“A lógica própria do mundo científico”

 

Maria Célia da Silva – mestranda pela UNIR

Elton Emanuel B. Cavalcante – mestrando pela UNIR.

 

 

 

 

RESENHA

 

 

 

INTRODUÇÃO

Pierre Bourdieu (2004) faz, em “Os usos sociais da ciência”, uma sondagem daquilo que ele denomina de campos científicos e elabora três questionamentos que vão ser fundamentais para a temática abordada: qual a lógica própria do mundo científico?; quais os usos sociais da ciência?; é possível fazer uma ciência da ciência, uma ciência social da produção da ciência, capaz de descrever e de orientar os usos sociais da ciência?  

1. CAMPO CIENTÍFICO, O QUE É ISSO?

O que é um campo científico? Para Bourdieu (2004), as produções culturais são interpretadas pela Academia de duas formas antagônicas: a forma semiológica e a marxista. A primeira diz que para se compreender um livro de literatura, por exemplo, não se precisa de nada mais do que o texto em si; a segunda, preconiza que o mesmo texto em questão só se poderá compreendê-lo essencialmente se se analisar o seu contexto, pois há interesses ocultos (sociais, econômicos) que são os responsáveis pelo surgimento da obra.

Esse antagonismo também existe na ciência. No entanto, há uma terceira teoria, menos reducionista do que as duas anteriores, que o autor denomina de os “campos científicos”, os quais servem como espécie de “ponte” entre o texto/contexto (no caso das produções culturais), e entre a pesquisa científica e a sua produção efetiva. Campo é “o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.” (BOURDIEU, 2004, p. 20).

Alguns vão dizer que essa noção de campo se reduz apenas ao aparato burocrático, que é usado par limitar o pensar científico em favor de determinada classe social. Essa noção é incompleta, pois a noção de campo não se reduz à burocracia, esta é apenas uma parte daquele conceito.  

Já para outros, essa noção de campo é insignificante para a produção científica, pois a ciência pura é desinteressada e não se limita ao interesses imediatos da sociedade, transcende-os, na medida em que o objetivo central do pesquisador é a pesquisa em si, por amor à verdade científica, tal como o queriam Sócrates e Platão.

Essa opinião também é incompleta, pois a idéia de campo traz à tona interesses que nem sempre coincidem com o interesse econômico. Bourdieu, sobre isso, afirma que há dois tipos de capital: o econômico e o científico. O primeiro diz respeito àquele trabalhado por Karl Marx, por exemplo. Já o segundo, o que de fato interessa a Bourdieu, subdivide-se em dois e correspondem a duas formas de poder inerentes ao “campo” de pesquisa: “De um lado, um poder que se pode chamar de temporal (ou político), poder institucional e institucionalizado que está ligado à ocupação de posições importantes nas instituições científicas (...); de outro lado, um poder específico, ‘prestígio’ pessoal que é  mais ou menos independente do precedente, segundo os campos e as instituições, e que repousa quase exclusivamente sobre o reconhecimento, pouco ou mal objetivado e institucionalizado, do conjunto de pares ou da fração mais consagrada dentre eles (por exemplo, com os ‘colégios invisíveis’ de eruditos unidos por relações de estima mútua).” (BOURDIEU, 2004,p.35).

E o que há de comum entre os dois tipos de capital (o econômico e o científico)? A acumulação.

O capital científico gera aquilo que o autor chama de Illusio, pois o pesquisador finge desinteresse econômico e dá a impressão de que faz ciência por amor tão-somente à ciência, entretanto tal cientista tem, no fundo, um interesse que é inerente ao seu campo de atuação, ele quer reconhecimento pelos seus pares, pois sabe que tal reconhecimento lhe dará a autoridade e autonomia para pesquisar aquilo que lhe interessa, para que isso ocorra, porém, tal cientista necessita da máquina administrativa institucional que lhe financia a pesquisa. Ele necessita “acumular” capital econômico para conseguir capital científico. “Têm-se, assim, testemunhos vindos de responsáveis pelas grandes revistas americanas de física que contam que seus pesquisadores lhes telefonam dia e noite, angustiados, porque se pode perder o benefício de vinte anos de pesquisa por cinco minutos de atraso.” (BOURDIEU, 2004,p. 30).  “O eruditos são interessados, têm vontade de chegar primeiro, de serem os melhores, de brilhar.” (BOURDIEU, 2004, 30). Daí a luta incansável, os plágios, as calúnias cientificas etc. dentro dos campos.

