Seus passos ecoam no calçamento enegrecido pelo tempo. A rua assim quieta, sem movimento de gente ou veículos, se lhe apresenta acolhedora, com um quê de poético... E, de repente, percebe que alguém caminha, aproxima-se. Mas... Vira-se e vê o sujeito alto, musculoso, de camisa branca, que lhe destaca o tronco musculoso. Careca. As feições negras, grosseiras. O que danado ele deseja? Aflito mais se apressa. Fugindo do que receia. Desse imprevisto ameaçador, contudo, o desconhecido logo o alcança e ele ouve a voz grossa, às costas, ameaçadora:

- A carteira, o relógio e o celular!

Trêmulo, pára, obedecendo.

- Vai lá cara. Não olhe pra trás.

O gigante então retrocede, dobra a esquina e desaparece de seus olhos perplexos.

Suado, se deixa ficar parado, sem ação, preso à perplexidade que o domina. E escuta o apito do guarda-noturno se avizinhando, na fingida proteção aos moradores do lugar.

- Esse guardinha de merda!

O apito se avizinha.

- E agora?

Indaga-se em voz baixinha e, devagar retorna a caminhar, sentindo-se o menor dos homens.

 

2

Violentos os dois encapuzados com os pés investem contra a porta que se escancarando, lhes permite a entrada.

Rápidos invadem a sala, adentram no corredor estreito e deste ao quarto ao lado.

O rapazinho sentado à frente do computador se volta perplexo e mal consegue indagar:

- O que... O que vocês querem?

O mais alto, forte dos encapuzados então inquire, gritando:

- Cadê o Marquinhos?

- Mas não é aqui não...

- Marquinhos o cagüeta não mora aqui?

As armas nas mãos. Ameaçadoras. O silêncio entre os três, que dura segundos e é quebrado pela voz grossa novamente:

- Tu não sabe onde mora o Marquinhos?

- Sei não. Vocês estão na casa errada.

Então a voz do comparsa, que é baixote, magrinho, se faz ouvir:

- Vamos embora mano. Tá tudo errado. Deve ser aí, na casa vizinha.

- Porra!

O adolescente trêmulo fita-os, sem acreditar no que presencia, vive e, já à porta de saída, os invasores se voltam e o que parece ser o chefe então ordena:

- Atira nele, Branquinho!

- Mas...

- Tu quer que ele sirva de testemunha, porra?

Os disparos. O corpo que se verga, caindo sobre o computador. Os passos que ferem o silêncio do corredor, a sala e ganham à rua, onde com brutalidade derrubam a porta da casa conjugada, em busca daquele que está “encomendado” à morte, no “queima-de-arquivo”. E se ouve novos disparos dentro da madrugada, enquanto nas residências circunvizinhas paira o silêncio cúmplice, que serve de proteção à sobrevivência dos moradores. Indiferente a tudo, a madrugada amadurece.

 

3

A adolescente salta do automóvel prateado-escuro, importado, último modelo.

- Tchau!

- Até, “gata!”.

Ela sorri e voltando-se, caminha, afastando-se, na calçada estreita, deserta.

O homem liga o carro e também se afasta, distanciando-se. Fugindo ao que presencia, ao que “curtiu” no motel em companhia da garota que agora solitária vai em sentido da casinha no alto, do morro defronte, subindo a escadaria de degraus encardidos pelo tempo e a sujeira do dia a dia dos moradores das laterais. Exausta inicia a subida. Na bolsa presa ao ombro esquerdo, a quantia gorda recebida pelo “barão”, que lhe pagou bem para que lhe satisfizesse em seus caprichos sexuais.

- Velho nojento!

Exclama,  libertando a revolta, a humilhação de se saber usada, como um objeto de prazer.

- Um dia, estarei “noutra!”.

A esperança. Os dias diferentes. A vida que então lhe será outra. Diferente...

Galga os degraus, cumprindo a sina da cruel realidade.

A madrugada vai se dissipando ante a luz que desponta tímida, do novo dia. 

- Mãe?

- Tou aqui no quarto.

A jovem empurra a porta encostada e adentra.

Na casa vizinha o galo canta, anunciando o dia que aos poucos desperta para agasalhar tudo.

Mãe e filha se defrontam e fogem o rosto de lado, na fingida indiferença ao que sabem, entendem e sofrem.

Batendo as asas o galo canta.

Pelo basculante da janelinha do quarto a luz se mostra como numa esperança.

A filha retira-se. Contida em sua própria realidade.

- Minha filhinha...

As lágrimas descem pelas faces envelhecidas prematuramente.

- Até quando terei de ver tudo isso?

Na cozinha os passos da outra de repente silenciam, como se também fossem impulsionados pela mesma dúvida.