Pelo que as asas do historiador, tal como as desse pássaro sem eira nem beira, o cuco, devem ser livres para o levarem a chocar os ovos dos ninhos que possam trazer futuros ao passado
Fernando Catroga

A análise de O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, aliada a outras obras como História e Ciências Sociais e Gramática das Civilizações, de Fernand Braudel, quando pensamos no continente africano, é bastante instigante porque nos possibilita problematizá-lo a partir das categorias tempo e duração. Além de pensar nas categorias temporais ainda ao longo de sua grandiosa obra propõe um modelo de realidade, as civilizações, e um método de pesquisa para transitar por esse modelo.
A primeira obra citada é uma referência singular na problematização historiográfica do espaço e do tempo. É aqui que ocorre pela primeira vez e de modo não muito sistematizado em seu pensamento uma abordagem do tempo apelando para a curta, a média e a longa duração. É curioso perceber que tal feito não ganha o foco da problematização inicial já que ela se destina a discutir o espaço do mar Mediterrâneo e da sua vizinhança na segunda metade do século XVII, mas se não fosse por abordar o espaço como ator e o tempo como elemento capaz conservar determinadas realidades em detrimento de outras, O Mediterrâneo, seria apenas um excelente livro entre os demais que tratam sobre essa porção de mar.
Braudel deixa claro, mas não aprofunda os tempos da história, classifica-os em tempo individual, tempo social e tempo geográfico, sendo que essa disposição guarda uma ordem crescente da duração, conformando formas díspares de se fazer história, ordenando-as ao passo que defende sistematicamente a defesa das pesquisas que ponderem a longa duração.
Num trabalho posterior, editado mais tarde como parte do livro História e Ciências Sociais, com o título A Longa Duração, estabelece que a história do tempo individual ou da curta duração seria aquela marcada pela brevidade dos acontecimentos, pelo calor da ação, fazendo parte de um todo bem maior sendo apenas uma parte de apogeu dessa macro realidade histórica. O tempo social faz referência à média duração, onde cabe uma história lenta capaz de responder a questionamentos acerca da natureza dos Estados, das sociedades e de alguns aspectos das civilizações. Com brilhante inovação o tempo geográfico dá conta da longa duração que é uma forma de perceber como o espaço se relaciona com o homem e como algumas estruturas da realidade se modificam de modo muito lento, quase estacionário, de modo que é difícil nos darmos conta.
O conjunto dessas categorias temporais inaugura uma nova forma de encarar as pesquisas históricas, englobando agora não mais somente a mudança como objeto privilegiado da história, mas também as permanências, antes tidas como automatizações. Assim podemos antecipar que a longa duração seria o grande legado braudeliano para a História.
É nesse universo de significação que o presente artigo pretende transitar com vistas a perceber como o continente africano foi significado em O Mediterrâneo e também em Gramática das Civilizações. Esse material foi escolhido por dois motivos: são as duas obras de nosso conhecimento que de uma forma ou de outra aborda o continente africano, além disso, marcam dois momentos diferentes da vida intelectual do autor distanciados aproximadamente por duas décadas de amadurecimento. O primeiro livro, finalizado em 1949, é o trabalho final de seu doutorado, sendo por isso uma elaboração teórica rigidamente construída. Já o segundo, construído na primeira metade da década de sessenta, foi pretensamente destinado ao ensino de história. Então deveríamos esperar uma grande diferença de significação da África devido a uma distância temporal e de objetivos dessas obras.
Em O mediterrâneo o referido continente surge carregado de significações cruciais para a compreensão das relações que se desenrolam no mar Interior e contribuíram de modo capital para a construção do território europeu no século XVII. Mesmo assim ocupa espaço irrisório, menos de dez por cento da obra, de modo mais pífio a África subsaariana ou o "País dos Negros" é abordado, cujo sentido é garantido a partir do contato com os europeus.
