Resumo

          O presente artigo pretende analisar a manobra política e religiosa do imperador romano Aureliano em mudar sua responsabilidade pessoal e ampliar sua capacidade divina. A representação divina é característica dos imperadores desde César, entretanto, Aureliano afirma ter recebido uma iluminação de que não é uma deidade, mas que possui uma interação exclusiva com a deidade, o Sol. Apesar de pouco tempo de governo, Aureliano conseguiu estabelecer profundas transformações no pensamento religioso e político dos romanos. O presente artigo discutirá elementos da origem do pensamento, características da implantação do conceito e alguns processos posteriores.

Introdução

          A participação dos gregos no império romano é clara, mas a forma com que isso é organizado geralmente oferece respostas simplistas que não valorizam a complexidade do assunto.

          Se o conceito de “impérium” é latino, a ideia certamente não o é. De acordo com os filósofos gregos, a organização burocrática, o gênio legislador, ou seja, a estrutura social de qualquer sociedade está vinculada a duas forças: o Corpo de Credos e a Vontade Social, logo, a teoria e a prática. O estado (império) romano é estabelecido no conceito helênico do líder divino, ou seja, uma pessoa dotada de virtudes sobrenaturais concedidas por deuses, dessa forma, o império se organiza no sentimento de lealdade e adoração ao monarca, essa é a forma em que se apresenta a vontade social.

          Se os gregos ou mais diretamente os helênicos (fusão de gregos e orientais) foram precursores na construção teórica de um império, os romanos foram os primeiros a tirar essas ideias do “papel”. A incapacidade dos gregos em criar um “império romano” está intimamente ligada ao espírito tenaz, trabalhador, prático e disciplinado dos latinos. Os gregos pensaram e os romanos tiveram a força de colocar em prática.

          A funcionalidade do império é fundamentada no espírito trabalhador e prático dos cidadãos romanos, pensadores, professores, agricultores, comerciantes, escravos e a mulher (mãe com filhos).

          Antes da genialidade matemática, arquitetônica, militar, comercial e agrária, o cidadão romano é fruto do trabalho da mulher romana. A educação cívica ostensivamente relatada ao pater da casa, que apesar de formalmente é responsável por dar a ultima palavra do lar, é “socialmente” lógico a tarefa de procurar na mulher a orientação para as ações.

          Depois de avaliar conceitos estruturais da sociedade, estudaremos elementos que originaram alguns conceitos do império.

 

1 Alexandre III

          Antes de Roma houveram outros impérios: Egípcio (1.500 a.C.), Semítico (2.750 a.C.), Hamurabi da Babilônia (2.100 a. C.), Assírios de Nínive (750-606 a.C.), os Persas que eram tão organizados como os romanos no que tange às Províncias e as Estradas (539-330 a.C.) e por último, Alexandre Magno.

          Assim como todos os outros, o império de Alexandre ascendeu sob a ruína de outros impérios. Aristóteles tentou direcionar a filosofia do império através do grande líder, mas nem Alexandre e nem seu império eram gregos na essência. Diferente da teoria filosófica, para o imperador os “outros” não eram bárbaros, desprovidos de cultura e que precisavam pela espada serem civilizados, para o imperador macedônico eles sustentavam culturas que em alguns aspectos eram superiores aos gregos, a sacralização da pessoa do líder é um exemplo. Ele unificou Ocidente com o Oriente, todos debaixo de uma só mão. Persas não apenas eram aceitos no exército grego como casavam com mulheres gregas. Alexandre adotou cerimonias persas na corte além de adaptar integralmente o sistema de províncias. Certamente os cargos mais importantes eram ocupados por gregos e macedônicos. Esse pensamento de não excluir as demais culturas como bárbaros e o rebaixamento do conceito grego de Cidadão (exclusivo) do Mundo, “isto representou uma revolução... necessária de qualquer sistema imperial do mundo” (Barker; Ernest, 1992, p. 63). Enquanto a guerra era a prática diplomática para solucionar os conflitos internacionais, o império alexandrino inaugurava uma nova era das cidades livres, sem barreiras, todas organizadas e “voltadas” para um único centro, uma única metrópole. O grande estado unificador e legislador do mundo.

