Cristina Maria de QUEIROZ

Graduada no Curso de Letras / UERN / UMARIZAL

RESUMO: Esse artigo tem como objetivo principal analisar o discurso político do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, enfocando o caráter político-ideológico da linguagem. Para isso, desenvolvemos nesse trabalho, uma pesquisa qualitativa, posicionamos nossa investigação para uma reflexão da relação dialética do indivíduo e da realidade representada pelo discurso, partindo do fato de que as ações do sujeito estão sempre associadas ao contexto histórico e social. Utilizamo-nos das fundamentações teóricas da análise do discurso de linha francesa, nas concepções de ideologias defendidas por Althusser (1985), Chauí (2006), Brandão (2004) e Maingueneau (1997), bem como autores como Charaudeau (2006) que trabalha com o discurso político. Então, baseada neste estudo, fizemos a análise de três fragmentos do discurso de posse pronunciado pelo atual presidente Luis Inácio Lula da Silva. Com base na análise do corpus, percebemos que o discurso político é uma representação, uma articulação lingüística que reflete a ideologia de um grupo social e ainda, que há um forte assujeitamento do povo em relação ao poder representado pelos políticos. A partir dos resultados obtidos, percebemos a existência de relações de poder e o embate ideológico presente entre classes sociais, como também a manipulação discreta de uma sobre a outra. A esse respeito, salientamos e enfatizamos a importância da linguagem no que se refere ao desempenho na sociedade, haja vista que ela nos possibilita uma compreensão não apenas do mundo e de sua característica simbólica, mas também a capacidade de analisar e identificar as influências ideológicas imbricadas nos enunciados, que por sua vez refletem as crenças e valores impressos na/pela sociedade. Palavras-chave: língua/linguagem, discurso político, ideologia.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A linguagem deve ser vista enquanto processo de interação social e é por meio dela que o homem tem a capacidade de construir significados da realidade que o rodeia, e que seus valores, seus pensamentos são reflexos dela, até mesmo suas ações são condicionadas por uma série de fatores que o assujeita.

Tendo em vista as propostas relacionadas às condições do sujeito dentro dos diferentes contextos ideológicos expressas pela Análise do Discurso e a necessidade de compreender melhor o funcionamento da língua como meio de interação para além dos aspectos lingüísticos, o nosso trabalho tem como objetivo analisar três fragmentos do discurso político do presidente da república Luís Inácio Lula da Silva, enfocando o caráter político-ideológico da linguagem, bem como as marcas ideológicas presentes nos fragmentos em análise.

Optamos pelo discurso político por julgarmos relevante analisá-lo no seu caráter dinâmico, mediante as condições de produção e sua relação com as influências ideológicas manifestadas pelo seu autor. A nossa opção também foi baseada no fato de que na oratória política há a construção de dizeres direcionados para a população carregados de argumentos que revelam uma preocupação (mesmo que aparente) com os assuntos e problemas sociais utilizados com a finalidade de garantir ao político a credibilidade enquanto representante do poder e do partido do qual faz parte.

2. CONFIGURAÇÃO TEÓRICA DA ANÁLISE DO DISCURSO (AD) DE LINHA FRANCESA

Um dos precursores da Análise do Discurso[1] francesa foi Michel Pêcheux. Para a criação da AD, Pêcheux (1993) realiza rupturas com as pesquisas estruturalistas e analisa a língua a partir de aspectos que vão além do ato comunicativo, ou seja, aprofunda-se nos aspectos extralingüísticos do discurso a fim de chegar à construção de sentidos do contexto social, histórico e ideológico no qual um determinado enunciado está inserido. Isso implica dizer que a língua é tomada como produto da interação entre os falantes. Assim, a linguagem é a materialização do discurso e carrega consigo as manifestações ideológicas de ordem sócio-histórica enunciadas pelo sujeito do discurso.