Ressaltamos que ambos continentes possuem uma gama de tipificações segundo a parte geográfica ou o aspecto a ser destacado. Nesse contexto há uma freqüência de termos África, África do Sul, África equatorial, África ocidental, África Menor e África do Norte. Percebemos também a freqüência dos termos Europa, Europa Central, Europa Ocidental, Europa Meridional, Europa Oriental e Europa Setentrional. Fato curioso é a presença mínima do termo África em detrimento de África do Norte, enquanto no tratamento do outro continente o privilégio é dado para o termo Europa, desconsiderando os demais. Dessa feita o processo de significação da África em Áfricas ocorre pela excessiva adjetivação do substantivo, que, se por um lado tenta localizá-la geograficamente, noutra mão diferencia-a dela mesma como se fosse uma série de lugares distintos e justapostos.
Além do mais a grande freqüência de Europa ao lado de África do Norte, induz-nos a pensar numa tentativa de aproximar esta daquela, fazendo um movimento de europeização no litoral norte da África ao passo que o isola do sul pelo deserto. Ora, como a proposta é discutir o Mediterrâneo a partir de seu lado norte, fica claro o grande papel de destaque para a Europa. Agora o que talvez seja um problema a se elucidar é a construção imaginária da África como um não lugar ou uma série de espaços independentes.
De forma parcialmente inovadora, Braudel constrói o arcabouço que lhe permite defender a longa duração, o tempo geográfico. Nessa parte da obra, descreve a ação do relevo e do clima como influenciadores da ação antrópica. O oceano Atlântico e o deserto do Saara emergem como sujeitos determinantes do clima mediterrânico, esse reinando na seca e aquele comandando os períodos chuvosos. Por esse e outros motivos que não cabem aqui, expande as fronteiras do Mediterrâneo, fazendo dele a medida do homem e do mundo, criando uma zona de influência mútua desse com os lugares mais remotos. Um efeito cascata de perturbações climáticas e econômicas, essas últimas o fomento capital de sua pretensa história total.
A expansão das fronteiras mediterrânicas no sentido norte a sul encontra os continentes aqui e geograficamente justapostos, se comunicando por essa faixa de mar, antiga e ainda viva encruzilhada de trocas culturais e comerciais. É nessa operação que surge o não lugar da África como civilização, portanto a história do Mediterrâneo orienta-se segundo um pólo europeu e segundo um pólo desértico .
Cumpre sua função com eficiência o Saara: isola o Mediterrâneo do País dos Negros e extrapola sua influência até o norte da Europa. O deserto seria o segundo rosto do Mediterrâneo, a antítese do continente privilegiado, o lugar vazio, vasto, pobre e miserável. O não lugar africano seria um vazio físico, geográfico e biológico onde paradoxalmente o homem adaptado faz grande esforço para ali sobreviver. Fazendo uma comparação da área e da densidade populacional das porções de terra em questão, tomando a do norte como parâmetro sente-se é certo a sensação de vazio no sul. Mesmo nesse vazio Braudel constata a presença de complexas sociedades sedentárias ou nômades com várias estruturas hierárquicas. Então é preciso definir qual o instrumento de medida e qual a graduação da escala usada pelo autor para medir a vida humana no continente africano.
Outro ponto que merece destaque é o papel do ouro africano como fator de equilíbrio da balança comercial mediterrânica nas suas transações com as especiarias do Oriente. Segundo o autor antes do século XVI ele foi a base da prosperidade do Mediterrâneo, mesmo contribuindo para o nascimento de várias cidades e estados muito antes do século X. Mesmo com a concorrência da grande massa aurífera oriunda do Novo Mundo, sempre comandado pela África do Norte, esse tráfico ainda persistiu. Sem explicação de conjunto, meio solta, aparece uma positividade quanto a essa questão, colocando a África aurífera numa relação parcialmente horizontal com a Europa, diferenciando-se desta pelo seu contato com os negros de sul do continente, como nos mostra:
Seria errado (os mais informados cometem tal erro) considerar a África Menor como um conjunto de países rústicos. Nos séculos XIV e XV, as cidades desenvolvem-se aí por vezes sem nenhuma proporção com os países que as rodeiam. Não vivem apenas viradas para o mar Interior mas também para o Sul, o país dos Negros, o Bled es Soudan. Dos confins saarianos às margens do Golfo da Guiné, estas ligações formam um sistema antigo, estruturado, <<de imutáveis condições geoeconômicas>> como escreve Vitorino Magalhães Godinho.
