Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 1 A MENINA GORDA E O MENINO MAGRO: UM OLHAR CRITÍCO AO SISTEMA DE EDUCAÇÃO Sobre a naturalização da pobreza na educação. Nós em Moçambique tornamos a pobreza uma coisa natural que é assim: já que uma criança senta na esteira em casa, pode muito bem estudar sentada no chão, o que não devia ser. Porque mesmo em casa, aquela criança não senta directamente na areia, como nas escolas. Tem no mínimo uma esteira (Hildizina Dias). I Sandra Lisboa e Miguel Padue são dois jovens de 14 e 13 anos de idade respectivamente, que vivem em Natite, num dos bairros periféricos da cidade de Pemba. Apesar do enorme laço de amizade que lhes une, de conviver e brincar nos mesmos lugares, estes pertencem a 2 mundos extremamente diferentes. Sandra nasceu num berço de ouro e Miguel não conhece sequer o significado do termo berço, veio de uma familia humilde e desafortunada. Actualmente frequentam o ensino médio geral, Sandra no colégio Dom Bosco e Miguel na Escola Secundária Esperança, esta última pertencente aos estabelecimentos de ensino públicos. Durante a sua formação pré-escolar, Sandra frequentou as melhores creches da cidade e na fase escolar, viveu uma vida invulgar: ia as aulas trajada de melhores grifes, melhores mochilas com estojos, cadernos completos, livros especiais e uma lancheira completa. Por auto-estima, vaidade e até uma pressão consciente de Sandra, os pais desafiavam a entrar em melhores lojas para satisfazer os caprichos de sua filha. A cada nível de escolaridade, á Sandra multiplicavam-se-lhe ainda o favoritismo económico. Devidamente uniformizada, asseada, penteada, a saia a baixo do joelho e as calças bem decentes, ia para Dom Bosco. Na 2ª classe, Sandra já sabia ler e escrever seu próprio nome. Contrariamente, Miguel Padue de uma familia humilde, frequentava as escolas públicas, em zonas rurais. Era o sexto filho de seus pais e pelas dificuldades financeiras, foi forçado a se transferir para Mueda com 8 anos para fazer o ensino primário, enquanto vivia com seu avó, o senhor Cristovão que era camponês. No entanto, nunca deixou de voltar a Pemba durante as férias, para reencontrar seus amigos, em particular a Sandra. Em Mueda, Miguel frequentou a escola primária de Namaua, que dista a 22km da sede do distrito. Embora que para se fazer a escola, tinha que percorrer 15km. Os alunos desta escola estudam sentados no chão por falta de carteiras, grosso modo em instalações de pau-a-pique a cair de podre. Com quatro barrotes a assegurarem como pilares o tecto. Num dos cantos superiores, Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 2 balança um quadro preto em que a professora Glória passa a giz o conhecimento que adquiriu durante a sua formação. Sempre que chove em Mueda, maior parte dos alunos não se apresentam a escola, porque o tecto de Namaua é coberto de capim, que deixa passar pingos de água em enormes quantidades. Outro problema com que se debate esta escola é a escassez de livros. O livro gratuito distribuído pela Diname dificilmente chega a Namaua. A turma do Miguel é composta por 70 alunos com apenas 15 livros para abarcar todos. Resultado: com a 6ª classe, Miguel enfrentava dificuldades enormes em ler e escrever seu próprio nome, numa altura em que os estabeleciemntos de ensino públicos estão apetrechados de professores com nível superior. De quem será a culpa de Miguel com 12 anos na altura não saber ler? Dos pais, dos professores, dele ou do sistema de educação vigente no país? Modesta opinião, é a pobreza, que numa das suas facetas, influência no processo de ensino e aprendizagem. Os alunos pobres que obviamente frequentam em escolas públicas mais pobres são mais vulneráveis a esse tipo de situações. Falo de pobreza não dos pais de Miguel, mas de uma pobreza generalizada que afecta aos professores mal pagos e que consequentemente determina na falta de motivação dos mesmos. Falo de uma pobreza generalizada pela falta