Partindo do pressuposto de que o discurso ou qualquer enunciado está relacionado com o contexto e a situação em que este enunciado foi produzido, Pêcheux (1993) emprega ao contexto a denominação de condições de produção. É nessa perspectiva que o sujeito ao produzir o seu discurso entra num jogo de imagens, ou seja, ele faz uma imagem do local em que ele enuncia, a imagem de si mesmo e do seu interlocutor, já que a existência do interlocutor é uma condição para que um sujeito se expresse de uma forma e não de outra. Assim, vemos que um enunciado de um locutor só ocorre quando este imaginariamente antecipa e organiza o seu discurso de modo estratégico de acordo com aquilo que o seu receptor espera desse enunciado.

Vale salientar também que no momento em que um sujeito se inscreve num ato discursivo, o vemos como um receptor de vários outros discursos através dos quais assume o papel de enunciador de discursos a fim de justificar a sua própria atuação por meio de crenças imaginárias da realidade que o cerca. Em outras palavras, o princípio básico que rege a noção de sujeito é o fato de que este é influenciado por uma ideologia.

De acordo com os princípios básicos da AD, o sujeito não pode ser concebido como um ser um sujeito único e egocêntrico. Mas como um ser ideológico, cujo discurso é na verdade "um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social" (BRANDÃO, 2004, p. 59). Isso implica dizer que para a AD a língua/linguagem não corresponde a um ato homogêneo, mas como um produto de interação social entre os homens, é concebida como um fato dialógico em que o "Outro" é essencial para a constituição do sujeito.

Com relação às formações discursivas, elas se caracterizam como um espaço determinante daquilo que pode ou não ser dito num dado contexto. De acordo com Brandão (2004, p. 48), "são as formações discursivas que, em uma formação ideológica específica e levando em conta uma relação de classe, determinam 'o que pode e deve ser dito' a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada".

Partindo desse ponto de vista, percebemos que a exteriorização do discurso regula o conceito do assujeitamento ideológico do sujeito do discurso, visto que é a formação discursiva que possibilita o fato de o sujeito, enquanto enunciador do discurso inserido numa determinada conjuntura histórica, ser capaz de concordar ou não com o sentido a ser dado às palavras. Assim, as FDs são o espaço em que é articulado o discurso e a ideologia, são componentes de uma formação ideológica, que por sua vez, pode revelar uma ou mais FDs. Assim, no interior dessas formações discursivas ocorrem diversos embates ideológicos que constituem o enunciado.

Tomando como ponto de partida a relação da ideologia com os aspectos teóricos da AD, vale ressaltar aqui a grande significação da FI no que se refere à exteriorização do discurso, o qual está marcado por conflitos sociais num dado momento.

Remetendo-nos aos conceitos de Brandão (2004), verificamos que é no campo da superestrutura ideológica ligada ao modo de produção dominante em uma formação social que a teoria do discurso vai demonstrar interesse, interpretando e analisando o modo de produção, chegando a uma instância ideológica.

Mencionando as relações de produção como processo de produção da instância ideológica, é viável salientarmos o fato da interpelação e do assujeitamento do indivíduo no momento da produção do enunciado. Isso faz com o sujeito do discurso "seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social", (BRANDÃO, 2004, p.46-47) mesmo que não tenha consciência disso e pense que é dono do seu próprio querer.

Mediante as atitudes e representações que não são individuais, nem universais, mas que estão relacionadas às diferentes posições de classes sociais que estão em conflito umas com as outras, a FI é capaz de intervir como uma força que encara outras forças na conjuntura ideológica peculiar de uma formação social.

Nesse contexto, compreendemos que os enunciados mudam de sentido segundo o lugar ideológico, as posições defendidas por quem as empregam.

2.1. A ideologia no campo das idéias

A ideologia é definida como uma ciência contrária à metafísica, à teologia e à psicologia, uma vez que prioriza a ciência. De forma sutil a ideologia manipula os sujeitos discursivos, assujeitando-os, além disso, a ela está ligada à divisão de classes sociais que confirma o domínio de um grupo social sobre outro, já que "estamos diante de classes socais e da dominação de uma classe por outra". (CHAUÍ, 2006, p. 82) e, conforme menciona Althusser (1985) o sujeito passa a funcionar como um produto das diversas estratégias de poder que coordena os indivíduos sob um plano ideológico, assim como representa uma relação social.

