A LINGUAGEM DO NARRADOR EM A BAGACEIRA

 

Ariana de Oliveira Terceiro*

 

INTRODUÇÃO

 

O presente artigo fará uma análise acerca da obra “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida. De início faz-se necessário uma abordagem sobre o autor e sua obra, bem como aspectos alusivos à obra, seguido pelo contexto em que ela apresenta-se inserida em sua escola literária: o modernismo, além de abordar a linguagem do narrador na obra e sua função

 

AUTOR E OBRA

 

José Américo de Almeida dividiu-se entre a política e a literatura, destacou-se como um dos mais importantes escritores paraibanos e nacionais, sua obra envolve desde ensaio, discursos e crônicas a romances e memórias. Na vida política, chegou a ser ministro do Getúlio Vargas (nos dois mandatos) e candidato à Presidência da República, eleição que não ocorreu devido ao golpe do Estado Novo. Seu romance mais conhecido "A Bagaceira”, lançado em 1928, sendo o título uma denominação referente ao local onde se juntam, no engenho, os bagaços da cana, figuradamente, pode indicar um objeto sem importância, ou ainda, gente miserável. Os personagens centrais são Dagoberto Marçau, Lúcio, Soledade, Pirunga e Valentin. O romance se passa entre 1898 e 1915 e a intencionalidade do autor, diante de uma trágica história de amor, acaba servindo como pretexto para denunciar a questão social no Nordeste.

Na visão de Alfredo Bosi, “A Bagaceira” tem intenção crítica social, desencaminhando às vezes o enfático e demagógico. Para o autor, o romance procura confrontar, em termos o homem do sertão e o do brejo (dos engenhos). Aproximando o sertanejo do brejeiro, na paisagem nordestina, José Américo de Almeida condiciona os elementos dramáticos aos ciclos periódicos da seca, os quais delimitam a própria existência do sertanejo, e afirma ainda que a obra passou a marco da literatura social nordestina. Crendo que se dava não tanto aos seus méritos próprios quanto por ter definido uma direção realista e um veio temático.

 

2.ª FASE DO MODERNISMO

 

A obra se apresenta como marco inicial dessa geração, a fase regionalista, onde as características como: a consciência do subdesenvolvimento, o neorrealismo, o regionalismo e a denúncia social, se fazem presente.

A narrativa focaliza a problemática da terra e a injustiça social existente no interior nordestino. Vale citar o prefácio, onde se faz presente o espanto do escritor face às mazelas: "Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã." (ALMEIDA, ___, p. __)

 

O USO DA LINGUAGEM PELO NARRADOR

 

A linguagem de “A Bagaceira” pode ser vista de modos diferentes, variando de acordo com os personagens que a usam: a fala do autor, de seu filho doutor ou do povo da seca e do engenho. O autor utiliza em sua obra a linguagem regional popular na boca de seus personagens não cultos, e a língua culta pelo narrador.

Nas páginas que antecedem a obra, o autor faz questão de apontar sobre a forma correta da escrita, mesmo em uma obra moderna e realista. “A língua nacional tem rr e ss finais… Deve ser utilizada sem os plebeísmos que lhe afeiam a formação [...] A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir…”.

A narrativa, com o vocabulário mais simplório do sertanejo, e utilização gramatical correta do autor, traz à tona um dualismo literário, no mínimo, interessante. Como no trecho a seguir:

“ (...) Mas, ali não se brigava por mulher: o amor não valia uma facada. O ciúmes mal passava de ameaças:

- Olhe que eu te dou uns croques!…

- Quando chegar em casa, você chia no relho!…”
Lúcio despertou, ouvindo um vozear estranho. Um formidável clamor que uivava dentro da noite. (Página 44)

 

Falar da linguagem em A Bagaceira é falar do regional, do popular, da cultura e da sociedade nordestina como um todo. Seus personagens têm, em sua linguagem, as marcas socioculturais que a distinguem dos demais falares regionais brasileiros. Os termos e expressões utilizados, na maior parte das vezes são de uso quase que exclusivos dos nordestinos menos favorecidos. Expressões como: acatitar os olhos, andar de capas encouradas, brote, dar de mamar à enxada, encontradas na obra, retratam em parte a linguagem atribuída aos brejeiros e sertanejos. Contudo, ao narrador é atribuída uma linguagem mais culta, superior a dos personagens.

Um dos pontos mais reiterados em torno do romance paraibano diz respeito à linguagem adotada. Os críticos têm dito que “[...] todo o livro é escrito em brasileiro. Ora culto, ora bárbaro, mas sempre em brasileiro, sem transcrição brusca e artificial [...]” (ATHAYDE, 1978, p. 42). No entanto, as abordagens sobre as formas de expressão do narrador e de suas personagens ressentem-se de comentários que implicam em um diálogo a respeito da maneira pela qual estas diferentes falas são geradas como representações da realidade. Os debates em torno do assunto giram em torno da constatação de uma construção suposta na naturalidade entre a linguagem “culta, colorida e musical [do narrador]” (PROENÇA, 1978, p. 82) e a linguagem regional das personagens.

No Marzagão, que não é apenas “o engenho onde decorre grande parte da narrativa” (ATHAYDE, 1978, p. 42), mas o verdadeiro local onde as personagens são envolvidas através dos valores éticos, morais e sócio-econômicos, ninguém passará impunemente ao narrador. Desde o senhor de engenho, Dagoberto, até os brejeiros pobres, todos referem elementos da cultura popular recriados sob o foco do homem de vasta cultura. A ética do Marzagão sustenta a própria narrativa, pois nos mostra certa divisão através da voz do narrador. Por meio dele, o leitor é encaminhado a perceber a negatividade na dominação de Dagoberto e a se penalizar com a situação dos moradores do engenho.