Nessa positividade não entra toda a África, mas somente a sua porção do litoral norte (África Menor), que pelas águas mediterrânicas seria contagiada pela civilidade européia transcendente. Em contrapartida o autor critica aqueles que não fazem a distinção entre o norte e o sul da África, julgando aquele a partir dos atributos que seriam pretensamente desse. Já é muito sabido que na dita História Universal houve um movimento teórico de desvalorização e isolamento dos territórios africanos, que possuem elementos culturais, sociais, econômicos e históricos muito entrelaçados a diversos outros elementos europeus de mesma natureza. Movimento esse fortalecido pelos orientalistas no século XIX e que ainda parte à porta de um passado recente, como nos aponta Silva:
Talvez se possa dar por contado que pelo Saara passava a linha de separação e encontro entre negros e brancos. Viveriam à distancia ou próximos uns dos outros. A hostilizarem-se ou a se misturarem. Os negros ao sul. Os brancos ao norte.
Partindo desse senso comum historiográfico, faz seu recorte da África de modo que o negro aparece no Mediterrâneo com matizes de pouca positividade e a partir do contato com os europeus ou com os outros povos mediterrânicos. As trocas materiais, as caravanas mercantis e a expansão do domínio português com o respectivo aumento do tráfico de escravos negros aliado ao comércio do marfim, sem contar a dinâmica economia do ouro, favoreceram a penetração do cristianismo na África negra onde passa a rivalizar com o islamismo em franca expansão a partir do norte e da costa oriental. No duelo dos monoteísmos mediterrânicos não cabe as milenares religiões negras. Não há nenhuma referência à possibilidade de os negros possuírem religião, que aqui são estigmatizadas como crenças.
Em resumo, O Mediterrâneo exibe uma imagem da África negra sempre disposta a aceitar os bens culturais europeus ou então como uma eficiente fornecedora de mão de obra escrava, uma mercadoria também dinamizadora da economia mediterrânica. Além disso, ela ainda ocupa o lugar do purgatório europeu, lócus de prisões, do degredo e da deportação. Um condenado a cumprir pena por lá jamais retornaria a seu solo matriz uma vez que é mais fácil chegar a estas prisões da África do que sair delas.
A matização da África negra na obra braudeliana pode ser compreensível quando se considera alguns aspectos e deixa a desejar quando se trilha outra direção que não a privilegiada pelo autor.
Para isso, passaremos a pensar a partir de outro livro. Gramática das Civilizações apresenta de forma didática o pensamento do autor, esclarecendo os dois conceitos fundamentais na orientação de seu pensamento, a saber: as civilizações e a longa duração, os dois objetos de devoção da vida de Braudel. Quando se ocupa da referida obra, no encalço da sua percepção do continente africano e de sua articulação com o conceito de longa duração é fácil diagnosticar um desencontro desse conceito com o modo de se historiar a África.
Duração e civilização emergem assim como um dipolo que induz a pesquisa de Braudel, que num primeiro momento do livro se esforça para delimitar o uso dessas duas categorias fazendo referência ao patrimônio cultural adquirido pela humanidade ao longo da história. A sua delimitação de civilização passa por outras categorias secundárias. Para o autor uma civilização é um espaço, uma sociedade, uma economia, uma mentalidade e uma continuidade.
No espaço geográfico delimitado por uma civilização, com suas vantagens e elementos desfavoráveis, o homem se adapta ao clima, à vegetação, à flora e à fauna, gastando nessa lida séculos ou milênios. Dessa forma o espaço é considerado uma estrutura de longa duração.