Sendo assim, a ideologia existe devido o embate das lutas sociais em que uma sobrepõe em relação às outras. Ela insere no âmbito social, idéias ou representações da realidade, com uma aparência social como se fossem os interesses de todos da sociedade, fazendo com que os dominados não se dêem conta do que são realmente. Em outras palavras, a ideologia não revela claramente a realidade dos fatos, mas tenta omitir seus verdadeiros interesses.

Acerca dessa concepção, Chauí (2006) aproveita para fazer um maior esclarecimento, baseando no fato de que a ideologia é um fato ilusório pautado numa aparência social.

A ideologia é ilusão [...] ela permanece sempre no plano imediato do aparecer social [...] o aparecer social é o modo de ser do social de ponta – cabeça. A aparência social não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo social aparece para a consciência direta dos homens. Isso significa que uma ideologia sempre possui uma base real, só que essa base está de ponta – cabeça, é a aparência social. (CHAUÍ, 2006, P. 94)

De posse desse ponto de vista Chauí (Ibid) nos mostra que a aparência é o que domina a ideologia, pois não revela tudo nem poderia revelar, visto que a aparência é exposta para o social, ou seja, a essência do discurso é individual e a ideologia é apresentada como uma aparência que emite a veracidade dos fatos para a sociedade. Há, portanto, uma espécie de camuflagem que mantém a divisão entre as classes sociais.

Com base em tudo que já ressaltamos sobre a ideologia (coerente com a perspectiva marxista), salientamos o conceito althusseriano de ideologia mediante as instituições e também como a práxis da atividade social. Desse modo, ele apresenta uma distinção entre a teoria da ideologia particular e da ideologia geral em que a última se apresenta como algo comum a todas as ideologias. O autor procura compreender o que garante as condições de produção e, para isso, ele parte da idéia de que o conjunto das relações imaginárias tem uma existência material, ou seja, há uma produção e reprodução de prática a todo tempo que Althusser atribui ao materialismo histórico.

Entendendo que a ideologia tem uma existência material e que estas juntamente com os processos políticos e econômicos se unem para dar unidade aos órgãos do Estado, Althusser formula três hipóteses para explicar melhor a teoria da ideologia de um modo geral:

Primeira, "a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência". (ALTHUSSER, 1985, p. 39) Com esta hipótese, Althusser mostra que a ideologia não é apenas uma representação simplória e automática da realidade, uma vez que defende a relação do homem com as condições reais de existência, sendo que essa relação é imaginária, distancia-se da realidade. Assim cria-se um distanciamento entre o homem e a realidade.

A segunda, "A ideologia existe sempre em um aparelho e na sua prática ou práticas". (Ibid., 1985, p. 41) Essa hipótese esclarece que a ideologia não tem uma existência ideal, mas material. Isso parte do pressuposto de que as ações de um sujeito provêm das idéias que ele acredita serem verdadeiras que por sua vez, acabam contribuindo para a materialização da ideologia. Assim, a materialidade do sujeito em cada indivíduo ocorre pelo fato de que "suas idéias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, definidos, por sua vez, pelo aparelho ideológico material pertinente as idéias desse sujeito". (Althusser, 1985, p.42).

"Na terceira hipótese, "a ideologia interpela os indivíduos como sujeito", (ALTHUSSER, 1985, p. 42) o autor esclarece que a constituição do sujeito depende de um fator histórico-social e sua consciência, enquanto ser sujeito se encontra nas relações sociais. O referido autor acrescenta ainda que o sujeito, por estar inserido num contexto histórico-social, tem suas atitudes reguladas pelos aparelhos ideológicos em que está inserido. Com isso, confirmamos o assujeitamento dos indivíduos às coerções sociais e ideológicas, já que "só existem sujeitos para, e através da sujeição". (ibid., p.45).

