A vontade é uma liberdade dada por Deus, senão fosse, Ele seria acusado de injusto, pois, se os nossos atos fossem advindos de Deus seria impossível culpar o homem de algum ato, seja ele bom ou ruim, tornando Deus um pecador por estar enganando os homens. Descartes percebe que não há possibilidade que Deus seja enganador, haja vista, para enganar algo ou alguém, Deus precisaria ser um grande enganador, o que nos faz levar a uma contradição. Como um ente considerado perfeito em todos os sentidos pode ter em si uma imperfeição? Descartes afirma que

"reconheço que é impossível que ele me engane jamais, posto que em toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição. E, conquanto pareça que poder enganar seja um sinal de sutileza ou de poder, todavia querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia. E, portanto, isso não se pode encontrar em Deus". (DESCARTES, 1973, p.115)

       O pensador atenta que Deus atribui aos homens várias capacidades e uma delas o conduz à verdade, todavia, se a introspecção observa erros nos caminhos humanos, isso certamente não pode ser culpa de Deus, pelo contrário, é a falta Dele, assim, para Descartes (1973:116) "conheço que o erro enquanto tal não é algo de real que dependa de Deus, mas que apenas é uma carência".

       Deve-se entender que Deus não é o autor do mal, mas sim o próprio homem e não existe um só autor, cada pessoa que toma alguma atitude má se inclui. Mas a maldade não é inata, de alguma forma aprendemos a ser mau, isto é, o mal teria se proliferado ao mundo de pessoa para pessoa sucessivamente. Para Santo Agostinho (1995:26), esta herança maldita passada para as gerações não pode acontecer, visto que, o mal nem pode ser ensinado e nem pode ser aprendido, pois, "mostra-se evidente é que a instrução sempre é um bem, visto que tal termo deriva do verbo "instruir"". Assim, será impossível o mal ser objeto de instrução". Portanto, o mal não é passado de pessoa para pessoa, mas sim, encontra-se em cada um independentemente do outro, então, o que nos faz a gerar o mal? Para santo Agostinho, as paixões é a força motriz da maldade.

       Mas, quem nos deus a paixão foi Deus, desta forma, poderíamos acusá-lo de ter nos dado algo pecaminoso. Certamente, Agostinho negaria esse última premissa porque Deus jamais se submeteria a levar ao homem o pecado através da paixão, pois seria injustiça, e, sendo injustiça, então isso não vem de Deus. Se a paixão, como corruptora do homem, não vem de Deus, então, de onde é proveniente a paixão? Em concomitância a , o responsável pela submissão do homem à paixão, seria o livre-arbítrio e a vontade, assim ele diz:

Se, de um lado, tudo o que é igual ou superior à mente que exerce seu natural senhorio e acha-se dotada de virtude não pode fazer dela a escrava da paixão, por causa da justiça, por outro lado, tudo que lhe é inferior tampouco o pode, por causa dessa mesma inferioridade, como demonstram as constatações precedentes. Portanto, não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade. (AGOSTINHO, 1995, p.52)

       Sendo a vontade uma das causadoras pela submissão à paixão e a paixão nos leva a pecar, por que temos vontade? Para o filósofo, se não houvesse vontade, não haveria felicidade, porém, essa felicidade é advinda da prática de quatro virtudes: Prudência, força, temperança e justiça. Mesmo assim, por que alguns conseguem a felicidade e outros não? Há de se perguntar isso porque até agora nos é entendido que, mesmo que Deus nos tenha concedido a vontade e o livre-arbítrio e que os erros causados não é culpa dele e sim de nós, pois, possuímos paixão, então, por que Deus, permitiria que alguns sejam felizes e outros não? Nesse princípio, Deus seria injusto e mal.

       De acordo com Agostinho, o motivo que nem todos conseguem a felicidade é por causa da função entre "querer-merecer". Como a vontade é algo voluntário do homem, só merece a felicidade aquele que vive na retidão e na honestidade, e, viver assim, depende do nosso livre-arbítrio, logo, aquele que escolhe querer viver na retidão e honestidade, merecerá felicidade. Entende-se então que, para Santo Agostinho (1995:25), quem pratica o mal, sofre o mal, logo, "Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigo aos maus". É fácil entender tal ideia, pois, quando temos essas quatro virtudes, o ato de praticar cada uma delas é somente através da vontade, contudo, não devemos entender que a vontade é algo ruim e que nos tendencia a errar, a vontade tem seu lado bom e esse lado bom só pode ser chegado através da escolha, como a escolha é sempre feita pelo homem, logo, as consequências de tais escolhas são responsabilidades do homem, sendo assim, a nossa vida é ditada pelas escolhas que fazemos. Nessas circunstâncias, quando a pessoa quer escolher coisas boas, como recompensa, terá coisas boas. Se a pessoa escolhe por ações ruins, ele terá como recompensa, coisas ruins. O valor do merecimento de cada coisa, é proporcional à atitude que a pessoa tomou para merecê-la, assim, não se pode punir alguém de forma injusta. Entende-se então que a nossa felicidade depende de nossa boa vontade, portanto,

se por nossa boa vontade amamos e abraçamos essa mesma boa vontade, preferindo-a a todas as outras coisas, cuja conservação não depende de nosso querer, a conseqüência será, como nos indica a razão, que nossa alma esteja dotada de todas aquelas virtudes cuja posse constitui precisamente a vida conforme a retidão e a honestidade. De onde se segue esta conclusão: todo aquele que quer viver conforme a retidão e honestidade, se quiser pôr esse bem acima de todas os bens passageiros da vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ele, o querer e o possuir serão uma só e mesmo ato. (AGOSTINHO, 1995, p.61)

        Como a ação vem depois da vontade e a vontade somente pode existir por causa do livre-arbítrio e é por causa do livre arbítrio que pecamos, então, entende-se que é necessário a existência do livre-arbítrio porque é através dele que podemos saber o quão justo é o homem, mas devemos entender que esse "justo" é algo que deva ser feito através da virtude humana e não porque a pessoa foi forçada a ser justa. Ou seja, a finalidade do livre-arbítrio, é viver retamente.

      Destarte, o homem só pode ser considerado justo quando o mesmo faz o bom uso do livre-arbítrio. Se não houvesse o livre-arbítrio não poderíamos afirmar que a escolha não seria proveniente do homem e as atitudes injustas ou justas não seriam emérito do próprio homem, mas sim de Deus, se o homem não pudesse ser acusado de seus próprios erros, então Deus seria o culpado, porque foi ele que incitou o erro. Por isso, para Santo Agostinho (1995:75),

Se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir o bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre. Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja fonte é Deus. (AGOSTINHO, 1995, p.75)

       Conclui-se que, se o pecado não é ensinado, se Deus não faz o homem errar ou pecar, e ele não é culpado pelos os erros humanos, então, era necessário que Deus concede-se ao homem o livre-arbítrio da vontade, já que, caso não houvesse recebido, o homem certamente não teria podido pecar e nem Deus poderia diferenciar o virtuoso do não virtuoso.


REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
DESCARTES, René. Os Pensadores. 1ª ed. São Paulo: Abril S.A, 1973