Como elemento diferenciador entre culturas e civilizações Braudel defende que essas possuem relações desiguais, são hierarquizadas, de modo a apresentar com freqüência diversas tensões e conflitos sociais, lutas políticas e transformações na sociedade, supondo assim a existência de casas, de cidades e de cosmopolitismo. Já culturas seriam sociedades de baixa entropia, permanecendo quase imóveis. Acreditando ou não nessa definição, ele já nos fornece um ponto de partida para analisarmos o seu modelo de África.
Ao defender que as civilizações são economias, que produzem excedentes e ondulações progressivas ou recessivas capazes de serem apreendidas pelo historiador, já cria outro desnível entre as sociedades dizendo que a civilização está distribuída de modo desigual entre elas.
Em seguida afirma que uma sociedade possui uma psicologia coletiva cujo traço primordial seria a religião e que abarca todos os interstícios sociais, alimentando escolhas, comportamentos e crenças. Essa mentalidade, fruto de heranças perdidas no tempo, de eventos acidentais, é também uma estrutura de longa duração, sendo o elemento crucial de diferenciação de uma civilização, o que não se pode transmitir ou apreender por completo.
O conjunto desses elementos consegue persistir no tempo dando uma dimensão histórica a cada civilização; está percorrendo a permanência ou a mudança é possível, historiar uma civilização. As duas maneiras de se fazer uma pesquisa histórica são possíveis, basta escolher as estruturas sociais adequadas, as longas ou as efêmeras, mas a mais proveitosa segundo Braudel seria escolher as estruturas de longa duração.
É partindo desse arcabouço que a África braudeliana é construída, desde já fica claro que esse modelo não serve para historiar esse continente. Em Gramática das Civilizações, dedica apenas dois capítulos a ele. No primeiro, abarca todo o passado africano, que é milenar. Trata do espaço, da geografia, das unidades culturais e lingüísticas bem como dos grupos étnicos. Tenta justificar as fragilidades do continente africano: precária abertura para o exterior, grande isolamento cultural, ausência de bens culturais anteriores ao contato com os europeus, solo pobre e clima estéril. Trata do século VII, da expansão islâmica e de alguns impérios litorâneos , mostrando grande desconhecimento do interior.
Com razão ou não, Braudel afirma que não se tinha conhecimentos acerca do passado da África. Talvez o seu pouco conhecimento sobre esse continente tenha favorecido sua elaboração teórica com essas peculiaridades.
Assim como em O Mediterrâneo, sugere que a cultura africana se deteriora a partir do século XV, quando sua economia pré-monetária entra em contato com o dinâmico comércio desenvolvido a norte do Mediterrâneo. A construção de seus textos e a consulta de sua bibliografia evidencia que o repertório das informações obtidas por Braudel dava conta apenas da escravidão . Seria interessante avaliarmos a qualidade dessas informações.
A África braudeliana entra para a História, fagocitada pelo seu modelo de civilização, a partir do século XV, quando o europeu volta o seu olhar para esse continente e, de forma mais sistematizada no século XIX, com o imperialismo. Com razão parcial defende que a África se beneficiou da colonização européia, recebendo bens culturais e materiais; mas também reconhece que esse brutal contato desarticulou a cultura africana, deteriorando milenares estruturas tribais, familiares e sociais basilares de modo de ser e viver do africano. Não bastasse isso a divisão territorial da África segundo o interesse das potências européias não considerou as especificidades regionais das culturas.
Pronto! Num breve capitulo está encerrada a história da África, não encarada como civilização, mas sim como cultura. Podemos agora nos questionar o critério desse enquadramento, visto que o referido continente possui um espaço com uma sociedade consolidada, comungando de uma mentalidade, durando e continuando no espaço e no tempo. No conceito braudeliano de civilização, temos que nos interrogar qual o modelo de economia adotado. Seria a dinâmica economia monetária de capitalismo altamente desenvolvido, típico do século XX? Será que a ausência de grande densidade de cidades na África aliada a não dinamização capitalista da economia seriam critérios seguros de não consideração da África como não civilização? Uma cultura não pode ser estudada a partir da longa duração?
