A LOUCURA NA SALA DE JANTAR
(DELGADO, Jaques. A loucura na sala de jantar. São Paulo: Copyright, 1991)

Trieste, cidade italiana, foi palco de uma das maiores revoluções na área da psiquiatria, pois lá que, pela primeira vez questionou-se a existência e a validade dos hospitais psiquiátricos. Por meio de Franco Basaglia e sua equipe, na década de 70, a loucura abriu as portas, pulou os muros do hospital e, sentou confortavelmente na sala de jantar. Sendo assim, percebe-se que estes visavam restituir o doente mental, que apesar de tudo é um cidadão que sofre e, que necessita voltar para a sociedade a fim de reconstruir a sua identidade.
Ressaltando que, depois de Pinel ? que o manicômio foi transformado em hospital humano, em local terapêutico e/ou, também, de contenção, da exclusão social - o que acorreu em Trieste foi o fato mais importante em termos de psiquiatria. Entretanto, nota-se que por meio deste processo, os médicos perderam uma considerável parcela do poder que detinham, pois já não davam mais conta de explicar o comportamento do louco que saía à rua, porém, se viu a necessidade de recorrer a outros saberes tais como a psicologia, a psicanálise e a sociologia. Considerando que, não só os médicos, mas toda sociedade italiana foi afetada pelas repercussões da abertura do manicômio.
De modo que, para a abertura do hospital psiquiátrico não basta abater a espessura dos muros, ou seja, para extinguir o hospital psiquiátrico é necessário inventar novas estratégias, por isso que, em Trieste, o louco não foi abandonado às ruas, mas sim reconquistou a possibilidade de percorrê-las. Sendo que, a assistência psiquiátrica continuou existindo, pois, se pode contar com o apoio do Centro de Saúde Mental das 8hrs as 20hrs, com as estruturas alternativas e, com os apartamentos de grupo de "utentes" (termo impregnado para substituir doente, paciente), sendo estes últimos indispensáveis para propiciar a ex-pacientes ou aos utentes a oportunidade de reconstrução da sua própria vida, do seu espaço e da sua identidade.
Diante disso, vale considerar que não foi indolor e muito menos fácil a história do movimento e, dos processos de transformação nos anos 70, no entanto, vieram a resultar na lei 180, esta que diz em seus primeiros artigos, que não deverão ser construídos manicômios e também, impõe a elaboração de soluções alternativas para a assistência psiquiátrica, ancorando-a a reforma sanitária. O circuito psiquiátrico, que anteriormente contava apenas com o hospital psiquiátrico, caminhou em direção à articulação de um modelo operativo mais complexo e aperfeiçoado.
Juntamente com todo esse processo, foi possível verificar que anteriormente, no momento em que se dava atenção à pessoa em crise, se estava simplificando o indivíduo no sintoma, no entanto, é passível de considerar que a condição de crise corresponde a uma complexa situação existencial, assim, percebe-se quanto devem ser complexos também os recursos e instrumentos para afrontá-los, ou seja, tornou-se necessário a compreensão da complexidade existente do aparecimento da demanda psiquiátrica e, dentro dessa demanda, a complexidade da crise.
Então, a atenção do serviço à situação do paciente na sua complexidade, como um todo de subjetividades, relações sociais e condição materiais de vida torna-se evidente, além do mais a experiência de hospitalidade no Centro, nas vivencias tanto do paciente quanto dos familiares, representa uma operação de desmontagem, prática e simbólica da "modalidade internação".
Algo mais a ser ressaltado, é o fato de que a psiquiatria italiana não era a mais avançada, todavia, nos anos 70, onde uma escola prática-teórica, cujos trabalhos coligaram-se a importantes movimentos sociais, culturais e políticos próprios daqueles anos, determinaram uma situação que levou à lei 180. Sendo que, esta lei que foi a primeira a restituir o direito à cidadania de todos, pois antes dela os doentes mentais não tinham esse direito.
Apesar dos desafios e das questões até então mal solucionadas, Trieste demonstrou que é possível e desejável viver sem manicômio. Isso serve de exemplo para todos os locais, de modo que, o indivíduo "desviante", através de seu sofrimento e da sua maneira única de expressá-lo, está fazendo apelo por ajuda.
Deste modo, sabe-se que este movimento da Luta Antimanicomial tem repercussões em todo o mundo, inclusive no Brasil, no entanto, particularmente, deve ser considerado que, existem mais dúvidas do que certezas sobre essa questão neste país. Pois, a realidade daqui é diferente da italiana, considerando que, existem sim propostas que servem de incentivo para tal movimento, porém, há pouca concretude nos serviços e, a sociedade de modo geral deveria modificar sua postura e seus pré-conceitos, ou seja, esta necessita estar preparada para realizar tal acolhida do doente mental nos diversos contextos.
Assim, não convém ainda, arriscar de o doente mental sair às ruas sem o apoio de serviços alternativos que garantam o seu bem estar e, que o acolha em seu sofrimento. Sendo que, isso é de provável ocorrência no Brasil na atualidade, pois, como já mencionado, é pouco concreto e suficiente os serviços prestados hoje para se extinguir os hospitais psiquiátricos. Além de que, a sociedade encontra-se pouco preparada para receber os doentes mentais, então não cabe correr este risco.
A proposta teórica pode ser convincente, só que na prática isso se diverge em partes, pois se percebe a atual necessidade de se contar com os dois serviços, ou seja, com o hospital psiquiátrico e com os serviços alternativos (CAPS, leitos em hospitais gerais, residenciais terapêuticas, etc). Então, segue-se em tal incógnita: ou o hospital psiquiátrico ou os serviços alternativos, pois faltam recursos financeiros para bancar os dois serviços, então, acaba prevalecendo os hospitais psiquiátricos.
Mas, para concluir, deve ser lembrado que, não se descarta a possibilidade de que talvez isso se concretize em um futuro, onde estes sistemas alternativos tenham evoluído e se tornados auto-suficientes para atender a demanda, além de que, a sociedade como um todo pode vir a se mobilizar por esses seres humanos que sofrem e, enfim os acolher sem rótulos, receio, e preconceitos.