          Para entender a eficácia dessa unificação global (pelo menos a todos os territórios anexados) é preciso levar em conta algumas verdades sociais: Divinização do regente é a primeira delas. Não havia discussão quanto à autoridade sobrenatural do líder. Dessa forma a lealdade ao estado se funde com o compromisso religioso. Ser fiel à Alexandre é ser fiel aos deuses.

          Se os filósofos desde do século VI a.C. já condenavam a participação da religião no pensamento organizador da sociedade, ou seja, eles criticavam a centralização “metafisica” dos saberes referente ao ser humano e a natureza, e de forma plural, produziam propostas para identificar explicações racionais. Entretanto, se os filósofos estão em uma guerra intelectual com o pensamento místico desde muito tempo, a aceitação popular dos argumentos poéticos permaneceram eficientes na organização social.

           Os fundadores mortos de uma cidade sempre eram elevados ao patamar de heróis. No contato com o Egito, Alexandre incorporou os conceitos de estado e religião juntamente com as ideias de um regente divino. Sem ferir com a história grega (fundadores heróis), ele reincorporou algo que estava esquecido pelos gregos. Somando as posições dos egípcios e o fato de ser ele o maior fundador de cidades da história da Grécia, ele assumiu o posto divino de senhor da religião e do estado. É importante entender que é comum nas civilizações antigas à percepção dos lideres de forma divina, somente os judeus não aceitavam tal especulação, pois distanciavam moralmente os homens de Deus por um abismo intransponível.

1.1 Filósofos

          O fato de Alexandre não ter levado em conta os ensinamentos de Aristóteles enquanto a disposição de “Cidadão do Mundo” não significa que ele era independente dos filósofos e que produziam seus conceitos. Como qualquer cidadão grego, ele defendia conceitos explorados por filósofos como Zenão, fenício helênico do século IV a.C., foi fundador do Estoicismo, é um importante personagem na construção do conceito de unidade social. Ele escreve A Lei da Natureza e da Razão onde estabelece a igualdade de todos os humanos. O próprio Aristóteles dizia que suas discussões eram tão complexas que geravam dor de cabeça nos que se dispunham a estudá-las. Zenão providenciou a base do pensamento de Alexandre, que proporcionou aos romanos uma das estruturas básicas do império, o estado global, que poderia organizar todos os povos, que teria um líder divino e herói, onde a sociedade deveria adorá-lo como expressão de adoração aos deuses, mas a participação da filosofia grega não encerra em Zenão para Alexandra, avança em Posidônio para César.

          Se Zenão é o criador do conceito de igualdade humana, Posidônio é o filosofo grego do século I a.C. que registra a organização social dependente da expressividade religiosa. A religião para ele é uma forma confiável para distribuir responsabilidades e poder, e assim, exigir compromissos éticos. Sem essa “garantia”, torna-se inviável a confiança em um indivíduo sem responsabilidades sociais/religiosas. Os elementos burocráticos devem caminhar junto da religião. Para Zenão a igualdade humana era um conceito inicial e que os gregos eram detentores de seus limites, já Posidônio, tão grego quanto romano em sua construção intelectual, a igualdade deve ter um proposito prático e funcional, deve propor progresso social e administrativo, deve favorecer o cidadão romano do campo ao trono do rei. As consequências da devoção religiosa devem ser igualitárias, ou seja, todos os cidadãos se tornam “um” debaixo do favor dos deuses, e que ninguém está isento das responsabilidades rituais, mas diferente de Zenão que limitava sua analise no âmbito do raciocínio complexo e teórico de Parênides, Posidônio explanava suas ideias para as lideranças de Roma, com o próprio Pompeu assistindo suas apresentações, isso porque suas teorias eram práticas e politicamente fundamentadas.  É impossível afirmar que Júlio César tenha sido um seguidor de Posidônio, mas certamente suas ideias foram incorporadas. “A cidade tinha a sua religião cívica, da qual os magistrados eram automaticamente, os sacerdotes. A religião real do século V a.C... era uma devoção a própria Cidade” (Barker; Ernest, 1992, p.71).

          Como a política e a religião era uma coisa só, os líderes utilizavam a política para produzir transformações religiosas e a religião para mudanças políticas. Os últimos séculos antes do nascimento de Cristo ficam cada vez mais evidentes a necessidade de se organizar por parte da religião um argumento único, centralizado e absoluto, ou seja, o monoteísmo, mas o judaísmo era demasiado fechado para providenciar esse intercâmbio. A religião monoteísta ainda era impossível para Roma, mas que posteriormente ofereceria toda a carga teórica para a construção de um Estado único para toda a terra.

