A cólera o assolava frequentemente. Não eram acessos, como poderia se supor, motivados por uma alteração de consciência. Esta, há tempos vinha galgando suas etapas evolutivas, às vezes trôpega porém gradual, ao passo que seu humor parecia um pêndulo em intensa atividade. De vez em quando ele bebia. De vez em quando, por conseguinte, ele alterava seu estado mental. Mas estamos falando de um batalhador incessante, zeloso por suas obrigações, muito embora quando fustigado por criticas brada enfurecido, a plenos pulmões, que faz o que bem entende com seu próprio dinheiro, que não prejudica ninguém, que tem controle total sobre sua própria vida e que, para encerrar, suas extravagâncias ocasionais nada mais são que o merecido lazer, concedido ao combatente, exaurido após mais um dia de árdua labuta. A calmaria depois da tempestade. Uma calmaria, digamos, que sutilmente buscava a permanência.

Esse típico guerreiro, repleto de armas ilusórias, só não desvia a atenção desse universo por pura ignorância. Ele não sabe que a serenidade é algo tão tangível quanto a funilaria do seu carro, que aliás, nos últimos tempos, anda ligeiramente amassada. Paz, clareza de idéias, ponderação, ausência de espírito critico, são para ele valores fugidios equivalentes a mitos seculares. Surreais, perdidos no tempo e desbotados em meio a cultura popular. Sua armadura ostenta no peito os símbolos do orgulho, da depressão, das culpas e do desespero. Ungido pela gloriosa missão de sustentar a família, seu ser desloca-se pelo mundo movido à mentira e manipulação. Vangloria e derrota. A velocidade de seu cavalo e o manejo de sua espada ocupam todos os espaços entre os duros pólos da auto piedade e da mania de grandeza. Ele é apenas guiado por esse padrões.

Ele tem filhos, esposa, pai e mãe, irmãos, sócios, clientes e fornecedores. E contas. E metas. E como já se disse, toda uma artilharia que o impele a ir para frente e cumprir suas metas. Seu coração é essencialmente bom e suas intenções são as melhores. Ocorre que, nascido e criado numa atmosfera que idolatra o ressentimento e a cobiça, e tendo ainda o ônus de prevalecer nesse meio, sua cartilha tem se mostrado, desde o primeiro sopro de vida, repleta dos signos até aqui descritos.

E para suportá-los ele eventualmente modifica sua lucidez. Porque, convenhamos como transcender num oceano transbordante de penumbra? E em meio a tal andamento parcamente equilibrado, em meio à competitiva rotina de protocolos e duplicatas, passeios com as crianças e idas aos botequins, ele também investe, com um desdém velado, numa visita à igreja aos domingos, E ali ele encontra os santos. E ali, inconscientemente, pensa no ego. O mundo desse guerreiro possui a seguinte veneração: o ego. Curiosa religião que se curva a um simples sistema de atitudes alheio ao espírito elevado. Um sistema baseado na premissa de que somos apenas corpos físicos. Interpretação essa que conduz fatalmente ao isolamento, ao medo, ao egoísmo, assim por diante. O ególatra é capaz de passar milênios despercebido da mais simples equação: o ego não passa de uma ferramenta. Dir-se-ia a parte substancial que capacita o ser humano a perceber-se como uma unidade e assim auxiliar o veiculo físico a cumprir sua tarefa. “Ter um corpo físico implica em ter um ego”. Tal centelha de informação que os santos conhecem. A real utilidade do ego está em armazenar e distribuir informações que cuidem do corpo físico, que por sua vez nada mais é que a residência da alma. Alma, palavra que não consta no dicionário do nosso guerreiro e abundante no manual do santo.

A raiz do problema é quando permitimos ao ego que interprete totalmente o nosso cotidiano. Quando isso acontece, a intuição, a mente superior, a vontade espiritual bem como suas virtudes perdem terreno face a um conjunto de crenças que em ultima instancia traduz-se por limitação. Os santos são aqueles que aprenderam a equilibrar as atividades desse instrumento de percepção material às atividade do espírito. Eles estão afinados com o conceito de que decodificar a realidade através do ego é interpretá-la somente através dos olhos físicos.