Por fim, podemos crer que a ideologia é, basicamente, a transformação de idéias de uma classe dominante em idéias dominantes que regem a sociedade. Ao mesmo tempo, essa classe dominante conta com o controle social, político e econômico tanto no plano material quanto no plano espiritual.

2.2. O discurso político

A linguagem do discurso político, ao exercer sua função comunicativa, esclarece a posição do sujeito discursivo na estrutura social que é, pois, a dominante.

O sujeito enunciador numa determinada circunstância enunciativa define o seu discurso e sua relações para compreender o outro e assim, persuadi-lo. Isso se ratifica quando recorremos a Osakabe (1999) e vemos que uma produção discursiva não depende somente do sujeito enunciador, mas do ouvinte, já que é neste que o discurso de justifica.Para esclarecer melhor, o autor continua assegurando que "um eu não define, por si só, a ação empreendida; é preciso que ele tenha sua imagem do tu ou o tu forneça essa imagem". (OSAKABE, 1999, p.59).

O discurso político está atrelado (seja pelo contexto, pela sua estrutura ou pelo seu público-alvo) a elementos coesivos, além de metáforas e jogos persuasivos, os quais são extremamente importantes para o locutor, uma vez que é através desses elementos que o sujeito do discurso pretende fazer com que o seu auditório comungue com suas idéias.

Com base nesse pensamento, Charaudeau (2006) chega a afirmar que o discurso político constitui-se num jogo de máscaras, já que nem tudo o que é dito deve ser interpretado ao pé da letra, pois nessa tipologia discursiva deve-se compreender aquilo que está sendo dito e não dito.

Desse modo, o discurso político, assim com todo tipo de discurso, apresenta inúmeros atos ilocucionários e perlocucionários específicos. O discurso político emite elocuções do tipo pedir, prometer, confessar, dentre outros, e são assegurados por atos perlocútarioscomo convencer e persuadir, uma vez que "os discursos políticos se escrevem no campo da persuasão, devem por seu efeito perlocutário, movimentar 'objetos' (a opinião pública, os eleitores)". (CORTEN, 1999, p.50).

Partindo dessa visão podemos inferir que a linguagem utilizada na oratória política é um fator de suma importância, uma vez que é por meio dela que o sujeito do discurso vai se definir mediante o seu interlocutor. Charaudeau (2006) declara que há aí uma relação sob uma perspectiva da alteridade, sendo que nessa relação, "o sujeito não cessa de trazer o outro para si, segundo um princípio da influência, para que esse outro pense, diga ou aja segundo a intenção daquele" (Ibid., p.16). Entretanto, para que o sujeito do discurso (o político) aja sobre o outro (o eleitor), faz-se necessário que aquele se utilize da palavra para chegar ao seu principal objetivo: persuadir a massa. Isso se justifica quando atentamos para o fato de que "a palavra intervém no espaço de persuasão para que a instância política possa convencer a instância cidadã dos fundamentos de seu programa e das decisões que ela toma ao gerir os conflitos de opinião em seu proveito" (CHARAUDEAU, 20006, p.21).

Sendo assim, para que um político possa se sobressair em seu discurso é fundamental que ele conheça as necessidades, ensejos e anseios do povo, bem como ter conhecimento de todos os problemas que acometem a sociedade e, com base nisso, organizar seu enunciado de modo que seus interesses sejam também os interesses do povo.

Partilhando desse pensamento, é que o autor acima mencionado salienta que o político deve inspirar confiança e admiração. Em outras palavras, o autor acredita ser preciso que o político passe a imagem de chefe ideal que vá ao encontro das emoções, crenças e sentimentos do pensamento coletivo.

Assim, conforme cita Charaudeau (2006, p.80):

O político, em sua singularidade, fala para todos como portador de valores transcendentais: ele é a voz de todos na sua voz, ao mesmo tempo em que se dirige a todos como se fosse apenas o porta-voz de um Terceiro, enunciador de um ideal social. Ele estabelece uma espécie de pacto e aliança ente estes três tipos de voz – a voz do Terceiro, a voz do Eu, a voz do Tu-todos – que terminam por se fundir em um corpo social abstrato, freqüentemente expresso por um Nós que desempenha o papel de guia.