Essa postura vai contra a ideia  de que o pesquisador/cientista é alguém que vive entre livros ou em laboratórios, que não tem muito cuidado com a vestimenta e que está sempre a usar suas pesquisas para uma causa desinteressada e nobre. Bourdieu dá a entender que isso é verdade no tocante ao mundo externo (ou seja, fora do campo científico), mas não em relação ao mundo interno, ou seja, ao campo de atuação do cientista, pois este é, como já foi dito, um capitalista:  acumula tanto verbas para sua pesquisa (capital econômico) como almeja acumular pesquisas que lhe deem notoriedade em seu meio (capital científico).

Desta forma, fica claro que há dois “mundos”, o mundo externo com suas leis próprias e o mundo restrito das instituições de pesquisa e divulgação científicas. Este último tem certa autonomia sobre aquele, e esta autonomia se dá porque nem sempre os interesses do mundo externo coincidem com os do mundo interno. Um cientista está preocupada com os recursos para a sua pesquisa e como agilizá-la dentro da própria instituição, mas o que verdadeiramente o motiva é o destaque entre seus pares, é o poder que ele pode conseguir perante os especialistas em sua área de atuação. Essa preocupação com os recursos para a pesquisa, como e onde consegui-los, a quem se direcionar, etc., juntamente com os interesses de reconhecimento intelectual por parte do pesquisador é que vai constituir a real noção de “campo”.

O que o pesquisador produz não vale por si só nem muito menos é tão-somente um reflexo dos interesses sociais vigentes, é tudo isso e, também, a tentativa de conseguir fama e a “imortalidade”, entrar para a História como um Einstein, um Platão, um Bacon etc.

Os pesquisadores, portanto, para realizarem seus desejos sociais e individuais, buscam um grau maior de autonomia, que é conseguido dependendo da instituição em que eles trabalham. Bourdieu (2004) assegura que um dos problemas-chave para a noção de campo científico é justamente o grau de autonomia que pesquisadores e instituições usufruem (BOURDIEU, 2004,p. 21). Daí resta saber “qual é a natureza das pressões externas, a forma sob a qual elas se exercem, créditos, ordens, instruções, contratos, e sob quais formas se manifestam as resistências que caracterizam a autonomia, isto é, quais são os mecanismos que o microcosmo (os campos) aciona para se libertar dessas imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações.” (BOURDIEU, 2004,p. 21).

Como conseguir autonomia?

Esta autonomia não é do pesquisador em relação à instituição em que trabalha, mas do grau de liberdade que seu campo de atuação tem sobre as pressões sociais, pressões sociais essas que vêm justamente pelo campo (pelas instituições onde o pesquisador trabalha). Bourdieu dá o exemplo da Biologia: “ se você tentar dizer aos biólogos que uma de suas descobertas é de esquerda ou de direita, católica o não-católica, você suscitará uma franca hilaridade, mas nem sempre foi assim.” (BOURDIEU, 2004,p. 22). Ao biólogo interessa menos as opiniões da sociedade civil do que as das revistas científicas. Exemplo disso: no Brasil, houve a polêmica sobre as células-tronco, que foi decidida no STF, mas aos biólogos brasileiros interessava muito mais saber o que uma revista especializada na China, ou no Japão, por exemplo, falava sobre o tema, do que aquilo que toda sociedade brasileira decidia, por meio dos ministros do Supremo, sobre o mesmo tema.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O campo é, desta forma, uma estrutura mundial, que tem sua própria regra e é alterada de dentro para fora. Bourdieu dá o exemplo das teorias einsteinianas, que repercutem em todo o campo da física, impondo maneiras de agir e pensar, discutir e concordar, que são autônomas em relação àquilo que a  sociedade pensa: afinal, mesmo com a pressão social sobre as bombas nucelares, não se deixou de pesquisar e evoluir sobre este tema.

É por isso que o discurso das ciências é muitas vezes indecifrável para o não iniciado, para aquele que não pertence ao campo, pois a ciência nem sempre se preocupa em agradar a sociedade civil, ao contrário, busca cada vez mais autonomia em relação a esta.

E tal autonomia é conseguida por meio daquilo que o autor chama da “estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem ou não podem fazer. (...) Compreendemos o que faz um agente engajado num campo (um economista, um escritor , um artista etc.) se estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos ‘de onde ele fala’.” (BOURDIEU, 2004,p. 24). A busca dessa “posição” dá autoridade (esta é chamada por Bourdier de capital cientifico) , e é esta autoridade que vai movimentar o campo, que vai impor novos hábitos ou fazer novas revoluções dentro desse campo.

Se Einstein tivesse elaborado suas teorias em uma universidade de pouco renome internacional talvez ela não tivesse a repercussão que teve. É essa repercussão científica a grande necessidade do cientista, ele vive mais para ela do que para si mesmo.

  REFERÊNCIA

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Tradução: Denice B. Catani. Ed. UNESP. São Paulo, 2004.