de vontade política na contenção de recursos na administração pública que não define prioridades na educação. Os recursos bem geridos, podem contribuir para a melhoria das escolas mais pobres e ser um catapulto na melhoria da qualidade de ensino e resolver problemas de muitos estudantes como Miguel Padue. E num momento em que o crescimento de escolas é visivel em quase todos os pontos do país, não se justifica existirem muitos casos de alunos que não dominam a língua portuguesa e que encaram dificuldades no processo de ensino e aprendizagem. Isso manifesta-se sobretudo quando se assume que as escolas públicas, têm problemas sérios de falta de condições que propiciem o bom desempenho dos alunos e também dos professores. Por exemplo, Miguel chega a casa não tem alimentação, não esta agasalhado, com o frio que se faz sentir, esta ali sentado ao relento. Como é que vai estudar? Alguns dos seus colegas pobres nem sequer levam cadernos para a aula. Eles ficam ali sentados. Ficam toda manhã a olhar para o professor sem lápis nem caderno. Isso é pobreza no seu ponto mais extremo. Ninguém prepara o Miguel para a escola, porque seu avó saiu cedo para a machamba, ele nem sequer o viu sair. São questões de varia ordem que influenciam as crianças hoje. Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 3 II Numa linguagem mais vulgar, concorro em dizer que os pais de Miguel são pobres. Não conseguiram que seu filho estudasse numa escola como a de Sandra, sua melhor amiga. Não que isso provocasse ciúmes ou um mal estar no seu filho, pelo contrário. Miguel orgulhavase de ter pais como aqueles, que mesmo na penúria batalhavam para ver seu filho no ABC e no 123. Já o seu avó, o senhor Cristovão, esse tinha outros objectivos com o seu neto. Num dia desses enquanto tomavam a última refeição do dia, coçou a cabeça, passou a mão direita pela face e apalpando carinhosamente suas barbas brancas murmurrou. — Meu neto! O que queres ser quando fores mais crescido? — Quero ser rico vovó. Um doctor rico. E trabalhar no tribunal. — Tribunal! Mas tribunal já tem dono. Todos os lugares já estão ocupados. Não há emprego. — Então quero ser um doctor rico e trabalhar no hospital. Retorquiu Miguel — No hospital também já não há emprego. Você não costuma ouvir na rádio? Meu neto, eu vou arranjar um emprego para ti e você vai ser rico, mas não vai ser doctor. Aquela minha machamba, vai ser tua quando eu morrer. Mas tens que aprender a ser camponês enquanto cedo, para aprimorar mais e saber como as coisas funcionam. Assim também podes ser rico. O jovem fransiu os olhos e na testa sairam aquelas rugas normais com uma cara surpresa de quem diz, isso é verdade? E antes de responder, bateram a porta. Era uma vizinha, amante do vovó Cristovão. Amor mesmo não tem idade. Tinha 70 anos o vovó, mas tinha amantes. A intenção do vovó Cristovão foi muito clara. Coloca-se num pressuposto segundo o qual, o sector da educação no nosso país, está a ser minado por desistências nos diversos subsistemas de ensino, muitas vezes ligada a questões sócio-económicas. Tudo porque muitos pais e encarregados de educação preferem que seus filhos deixem de estudar e vão trabalhar nas machambas ou fazerem outros trabalhos imediatamente proveitosos, alegadamente porque mesmo depois de concluírem o ensino, não lhes espera mais nada senão o desemprego, a que muitos moçambicanos não estão alheios mesmo com o diploma. No dia seguinte, Miguel acordou muito cedo, aqueceu a água para o banho, ainda pensativo foi a escola. Pelo caminho lembrou-se de Sandra e de seus pais. Os pais da amiga não eram doctores, mas Sandra tinha tudo o que quisesse para ela. Chegado a escola, na turma, era aula de Ciências Sociais, olhando virtuosamente para a professora Glória, Miguel perguntou: — Sra. professora! Como se faz para alguém ser rico quando não é doctor? Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 4 A professora Glória que estava sentada num banco de madeira quase a partir-se, porque esta era gorda, levantou-se num movimento brusco, levou a mão direita para a cintura, suspirou, levantou as palpébras e num tom minúsculo retorquiu: — Meu querido Miguel, primeiro tens que estudar pelo menos até a 10ª classe numa escola em que quando chove não verte água no tecto e muito menos sentares na areia durante a aula. Daí que quando fizeres a 10ª classe, teus pais terão que te dar um carro, abrir uma conta bancária para ti e todos os meses durante 10 anos teres uma mesada que te sirva de poupança para que abras um negócio lucrativo a partir dos 23 anos de idade. E digo mais meu filho, no nosso país, existe uma coisa que se chama naturalização da pobreza na educacão. Significa que, se algumas crianças nasceram pobres, podem muito bem estudar em escolas ainda mais pobres, como se isso fosse normal1. Acrescendo ainda a provocação de Miguel, num tom de desabafo, a professora chegou a incinuar que era inadmissível, pelo menos ela não aceitava que, um país como Moçambique exportador de madeira, particularmente na província de Cabo Delgado, hajam alunos que estudem sentados no chão, ao relento e num frio daqueles logo das 07h00 do dia. Aborreceu-se e saiu da sala. Impressionante. A escola de Miguel é feita de pau-a-pique e a cair de podre. Mas esse jovem não morava numa casa assim com uma construção de paus distanciados a entrar frio, chuva, vento, mesmo porque a casa de palhota em que vive com o sr. Cristovão, no mínimo está fechada. No entanto, nada justifica essa falta de interesse por parte das autoridades locais. E de entre esses e outros factores, enfraquece o desempenho escolar não só de Miguel, mas de todos os seus colegas na turma. Levando a um ponto tal que, o fracasso escolar continua em crianças mais pobres, das escolas suburbanas e das zonas rurais. Actualmente discute-se a qualidade de ensino em Moçambique, quer a nível primário, secundário e ao nível de ensino superior. Até onde vai a qualidade e o fracasso dos subsistemas de ensino? E como é que se vê esse problema? Na opinião de muitos estudiosos, o fracasso escolar é visto em termos de desempenho dos alunos nos subsistemas escolares. As estatísticas de aprovações são brilhantes a nível de educação, com cerca de 70 ou 80% de aprovações em todo território nacional. São apenas estatísticas, mas que a realidade mostra o contrário. Ora vejamos: até a 6ª classe, o Miguel Padue 1 A naturalização da pobreza foi defendida pela professora catedrática Hildizina Dias, na sua dissertação sobre pobreza no sector da educação e a inclusão excludente. A Professora Doutora Hildizina Dias, é a primeira moçambicana a ascender a esse grau na Universidade Pedagógica de Moçambique. Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 5 demonstrava dificuldades na leitura e escrita, mas estava numa classe bem avançada. Assim, o desempenho esta mais acentuado naquilo que o Miguel sabe fazer. Se olharmos para as escolas públicas suburbanas, como a Namaua são as mais pobres, consequentemente com alunos mais pobres e o professor que esta ali também pobre. Logo, o desempenho será baixo. Se olharmos neste prisma, estaremos a levantar um outro problema, o das passagens semi-automáticas que o governo levantou, mas que agora acaba de o renúnciar. Infelizmente, Miguel foi vítima dessa inovação. A professora Glória, foi forçada a passar todos os alunos, isso porque no final do semestre tería que apresentar altas taxas de aprovações e bom nível de desempenho, caso contrário seria questionada pela direcção da escola. Numa sala com 70 alunos, sem o devido controle, alguns amigos do Miguel estão mais avançados em termos de conhecimento, outros menos avançados, outros ainda como o Miguel mal sabem escrever. Como é que a professora Glória vai lidar com isso? Tanto Miguel como os outros, tiveram uma passagem automática da primeira a sétima classe, sem no entanto ter conhecimentos da primeira classe e a escrever rabiscos. Pelo