Os pressupostos do narrador baseiam-se em seu papel de homem ilustrado que denuncia a dominação sofrida a séculos pela população pobre e nordestina e que, para tanto, lança mão de dois estereótipos: o senhor do engenho, tomado como coronel, e seus subalternos, entendidos como seres incapazes para a luta social. Vejamos o trecho a seguir em que Dagoberto e Xinane são representações dessa oposição que seguirá em todo o romance e , ainda, o narrador que, em suas falas, resplandece seu tom de homem culto encarregado de realizar denúncias:

 

Dagoberto não quis saber de mais nada:

- Pois, por ali, cabra safado! Você não nasceu pra estrebaria que é de cavalo de sela:

nasceu foi pra cangalha!

Xinane continuou a cocar a cabeça, como se procurasse despertar uma idéia [...]

E, implorativamente:

[...] Patrão, minha rocinha, atrás do rancho! E a rebolada de cana!...

- O que está na terra é da terra!

Era essa a fórmula de espoliação sumaríssima. E o caboclo saiu, levando os cacarecos num braçado e 400 anos de servilismo na massa de sangue. (ALMEIDA, 1978, p.124)

 

A colocação de Dagoberto como personificação do controle das classes mais abastadas sobre os, financeiramente, subalternos gera a construção de uma personagem que é “o senhor de engenho”, cujo desprezo aos “cabras do eito” (ALMEIDA, 1978, p. 198) é patente por meio de palavras e ações. Ao mesmo tempo, Dagoberto é personagem dominada pelo narrador. Ele possui, após ou anteriormente a todas as suas colocações e/ou pensamentos, o comentário do narrador. Em tais momentos, a tradução do narrador é clara, pois este mantendo a voz de recriminação contra os desmandos da personagem, torna seus (do narrador) preceitos de igualdade social claros ao leitor e condena o dono do poder:

E como era de seu natural, o senhor de engenho, não encarava essas figuras ressequidas. Talvez tivesse medo de comover-se. Ou o olhar para o seu conceito de autoridade era excessiva benevolência. E esbravejou:

- O que já disse está dito! (ALMEIDA, 1978, p. 123)

 

A cada traço colocado pelo narrador, há a recriminação das condições sob as quais se vive no eito. Tudo é apresentado num realismo chocante e doloroso: “O pé fica rebolo”, “o pé vira toucinho”, “as plantas dos pés” são substituídas por “cascos endurecidos” (ALMEIDA, 1978, p. 206). É a expressão que configura a situação grotesca. Amparada nas hipérboles e nas metáforas e efeito, a voz do narrador levanta-se contra o estado das coisas, seguindo o preceito anunciado em “Antes que me falem”: Há muitas formas de dizer a verdade, talvez a mais persuasiva seja a que tem aparência de mentira”  ALMEIDA, 1978, p. 118).

Focalizando o mundo nordestino pelo olhar do cidadão culto, as colocações do narrador elegem o discurso ficcional como meio de denúncia da exploração do homem pelo homem e pela tradição latifundiária. Já no primeiro capítulo, a metáfora hiperbólica construída pelo narrador, adquire um tom que aproxima o ficcional do discurso de pregação: “Era êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redividos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres” (ALMEIDA, 1978, p. 120). No mesmo âmbito, o parágrafo introdutório do romance apresenta a piedade pelos pobres.

No referente a Lúcio, ele reforça o grito de denúncia do narrador porque idealiza o mundo de suas leituras, ele tem a “intuição dos reformadores” (ALMEIDA, 1978, p. 178) que o levará a “utopizar” um novo Marzagão. É tão marcante a diferença entre Lúcio e o engenho do pai que Valentim chega a afirmar: “- O senhor moço, não parece daqui...” (ALMEIDA, 1978, p. 161). Lúcio criara-se fora do Marzagão, em uma sociedade cujas raízes capitalistas já haviam substituído os laços de dependência feudal. Era, portanto, temporalmente, separado do engenho e próximo à voz que narra. Era o homem em quem, segundo o narrador, “a liberdade acadêmica” (ALMEIDA, 1978, p. 126) se construíra e lutara “contra o contrapeso da hereditariedade” (ALMEIDA, 1978, p. 128), transformando-o em uma pessoa possuidora da “consciência de ser bom” (ALMEIDA, 1978, p. 128).

É interessante verificar como ocorre a utilização das falas de Lúcio pelo narrador. Constantemente, o moço bacharel é apresentado em monólogo interior, reproduzido pelo narrador. Durante este processo demonstra-se claramente a tristeza do rapaz com o tempo e com o espaço do Brejo. Este recurso é recheado de recriminações ao contexto social do engenho, aproximando suas posições e as do narrador: “desassossegava-se  com o martírio trivial [...] um meio de esquecer a própria dor para sofrer a dor dos outros” (ALMEIDA, 1978, p. 128). Quando em discurso direto ou indireto livre, a situação parece não se modificar. Em todos os casos, as colocações do senhorzinho ora aparecem com a mesma recriminação citada e ora resplandecem como representativas do moço romântico e sonhador que se  apaixona pela sertaneja, mas não tem coragem para efetivar este amor. Desta perspectiva, a posição inerte de Lúcio para com Soledade parece parodiar as construções românticas, férteis pelas peripécias dos apaixonados, e manter como função a manutenção do estereótipo do brejeiro: o homem alienado, sem ações. Duplamente, portanto, Lúcio colabora com o narrador que toma sua voz e suas ações para alçar o objetivo de explanar reivindicações de liberdade, denúncia, e modernidade.

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REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1978.

 

ATHAYDE, Tristão de. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

 

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 40 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

 

SANTIAGO, Silviano. A bagaceira: fábula moralizante. In: ______. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.