Enquanto isso, nosso guerreiro ajoelha-se mecanicamente e de forma distraída, observa as imagens nos vitrais. Seu repertorio sobre o assunto é estreito. Para ele, santos são pessoas que andam descalças e colhem flores, que oram dia e noite, que se nutrem de pão e água perpetuamente, isso quando não jejuam, vestem-se com mantos puídos, dormem em camas de palha ajudam os pobres e os doentes e não raro são supliciados pelos ricos e poderosos. Nosso guerreiro, na sua luta diária, abriu mão de um principio elementar: mente aberta e coração tranqüilo. Para ele mente aberta significa uma noitada de álcool, sexo e drogas, enquanto coração tranqüilo equivale a uma conta volumosa na caderneta de poupança. Ele não faz por mal. Ele simplesmente não tem idéia. Vai da igreja para o Fantástico num piscar de olhos, alheio a uma das principais canções sobre a essência do ser humano:

“Nada do que faço, sou eu quem faz(...) Sempre seguro de que esse é o mundo dos sentidos que brincam com as sensações. Realmente vê quem percebe que o esforço é praxe no mundo da natureza, para exercício da alma. Quem, apesar de agir, não é o agente”.

Quando a televisão enfim é desligada surge um sono abrupto, sem sonhos e sem o menor vestígio de pessoas Luther Burbank, adepto convicto dos princípios da alma, da meditação e da botânica, ou J.R. Lynn, empresário peso pesado e também adepto fervoroso da meditação, ambos imortalizados por um dos maiores iniciados contemporâneos, Paramahansa Yogananda.

Ninguém pode afirmar em que momento a confusão do nosso protagonista quebrou-lhe o cerne. Nem ele sabe mais distinguir quem surgiu primeiro: a pura obsessão por alterar constantemente sua razão, ou a necessidade de mantê-la para sempre alterada como único recurso para se refugiar de um mundo cuja aridez é insuportável. Talvez, se alguém tivesse lhe contado coisas sobre o amor, o desapego, e que tais coisas podem de fato andar lado a lado com ternos e gravatas. Sim, parece inverossímel, Falta de informação. Ou falta de desviar a atenção do quarteto básico preponderante: desrespeito, esnobismo, sarcasmo e suspeita. Tiques que o acompanham desde a época em que rabiscava folhas brancas com lápis de cera.

Tentando avaliar a sintaxe dos pássaros voando a seu redor, numa tarde abafada de verão, nosso guerreiro é abatido por um mal súbito em plena calçada. Conduzido pela ambulância de plantão e soterrado pelas lamurias dos amigos e parentes que o cercam, nesse dado instante ele deseja ser um super-herói.

No colo da avó, sonolento, o filho mais novo chacoalha numa das mãos um gibi do Super-Homem. A mulher esfrega as mãos numa atitude repetitiva e não menos aflita. Ele olha para todos com ar esmaecido, faltam-lhe forças para mexer pernas e braços, para grandes ou diminutos discursos, resta-lhe apenas suspirar sonhador sobre os poderes que usam capa e um “s” maiúsculo. Poderes, pensa aturdido, sedado pela enfermeira.

Há tempos a esposa deixou de ser uma companheira para cristalizar-se num mundo à parte. A felicidade, antes tão almejada por ela, perdeu-se no labirinto cotidiano da “não relação”, onde habita o amor não manifestado. A mãe, oriunda do mesmo planeta, outrora uma intuitiva de mão cheia despojou-se de suas habilidades psíquicas para se tornar uma ave de mau agouro.

- Vai morrer – pronuncia ela de olhos semi-cerrados.

Os médicos não chegam a tanto. Prescrevem repouso e uma bateria de exames. No entanto, a grande luz que se derrama sobre a fronte do enfermo é a de pedir a todos que se retirem.

Na penumbra pouco glamurosa de um quarto de hospital ele retém, como ultima imagem antes de cerrar as pálpebras, a capa do gibi deixado pelo caçula no sofá ao lado. Suas visões internas, suas confusões mentais, são um redemoinho de lembranças vagas e questões mal resolvidas. Como foi cair na calçada? Decerto não havia bebido. Não tinha esse costume, durante o serviço. Alias, acabara de sair de um cliente. Isso mesmo. De uma reunião tempestuosa. De um dia tempestuoso. Pela manhã, discussão com a mulher. À hora do almoço, outra contenda, desta feita com os sócios. Daí a tarde tensa, o raciocínio embaralhado, o encontro marcado. Então, alguns metros de calçada e pronto. Não, não tropeçara. Caíra, simplesmente, um tombo que veio de dentro.