Desconsiderando assim o legado de civilização da África, o outro capítulo se propõe a apontar os problemas que os africanos devem enfrentar no presente e no futuro. Aqui nossa atenção recai para a defesa da adaptação necessária das culturas e religiões primitivas ao avassalador processo de modernização e adequação do continente ao capitalismo liberal, pois Braudel responsabiliza-as de tornar inerte a cultura e a sociedade africanas.
Como já foi evidenciado ao longo do texto, ficam claros os pontos de desencontros entre a África de Braudel e a sua longa duração. Além disso, descontando os objetivos gerais das duas obras, a imagem da África que aparece em O Mediterrâneo é revisitada em Gramática das Civilizações, onde teve a oportunidade de explorar exaustivamente o significado da categoria que norteou a sua vida de pesquisador. Aqui surge uma inflexão entre a proposta teórica dele e o modo como historia a África.
Quando se aborda a história do século XV ou até de tempos mais remotos, vez ou outra se se confronta com o problema da duração de alguns elementos em questão. Mas para Braudel a África já aparece construída nesse tempo, dessa feita seu passado é negado. As sociedades, as cidades, as culturas, a língua e os grupos étnicos já aparecem formados e dispostos num espaço cruel.
Comparando essa história com a da Europa, tanto em O Mediterrâneo como em Gramática das Civilizações, percebemos que esse continente possui um espaço privilegiado no pensamento de Braudel, sendo historiado a partir do século IV. Pergunta a ser respondida: por que alargar a história da Europa e encurtar a da África? Por que atribuir a longa duração a um passado relativamente recente e encaixar um passado milenar num tempo social? Aqui tentaremos tecer algumas possibilidades de respostas.
De imediato poderíamos inferir que a preocupação vital de Braudel era compreender o espaço europeu, o tempo que culminaria com as turbulências da primeira metade do século XX, de modo que concentra mais tempo e esforço intelectual aqui em detrimento de seus conhecimentos sobre a África. Outro ponto a se destacar é o papel relevante em suas pesquisas da economia e das transações capitalistas .
O primeiro argumento apontado pode sim explicar o privilégio dado à Europa, mas não da conta da retração da África. Talvez essa retração possa ser entendida a partir do segundo argumento. Além disso, o seu modelo de cultura foi favorecido no enquadramento desta enquanto aquela foi abarcada pelo o de civilização. E fica evidenciado que a longa duração não cabe no estudo das culturas.
Resta-nos, pois pensar a natureza da categoria tempo e confrontá-la com a temporalidade na qual Braudel propunha as suas categorias. Para isso aceitaremos, junto com alguns pensadores , que o modo como se percebe o tempo contribui para um condicionamento da percepção da sociedade e também do processo histórico . Além disso, a percepção humana do tempo está bastante relacionada com o desenvolvimento dos seus instrumentos de medição e com a capacidade de teorizá-lo eficientemente .
Dessa feita o pensamento de Braudel se desenvolve na turbulência européia da primeira metade do século XX, o desejo de fim da história foram levados ao extremo onde os Estados nacionais seriam os agentes responsáveis pelo desejada aceleração do tempo que culminaria com o fim do processo histórico no mais elevado estágio de bem estar social, garantido pela nacionalidade . Com o ar beligerante ocupando a atmosfera européia e com o vertiginoso crescimento das Ciências Humanas a dissolução do longo casamento entre Filosofia e História é vislumbrado como um reflexo da incapacidade humana de acelerar o tempo. É certo que as utopias humanas fomentadas pela Filosofia e pela Ciência foram o comburente e o combustível que tomaram a cena dos acontecimentos vários episódios que marcam o mundo Ocidental.
O abandono da Filosofia e a posterior aliança da História com as Ciências Sociais deslocam o centro europeu de produção historiográfica da Alemanha para a França, desenvolvendo uma ojeriza ao legado que a Filosofia deixara para a História, mergulhando-a num empirismo exacerbado. Talvez fato tenha contribuído para que Braudel tenha conceituado suas durações a partir das adjetivações dos substantivos tempo ou duração. Qualificando os termos não elabora uma discussão do significado desses, antes, toma-os como categorias a históricas, automatizadas ou então como fazia a Filosofia, encarava-as como realidades essenciais e imutáveis.