Por último, reforçamos o fato de que o discurso político está situado numa espécie de jogo de sedução da massa, ou seja, através de uma linguagem simples e acessível ao seu público-alvo, o político aproveita-se dos anseios da maior parte da população para propor inovações, mudanças, usando a máscara para "disfarçar" e distanciá-lo da classe dominante, do poder, assumindo uma postura que aparenta ser comum a todos, pois "é preciso que os membros da sociedade não se percebam divididos em classes, mas se vejam como tendo certas características humanas comuns a todos..." (CHAUÍ, 2006, p. 85).

3. ANÁLISE DO CORPUS

Na análise do corpus, nos direcionamos para uma análise de questões ideológicas e das condições de produção, como também para os artifícios lingüísticos próprios do discurso político. Para a realização dessa proposta, selecionamos três fragmentos do discurso político do presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

Fragmento 01:

Mudança. Esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro: a esperança finalmente venceu o medo e a sociedade decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos. Diante do esgotamento de um modelo que, ao invés de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades; diante das ameaças à sabedoria nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico, social e moral do País a sociedade escolheu mudar e começou ela mesma a promover a mudança necessária. Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu presidente da República: para mudar. Este foi o sentido de cada voto dado a mim [...] Eu estou aqui neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores [...] para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela nação com a qual a gente sempre sonhou [...] (http://www1.folha.uol.com.br, 2003)

O enunciado do candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, na busca de manter a sua confiança e admiração por parte do povo, faz uso de um discurso recheado de emotividade a fim de sensibilizar o seu público-alvo e fazê-lo crer num país que terá melhores condições. O locutor, com o objetivo de fazer com que o destinatário comungue com suas idéias, demonstra uma preocupação com a construção de sua própria imagem e da imagem que o interlocutor terá ao seu respeito. Além da construção da sua imagem, o locutor não deixa de fazer referência ao seu antecessor, ou seja, ele se apropria de uma estratégia discursiva para tecer a imagem de seu "opositor" através da descrição gradativa dos problemas que atingiam o país na época. Essa estratégia utilizada pelo locutor tem como finalidade construir a imagem de si (ethos) como sendo o salvador da pátria, de modo que o público encontre nele a imagem de libertador dos males causados ao povo pelo adversário.

Quando atentamos para a expressão "estou aqui neste dia tão sonhado por tantas gerações de lutadores [...] para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil" percebemos um efeito de sentido que revela a certeza de que ele (o enunciador) será o político ideal para promover as mudanças necessárias no país.

Essa visão se torna cada vez mais clara quando nos voltamos para as condições de produção do contexto-histórico em que o discurso foi produzido, época em que o povo desse país passava por dificuldades econômicas e que, portanto, propiciou a formulação de um discurso repleto de palavras otimistas voltadas para a construção de um futuro melhor.

Além desses aspectos, vale ressaltar o que pontuamos no primeiro capítulo sobre o caráter da ideologia, que esta se mantém revestida por aparências sociais que omite a realidade das coisas e dos interesses individuais, ou seja, essa característica, para manter a aparência, nega a essência da fala do então presidente, pois seus interesses são revestidos de uma intencionalidade que manipula a sociedade. Assim, quando o mesmo enuncia que chegou o momento de transformar o Brasil na nação "com a qual a gente sonhou" temos uma formação discursiva de ordem social e uma formação ideológica dominante, fato que nos leva a deduzir que a ideologia, por negar as desigualdades sociais entre os homens, mantém-se na aparência. É por essa razão que a expressão "a gente sonhou" revela uma ação coletiva, evidenciando, portanto, a relação de poder, de dominação de uma classe por outra.