Com o intuito de avaliar o paciente e a precisão dos aparelhos conectados, a enfermeira entra no quarto com passos furtivos. Ele finge que dorme. Quisera levantar e sair, Fácil, desvencilhado de tudo e de todos. Quisera ver além e ouvir além. Deslocar-se com a elegância de um gênio e resolver as questões todas num estalar de dedos. Os sedativos foram até a metade do caminho. Barraram-lhe ao menos a agitação e a compulsão por esbravejar. Queria paz, ou antes, isolamento.

Um texto publicado pela Associação Medica Americana, já faz alguns anos, determina que a raiva age como um verdadeiro veneno na corrente sanguínea, que por sua vez irriga órgãos e nervos, e o resultado disso não é confortador. É preciso, portanto, injetar no organismo um ingrediente de pouca bilheteria nessa cultura entulhada de ruídos – a paz. Super-Heróis, na sua concepção clássica, não sofrem de neurastenia ou depressão. Por outro lado, são criaturas sempre dispostas a ajudar o próximo. Uma atitude que, na visão dos santos, encerra-se numa única palavra – amor. Não se trata, contudo, do amor que se derrama nas canções de um homem por uma mulher e vice-versa. Tampouco do intenso e não raro desastrado amor de um pai por um filho e vice-versa. Ou do amor pela natureza ou ao seu bicho de estimação. Não. O amor que os santos exalam e que os super-heróis manifestam vem acompanhado de determinada qualificação: Amor Universal. Ou Amor Divino. Ele não fixa a atenção em defeitos. Por conseguinte ele não julga. Ele não espera nada, por conseguinte não se contraria. Nunca se ouviu contar que Super-Homem, ao carregar para o porto seguro possíveis vitimas de uma desgraça iminente, ele repentinamente diz: mas você, hein? Também, com essa barriga! E que berebas são essas na sua cara? E esse cabelo cheio de caspa?

O Amor Universal e/ou Divino absorve o que há de melhor em toda a parte, e quando a personalidade, ou a atividade exterior do espírito, reconhece sua presença e nele mantém-se sintonizada a realidade muda como num passe de mágica. Todo empreendimento é efetuado sem transtornos, ou os transtornos ocasionais são encarados como migalhas e indignos de nota.

As atividades criadoras e empreendedoras tornam-se continuas e expansivas, ambas tingidas pela autoconfiança e temperadas com alegria. Mas como gerar esse sentimento, com atenção e à vontade, e colocá-lo no lugar da irritação ou do ódio? Enquanto as religiões não se equiparam a carência da inteligência e a medicina pratica a inexistência da alma pouco resta senão se contentar com o prazer sem felicidade e aceitar a ciência sem sabedoria. Sábios de eras remotas diziam que para escapar disso, é necessário uma reconstrução do ser, algo apenas possível com o exercício simultâneo da vontade, da intuição e do raciocínio. Sábios modernos acrescentam: preste atenção aos alimentos. E eles não estão se referindo ao corpo físico. E num sentido figurado, seria então adequado dizer: uma coisa é alimentar-se de “baconzitos”, outra, de espinafre. Assim como o físico, o corpo das emoções, e mesmo o corpo mental, ambos necessitam de alimento apropriado. Se a vitamina concedida ao mental ou ao emocional for unicamente “Cidade Alerta”, além de más palavras continuas, será impossível uma colheita harmoniosa. Uma coisa parece correta. A personalidade só se estabiliza quando impregnada de princípios corretos.

Depois de 16 horas de sono ininterrupto, o despertar exibe apetite e silencio. Os médicos jogaram por terra os temores da mãe, diagnosticaram fadiga e recomendaram repouso. Pela primeira vez em muitos anos o guerreiro suplica trégua e deixa suas cordas vocais à mercê de um poder que não o seu ao dedilharem delicadamente o desejo de permanecer quieto e a sós. A esposa angustiada, os filhos relutantes e os sócios inquietos acataram a contragosto seu desejo. Antes de sair, a filha mais velha deixa sobre o criado mudo, em formato 14x21 cm, impressa a cores, a imagem de um santo.