1.2 Aureliano e a Manobra

          Grenal, Flaflu, Brasil e Argentina etc. Essas são expressões de rivalidade futebolística no Brasil, em Roma, a rivalidade era outra.

          Essa dualidade acompanha a história de Roma desde inicio. Oriente helenizado e Ocidente Latino. O Oriente desenvolveu os conceitos de religião (grega) e cultura (helênica) enquanto o Ocidente formado por latinos desenvolvia o espírito de cidadania e responsabilidade cívica. Se nos é permitido identificar as relações futebolísticas brasileiras do Grenal no império romano, a Igreja e o Estado são agentes eficientes dessa comparação, entretanto, diferente do Grêmio e Internacional que sintetizam sua rivalidade no campo, a Igreja e o Estado trabalham com uma complexidade absurdamente maior, pois, “O Oriente que deu a Igreja e a Religião ao Ocidente caiu nas mãos do Estado e o Ocidente, que deu a política e o Estado ao Oriente, caiu sob a soberania da Igreja” (Barker; Ernest, 1992, p. 94). O espírito ocidental politizado e estatal migrou para o oriente fundando o bizantinismo enquanto o oriente religioso e eclesiástico se volta para o Ocidente levantando papas e elaborando a religião latina de cristandade.

          Nessa dualidade do pensamento Ocidental e Oriental o império romano sustenta em comum apenas uma estrutura, o pensamento cívico como base da expressão religiosa. No entanto, no século III d.C. essa realidade mudaria.

          Esse é um momento delicado para o imperador, já que sua figura estava em profundo desgastante. Permitindo que se tornasse motivo de escárnio por incapacidade administrativa. Ou seja, era motivo de piada.

          De origem humilde, Aureliano foi um dos imperadores soldados. Depois de ser ascendido ao trono expulsou inúmeros povos rebeldes, as inúmeras vitórias militares deram a ele um prestigio já raro entre os imperadores, além disso, ele organizou o sistema de pagamentos dos funcionários públicos e militares descentralizando os monetari o serviço exclusivo da cunhagem de moedas. Criou uma classe de moeda alternativa, de prata, tinha valor menor que a de ouro, logo, impulsionou o comercio a negociar produtos que acompanhem os valores das novas moedas, isso produziu uma ampliação do acesso aos bens de consumo pelos mais pobres. Além de ser vitorioso no campo militar e funcional no campo econômico, Aureliano iniciou uma transformação no campo politico, religioso e filosófico no império.

          Se o imperador era motivo de piada, mudanças eram necessárias. Ele dá inicio há um novo sistema político que pretende reorganizar Roma, a mudança do status do imperador, de representante pessoalmente divino para emanação de uma divindade. Respeitar, ser submisso, acatar as ordens, dar crédito etc. São exemplos não de apoio ao imperador, mas ao deus dentro dele. A responsabilidade é alterada, se antes os imperadores eram encarnações divinas e mesmo assim cometiam erros, agora o líder recebe a glória do deus sol e com isso, sua capacitação sobrenatural para o governo. Isso parece ter diminuído o prestígio, mas na verdade aumentou. Como o líder divino estava descreditado, o novo líder possui acesso exclusivo ao maior dos deuses, o sol, entretanto, não mais com a responsabilidade de perfeição divina em seus atos.

          Naturalmente as alterações propostas por Aureliano avançam um conceito unicamente religioso, pois, a religião enfrenta debilidades devido a desfiguração dos imperadores e suas incapacidades gerenciais somado ao ego extravagante de seus gastos e atitudes repreensíveis. Estrangulada pela fragilidade moral dos imperadores que não demonstram motivos públicos para a devoção, a religião passa por um dos piores períodos da história de Roma. Religião e Roma são conceitos estreitos e separá-los é uma leitura histórica tão improvável quanto anacrônica.

          Logo, a mudança levantada por Aureliano, agora como o líder não mais divino, e sim um que é “capacitado divinamente”. Parece simples, mas amplia a força de sua figura e amplifica suas ideias, e uma delas é o conceito de religiosidade na expressão devocional e organização social.