Tomando um rumo ou o outro, Braudel não considera a dimensão histórica do próprio tempo e da duração; parte da concepção de tempo oportuno para a ação com vistas a antecipar um futuro certo e já conhecido, e faz isso privilegiando a Europa como o primeiro lugar desse futuro. É interessante ressaltar que se por um lado as durações solucionam uma querela entre História e Ciências Sociais, por outro viés causa extremismo na espacialização do tempo já realizada pelo Historicismo. Com a espacialização do tempo com a longa duração, o passado longínquo é defendido como campo de ação dos historiadores em detrimento dos antropólogos e demais cientistas sociais e também se aferrece o ritmo dos acontecimentos com a defesa de que muitas manifestações humanas na contemporaneidade possuem raízes num passado remoto, que é propriedade da História.
Partindo da resolução dessas querelas podemos dizer que Braudel olha para a África pensando nos problemas de seu tempo. Sobrepõe a esse olhar duas lentes: o capitalismo e o modelo de civilização européia. Descontados esses elementos, podemos tomar o seu conceito de longa duração, e alargando a sua concepção de civilização ao desconsiderar a exigência das cidades ou de relações econômicas sofisticadas, para aceitar a África como o lócus privilegiado da longa duração.
É na África que ocorre a transformação do homem em homem, que nasce o sentimento estético, que se domestica a flora, a fauna e a água, que se domina o fogo, que se desenvolve a metalurgia, que se desenvolve a relação homem-símbolo, que o homem se sedentariza, que desenvolve a agricultura, que desenvolve a linguagem, que se criam os mitos e as lendas.
Como podemos ver, a África deu grande contribuição ao processo civilizador . Todo esse legado africano não é abarcado pela longa duração em Gramática das Civilizações, de modo que ao tratar de algumas dessas conquistas, localiza-os bem em tempos remotos, mas não os espacializa.
Fica evidente o desconhecimento que Braudel possui sobre a África. É fácil pensar que no início do século XX esse continente poderia ser mais objeto de estudos de sociólogos, antropólogos e demais cientistas sociais que parte principal do trabalho de um historiador. Assim uma possibilidade que se pode aventar é que disputa entre as Ciências do homem a postura militante de Braudel como defensor da História enquanto disciplina federadora das demais o colocou numa posição desconfortável em relação à África, que era não era objeto de estudos dos historiadores de então. Assim usar as fontes de não historiadores era abrir mão desse esforço militante outrora iniciado por Lucien Febvre.
No que concerne a África, talvez o seu projeto interdisciplinar tivesse falhado. Reconhecer isso seria assumir uma derrota frente as demais Ciências. Sendo assim ou não, uma coisa é certa: algumas construções teóricas de Braudel, de grande eficiência na análise da Europa, possuem pouca serventia para o estudo do continente em questão. Mesmo assim o seu trabalho não merece ser desconsiderado ou relegado a segundo plano, antes de tudo ele marca um capítulo da história da História da África.
Mas uma coisa que foge ao olhar dessa interpretação, talvez possa ser o grande traço de originalidade de Braudel, aquilo que foi sendo incorporado pela sua grande qualidade teórica: Ninguém ontem e hoje que já se ocupou ou que pretende se dedicar à história da África ficará isento de trabalhar com a longa duração. Mesmo que não tenha conseguido fazê-lo, o autor deixa as ferramentas para o historiador de hoje se debruçar sobre a África. A elucidação da categoria tempo bem como da duração, de seus usos e das outras categorias temporais ainda é um problema capital para o alargamento e definição das possibilidades do campo historiográfico. Braudel deu mais um grande passo. Façamos o resto!
Precisar as durações e a reorganização de algumas instituições africanas é fundamental para compreendermos o processo civilizador do Ocidente.


BIBLIOGRAFIA

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