Ele vira de lado para poder observar melhor o céu e as arvores, começando vagamente a conceber a idéia de que, no final de contas, a passividade não é tão indigesta assim. Talvez até seja um passo. E ela toma de novo as rédeas e lhe traz antigas lembranças. Histórias contadas por seu irmão, aquele que há muito já falecera e narrava, saudoso, em noites frias de inverno, suas viagens à Índia. A imagem do santo tinha cores fortes, tão fortes quanto as imagens evocadas pelo enredo do irmão. A Índia, dizia, é um lugar fervilhante de figuras cuja aura é vasta e benigna, com poderes extraordinários. Entre os seus eram de fato chamados de santos ou mestres, e sobretudo acumulavam poderes e realizavam feitos. Homens que materializavam objetos do nada, do éter, ou se preferir da substancia universal. Homens que aparecia e desapareciam num piscar de olhos. Mulheres que apareciam em 2 ou mais lugares ao mesmo tempo e que não necessitavam de alimento algum. Houve até o caso de um que, agredido por um incauto, ébrio e munido de foice, arrancou-lhe o braço de um só golpe. Testemunhas afirmam que o mestre sequer se abalou. Simplesmente pegou o braço do chão, colocou-o de volta ao lugar e prosseguiu seu passeio. O sol se pôs com mesuras ao pequeno quarto hospitalar, enquanto ele se deixava levar, num misto de conversa e reflexão, dialogo e monologo, por horas a fio.

- Mas eu tenho que lutar!

Krishna foi um guerreiro – esclareceu-lhe o interlocutor, que nesse ponto tanto fazia ser ou não seu irmão – guerreou deveras, comandou e venceu. Krishna, em dado momento, pouco antes de uma batalha decisiva, proclamou a um de seus discípulos: “Homens instruídos não lamentam nem os vivos nem os mortos. Eu e você existimos sempre e jamais deixaremos de existir. Aqueles que crêem que a alma pode matar e ser morta se enganam igualmente. Não há espada que a corte nem fogo que a queime”.

A voz soava como brasa em seus ouvidos. E como brasa o sol nasceu no horizonte, depois de uma noite cheia de vozes e outras tantas idéias.

Foi para casa num banco traseiro de um táxi perdido em toda a sorte de devaneios. A mão quente e úmida da mulher segurava na sua com firmeza e esse afeto foi ali indizível.

Filhos na escola, a casa quieta, a voz em ação.

Krishna desembainhou a espada, como o fez Joana D’Arc. Cristo, por sua vez, deixou bem claro que bastava um chamado seu para que as legiões do céu viessem em seu favor. Mas, se fizesse isso, teria contrariado todo o desígnio estabelecido. Porque a batalha de Cristo foi a de demonstrar o poder do amor. Houveram mesmo muitos guerreiros e guerreiras, dotados de incrível coragem e poder. Seres humanos independentes de sexo, raça ou religião, que abençoaram e curaram, iluminaram e apaziguaram. Houve um que abriu o mar. De onde tiravam sua força? Houve outro, um humilde encanador, que ao passar despretenciosamente pela rua, observou com atenção um pequeno prédio de 5 andares à sua frente. Olhando assim, não havia nada de errado. Mas ele sentiu alguma coisa, nunca soube dizer o que era. O fato é que saiu em disparada, tocando campainha por campainha, apartamento por apartamento, alertando a todos que o prédio ia cair. Tomaram-no por louco. O rebuliço foi tanto que todos saíram para fora, a fim de ver o que se passava. E daí o prédio desabou, literalmente, como um castelo de cartas. Ninguém se feriu. E o encanador continuou seu caminho.

Amanhã será um novo dia, pensou ele. E pensou muito antes de falar qualquer coisa aos ansiosos presentes na sala de sua casa. Queria mais uma dezena de horas silenciosas para cozinhar, em fogo brando, uma pequena semente que brotava em seu ser.

As qualidades tidas como super-humanas nada mais são do que o resultado de estrita disciplina e serventia a um plano de consciência que não obedece a impulsos de medo, críticos ou egoístas. Um plano que não qualifica nada do externo como fonte de poder. O poder reside na própria consciência. E ela só se expande se se resguarda daquilo que a altera. De resto, o caminho do guerreiro é a perseverança e perseverança é uma virtude espiritual.

Chega. Já pensara o suficiente. hora do jantar. A mãe e a mulher prepararam almôndegas, seu prato favorito. Os filhos saltitavam ao seu redor. Os amigos que chegaram de ultima hora disseram que ele parecia bem, só um pouco quieto.

Noite à dentro, luz apagada e abraçado à mulher, teve a sensação de que abrira uma determinada porta cuja importância ainda não conseguia avaliar. Sentia, apenas, que deveria mantê-la aberta. Desceu os olhos com a satisfação de quem muito remou num mar bravio e finalmente chegou à praia.

Bernard Gontier