Dito de outra maneira, estamos diante do aparelho ideológico político, no qual o locutor, sujeito querepresenta esse aparelho procura garantir sua manipulação do povo por meio da ideologia desse aparelho. No referido fragmento, vemos que o locutor é, na verdade, veículo da ideologia do aparelho ocupado por ele, é um sujeito livre para expor suas idéias, mas limitado, submisso ao mesmo tempo, visto que a ideologia interpela os indivíduos em sujeito, de acordo com o pensamento althusseriano.

Fragmento 02:

É por isso que hoje eu conclamo: vamos acabar com a fome em nosso país. Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foram no passado a criação da Petrobrás e a memorável luta pela redemocratização do País. Essa é uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido e ideologia. Face ao pudor dos que padecem o flagelo da fome deve prevalecer o imperativo ético de somar forças, capacidades para defender o que é mais sagrado: a dignidade humana. (http://www1.folha.uol.com.br, 2003)

Essa declaração nos remete do jogo de imagens sobre o qual um "eu" não define o seu discurso por si só, é preciso que se tenha a imagem do tu ou que o tu passe essa imagem. Neste sentido, a organização do discurso é estratégica, uma vez que "o outro" é a condição par que o locutor se expresse de uma forma e não de outra. Trata-se, portanto, da natureza ideológica da linguagem.

Partindo dessa compreensão, vemos que o discurso do presidente Lula se direciona para a necessidade de combater a fome no país, um assunto que gera uma forte expectativa na massa, principalmente por se tratar da visão de uma nova política administrativa. Desse modo, o discurso político emitido pelo locutor, baseado na imagem que construiu do seu auditório, está repleto de intenções, ou seja, é marcado pela intencionalidade discursiva de convencer e persuadir o povo de sua luta, fato que explica o uso de uma linguagem clara, objetiva, e também, argumentativa.

Nesse fragmento, podemos verificar que a prática discursiva vai ao encontro dos anseios do povo, já que este público ouvinte-leitor acredita e espera que essas promessas se convertam em prática durante o governo político do presidente Lula.

Notamos também que o trecho em análise está inserido numa formação discursiva sociológica, uma vez que o locutor tem sua preocupação voltada para o social. É notável que essa formaçãonos reporta ao lugar que ocupa ao elaborar seu discurso, verificamos que enuncia da posiçãode presidente, fato que o coloca na sua situação de dominante, daquele que impõe sua ideologia, já que esta, se configura numa FD recheada de idéias da classe dominanteque acabam tornando-se idéias sociais.

Ainda com base nesse fragmento, vemos a necessidade de salientar que o discurso se mantém organizado sob uma enunciação elocutiva, visto que está sempre retomando ao termo "nós" ou expressões coletivas que contribuem para a imposição de um ethos de solidariedade para deixar claro que esse será o presidente que se preocupa com as necessidades do povão, comunga delas e se assume como responsável por elas, sem perder de vista a consciência de suas responsabilidades de homem público.

Fragmento 03:

Por meio do comércio exterior, da captação de tecnologias avançadas e da busca de investimentos produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando empregos dignos. [...] Em relação à Alca, nos entendimentos com o Mercosul e a União Européia, e na Organização Mundial do Comércio, o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela eliminação de barreiras e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento. [...] nos esforçaremos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. (http://www1.folha.uol.com.br, 2003)

O enunciado em apreciação procura colocar em evidência a luta para fortalecer as parcerias internacionais e como conseqüência, melhorar as condições de vida do povo brasileiro por meio dessas iniciativas. Notamos que o autor do discurso propõe uma relação político-econômica internacional entre os países desenvolvidos e aqueles que ainda estão em desenvolvimento, com o intuito de fortificar e equilibrar a economia brasileira. Quando o presidente diz que o Brasil pretende combater o protecionismo, sugere uma luta por melhorias econômicas e que os países desenvolvidos eliminem as barreiras para o comércio dos produtos brasileiros, isto é, Lula pretende eliminar ou amenizar os obstáculos alfandegários que acabam dificultando a exportação dos produtos de países como o Brasil cujas condições econômicas apresentam um baixo potencial.