          Antes de Aureliano, a religião romana é baseada no compromisso cívico. Ou seja, da época dinástica, até o império, a religião sempre organizou sua ritualística no campo social, na organização da cidadania. Os gregos tinham sua ritualística na discussão do místico, transcendental, ou seja, a expressão devocional direcionada aos deuses, para que os mesmos fossem aplacados em suas constantes iras e observasse nos adoradores o mérito do favor, já os romanos, tinham nos deuses, os organizadores da sociedade, e que a devoção estava ajustada com o compromisso coletivo, a harmonia social como base da vontade dos deuses. O objetivo da religião era a proteção da sociedade romana, e na prática, isso ocorria nas disposições em que os agentes institucionais decidiam ser a estrutura cívica mais adequada, ou seja, a religião deveria proteger a sociedade, protegendo o senado, o magistrado, o imperador e os demais regentes, na forma da construção do pensamento em obediência as normas cívicas. Ser religioso era ser cívico. Mesmo que o processo de interpretação de civilidade passasse por oscilações, já que os meios religiosos ficavam sob a direção de pessoas nem sempre qualificadas e preocupadas com o bem comum. Os exemplos são os imperadores famosos por suas atitudes egoístas e indiferentes com a opinião pública.

          Se hoje, discutimos o Capital Social como um fundamento da harmonia social, os romanos tinham na religião essa necessidade civilizadora.

          Como constatamos anteriormente, Aureliano estabeleceu uma alteração em sua disposição como imperador, no campo religioso e político. E isso não ficou na suavização de suas responsabilidades, pois, avançou para o campo do pensamento. Roma passa a ser uma civilização cujo pensamento religioso não mais atende a necessidades cívicas, mas espirituais, transcendentais, místicas.

          A força da religião romana sempre fora direcionada para a civilidade, agora, o foco está no poético, no místico. As coisas que transcendem passam a responder as grandes perguntas, como humanidade e natureza. Tudo passa a ter um viés religioso, uma explicação mística. Aparentemente, parece ser um retrocesso,  entretanto, é mais do que isso, trata-se fundamentalmente de que as repostas serão feitas pelas divindades que devem ser adoradas por essa interação pessoal, e que somente o imperador tem acesso às divindades e suas respostas. Os deuses respondem e perguntam. Mais do que fornecer as respostas, o pensamento religioso dominante propõe quais são as perguntas corretas, e quais as que estão fora do eixo dos deuses e que logicamente não terão respostas.

          Ao propor essa transformação, certamente, Aureliano não tinha ideia das dimensões que se tomaria. Baseado no pensamento metafisico do Neoplatonismo, o pensamento religioso dominante, domina a sociedade romana, que não precisa se preocupar com a devoção cívica, e que em muito breve, essa despreocupação se tornará desnecessidade. O inicio da indiferença social produzirá profundos problemas na forma com que a sociedade romana entende a harmonia social entre os cidadãos e forasteiros. Isso claramente explica a diplomacia bestializada que os regentes romanos trataram os godos, e as consequências que isso provocou no império.

 

Conclusão

          Ao estudar a influência de Alexandre, dos filósofos estoicos, da dualidade Oriente e Ocidente e da estratégia politica de Aureliano       percebemos que as transformações que o império romano passou foram numerosas, e que geraram diferentes formas de pensamento em muitas áreas do conhecimento humano. Uma delas, como refletiu o presente artigo, foi o Pensamento Religioso Dominante. É comum identificarmos no Cristianismo do Medievo a criação desse sistema politico religioso de organização social, entretanto, percebemos que se trata de um paradigma mais antigo. Que foi possível pelo sucesso militar do imperador e pela influencia dominante do pensamento Neoplatônico da época, que entre muitas variáveis, produzia o entendimento de que a estrutura religiosa explica as relações humanas e da natureza.

          Esse Pensamento Religioso Dominante ultrapassa o período do império romano politeísta. Avança por todo o Medievo monoteísta e fornece a base para a Idade Moderna com seus absolutistas divinamente dotados de virtudes espirituais de curas milagrosas. Somente o Renascimento providenciará um encerramento para esse pensamento, mais de mil anos depois que Aureliano sistematizou sua reforma politica.

 

Referências

BAILEY, Cyril (org) ;  BARKER, Ernest et al. O Legado de Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovich. Historia de Roma.5º ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 1993.

TOYNBEE, Arnold. Helenismo. 5º ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.