sim, pelo não, Miguel já se preparava para as férias em Pemba, mas desta vez não voltaria a Mueda, pois sua tia Hermelinda, o prometera que lhe colocaria a estudar a partir da 8ª classe na escola secundária Esperança. Não acreditou quando despediu seu avó Cristovão. Estava satisfeito. III Acabamos de ver acima, a uma crise no sistema de educação. Mas nem todo o sistema esta em crise. Por exemplo, a escola em que a Sandra frequenta, o colégio Dom Bosco. É uma escola privada, que se sustenta das receitas dos próprios alunos. Sandra pertence a uma classe elevada de crianças, que sabe falar o português desde casa com acompanhamento dos pais. A sua turma comporta apenas 20 alunos, todos têm livros e algum outro matéria alternativo de apoio as aulas. Face a isso, o seu desempenho é diferente a do Miguel, por diversos factores. As crianças pobres estudam em escolas mais pobres e as crianças ricas também estudam em escolas mais ricas, as privadas com um nivel de ensino diferente. O menino magro chegou a Pemba em pompa, feliz por estar em casa. E quem lhe foi receber na paragem, para além dos familiares? Sandra. Toda bem cheirosa, sapatos bonitos e a roupa também. Enquanto que o Miguel trazia um calção de ganga, com um burraco na parte traseira, uma camisete que de longe parece branca, mas de perto muda de cor, mais para Ossifo Jerico Malhango A menina gorda e o menino magro: um olhar critíco ao sistema de educação 6 amarela que a cor original, a branca. Uns chinelos que o vovó Cristovão comprou e o ofereceu como presente pela passagem de classe. Agora vai frequentar a 8ª classe. Numa escola pouco conhecida por ele, onde terá que comprar um uniforme verde e branco. Mas então, porque é que Miguel e Sandra estando na mesma classe, o menino tem pouco aproveitamento escolar? É o currículo do sistema de educação. É a pobreza absoluta. Apois a realização da sua matrícula, Miguel volta a escola. A Secundária Esperança. O cenário continua o mesmo. Quando se muda o tempo, mudam-se as coisas, mas as pessoas continuam as mesmas. Uma escola pobre, em que os professores estão completamente desmotivados, porque ganham mal. Trabalham em turmas superlotadas e numa diversidade. Contrariamente, a escola de Sandra. Bem apetrechada, com uma Biblioteca requintada, e no fim de cada dia, passeam os melhores carros da cidade, em busca dos filhos dos seus donos. Na escola de Miguel, os alunos continuam a não ter livros, nem cadernos. Mas houve uma melhoria, é uma escola coberta de lusalite e as paredes construídas de blocos, ou seja, é uma escola convencional. E todas essas condições vão influenciar mais uma vez a aprendizagem de Miguel e influenciar no ensino das outras crianças pobres. Numa das suas brilhantes intervenções, a Dra. Hildizina Dias, defendeu que o currículo da educação em Moçambique foi elaborado a pensar em estudantes de nível social alto. Para crianças que sabem falar o português, ou seja, para as escolas privadas. Assim, a pobreza dos alunos das escolas suburbanas públicas concorre para a exclusão desses mesmos alunos. Não que os alunos das escolas públicas pobres sejam menos inteligentes que as outras. Eles também são normas e inteligentes, mas o problema é que não se esta a dar a elas as mesmas oportunidades que as outras têm. Um mínimo de condições adequadas, tais como uma sala de aulas condicionada, os livros completos e cadernos gratuitos, salas com carteiras normais, não aquelas do mais alto nível de sufisticação. O governo tinha que traçar prioridades para essas escolas das zonas rurais, pois a situação é cada vez mais preocupante. Numa das intervenções do actual ministro da Educação, Zeferino Martins enunciou que os estudantes formados em instituições de ensino, incluíndo o superior, devem ser polivalentes e, acima de tudo flexíveis por forma a responderem ás exigências daquilo que são as tendências actuais do mercado laboral (...) NÃO ESTAVA A PENSAR EM ALUNOS COM O TRAJECTO COMO O DO MIGUEL.