Vemos no trecho uma declaração de elevado nível ideológico, uma linguagem utilizada com a finalidade de ocultar as condições da realidade brasileira e omitir os seus verdadeiros objetivos por meio de um discurso voltado para a valorização do bem-estar da população. Aqui se enquadra mais uma vez a função da ideologia que é de camuflar, omitir a dominação de uma classe social por outra, visto que os dizeres do locutor são encobertos por interesses individuais ou de um pequeno grupo social.

Em outras palavras, o enunciado deixa implícito que os seus interesses não correspondem aos interesses do povo brasileiro em sua totalidade, visto que todos esses investimentos atenderiam, em sua maioria, aos grandes latifundiários e empresários que lideram a produção agrícola e industrial, que lideram, portanto, a produção econômica do país. Para isso, o enunciador esclarece (e ao mesmo tempo omite seus verdadeiros interesses) que "o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando empregos dignos", deixando com que a massa brasileira acredite que suas intenções são as melhores.

Desse modo, temos nesse enunciado um sujeito interpelado pela ideologia, uma vez que emite um dizer regulado pelo aparelho ideológico em que está incorporado. Neste sentido, ratificamos mais uma vez, que temos um sujeito assujeitado às coerções sócio-ideológicas e nunca dono do deu discurso.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do princípio de que a ideologia tem sua materialização na linguagem e que o discurso é o objeto dessa materialização, comprovamos no corpus que os enunciados são revestidos por uma forte influência ideológica, e por isso, o sujeito representa o lugar social no qual está inserido e este o faz se expressar de uma maneira e não de outra.

Seguindo essa reflexão, é viável afirmarmos que o discurso político é uma representação, uma articulação lingüística que reflete a ideologia de um grupo social. Em outras palavras, o discurso político subtende uma ideologia e, conforme evidenciamos na nossa análise, há a presença de um forte assujeitamento do povo em relação ao poder representado pelos políticos. Evidenciamos também, que estes (os políticos) procuram, por meio de diversos recursos lingüísticos, deixar implícito seus verdadeiros interesses (interesses pessoais ou de um pequeno grupo social) com um discurso camuflado de boas intenções que deixa aparentar uma preocupação pelo bem-estar da população e da sociedade como um todo. Comprovamos, portanto, que por trás do dizer do político, há um jogo de sedução através do qual o locutor procura investir na imposição de uma ideologia dominante.

Essa estratégia típica do discurso político se justifica, uma vez que o político ao produzir um enunciado se coloca como um sujeito coletivo, utiliza estratégias persuasivas e organiza as palavras, visando à aceitabilidade de seus projetos políticos pela massa, por isso, a necessidade de uma linguagem argumentativa.

Identificamos ainda, no discurso político ora analisado, informações relevantes que nos conduzem a confirmar a veracidade da existência de relações de poder e o embate ideológico presente entre as classes sociais, como também a manipulação discreta de uma sobre a outra.

A esse respeito, enfatizamos a importância da linguagem no que se refere ao desempenho do homem na sociedade, haja vista que ela nos possibilita uma compreensão não apenas do mundo e de sua característica simbólica, mas também a capacidade de analisar e identificar as influências ideológicas imbricadas nos textos ou enunciados que, por sua vez, refletem as crenças e valores impressos na/pela sociedade.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 128 p.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: UNICAMP, 2004. 122 p.

CHARAUDEAU, P. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006. 327 p.

CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2006. 118 p.

CORTEN, A. Discurso e representação do político. In: INDURSKY, F; FERREIRA, M. C. L. (Org.) Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 1999. p.37-52.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3 ed. Campinas, SP: Pontes, 1997. 198 p.

MUSSALIM, F. Análise do discurso. In: BENTES, A. C; MUSSALIM, F. (Org.) Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. vol.2.; 4 ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 101-139.

OSAKABE, H. Argumentação e discurso político. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 224 p.

PÊCHEUX, M. Por uma análise automática do discurso. Campinas: UNICAMP, 1993.

SITES ACESSADOS

<http://www1.folha.uol.com.br// >Acessado em 10 jan., 2007.



[1] Doravante AD