Em A Ordem do Discurso Foucault desenvolve a idéia de que nossa civilização, apesar de venerar o discurso, tem por ele uma espécie de temor. Como conseqüência, criaram-se sistemas de controle instituídos de forma a dominar a proliferação dos discursos
GREGOLIN, 2004, p. 97

A epígrafe escolhida concentra em poucas palavras o que quero materializar nessa análise Contos Proibidos do Marquês de Sade, filme dirigido por...... cujos personagens principais são: Marquês de Sade, Madeleine, Abbe Coulmier e Dr. Royer-Collard. Cada um destes estando estreitamente relacionados com a produção de um discurso e a proliferação dele. Analiso pelo viés da análise do discurso francesa essa produção e circulação de um certo discurso cujo autor é Marquês de Sade. A partir dessa análise também defendo a importância do conhecimento da língua em foi filmada a obra para melhor abarcar a totalidade da mensagem que o filme quer passar aos que têm a possibilidade de ter acesso a ele.

Marquês de Sade produz um discurso repleto de erotismo e mesmo blasfêmia, um tanto exagerado para a época, meados do século XVII (dezessete) na França. Ele escreve o que é hediondo para a maioria, embora a maioria gostasse de lê-lo. Atirado num manicômio (Charenton) não só pela escrita, mas também por atos promíscuos, ele continua a fazer com que sua obra continue a chegar às mãos de seus leitores, tendo para isso a preciosa ajuda da bela Madeleine (Kate Winslet), apreciadora dos contos. Abbe Coulmier apresenta-se como um amável e carismático abade responsável pelo manicômio, coloca-se como amigo do Marquês e tenta a todo custo, com sua amizade, resgata-lo daqueles pensamentos e desejos satânicos segundo a visão de Abbe. Como os inócuos métodos do abade são ineficientes entra em cena, a convite de Napoleão, o  Dr. Royer-Collard, psiquiatra famoso pelas curas dos doentes mentais utilizando das mais terríveis máquinas de tortura. Contudo, o Marquês não se deixa vencer e mostra mesmo no doutor, aquela que pretende curá-lo de sua depravação, as perversões que o desejo sexual o leva a realizar.

2. O Traidor que Traduziu

 O título original do filme (Quills) e o adotado para veiculação no Brasil ( Os Contos Proibidos do Marquês de Sade) unem-se numa complementaridade de sentido a respeito do mesmo que deveria, a meu ver, estar ao alcance de todos, levando-nos a dois pontos, antagônicos: o de controle, afinal são Os Contos Proibidos; e o de liberdade, pois Quills significa pena utilizada para escrever, o que nos remete a leveza e ao vôo, às plumas. No ato da tradução há um pecado de impedir que esse sentido seja possa ser percebido. Considero nesse momento haver uma traição, que limita o entendimento na totalidade do que se quer passar com o filme, que apesar do apelo erótico não chega a apresentar cenas de sexo explícito.

Muito mais instigador para aquele que lê o título seria Quills, por não entregar diretamente do que se trata ao mesmo tempo dando a entender que algo será escrito, e em torno/por meio desse discurso em questão é que os personagens agirão.  Mas não me deterei nesse artigo a discutir a famigerada traidução.  Apenas quero lembrar aqui o sinal oferecido já no título original do filme sobre o que ele quer colocar em discussão e que seria sempre bom numa análise atentarmos para o título original do que nos propomos a analisar.

3. Os Mecanismos de Controle Foucaultianos em Sade

Segundo Foucault (1998) embora nossa civilização venere o discurso também tem por ele uma espécie de temor. Esse medo, consequentemente institui os sistemas de controle de tal maneira a interditar os discursos temidos pela sociedade.  Os sistemas de controle, Foucault divide em dois grupos: os mecanismos de controle internos e os externos. Assim o princípio de autoria o autor como foco de coerência; o comentário - O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta; e as disciplinas - definem-se por um domínio de objetos; são os mecanismos internos de controle. Agindo internamente na delimitação do discurso. Contudo há ainda os sistemas de controle externos podendo chegar a interditar um discurso. Foucault os divide em três: a interdição não se pode dizer qualquer coisa em qualquer lugar; a separação/rejeição o discurso do louco é impedido de circular; e a vontade de verdade temos vontade de saber/conhecer a verdade, o que nos soa falso é rejeitado.

Dentre essas categorias me interesso pelas relacionadas ao controle externo cuja presença é constante no decorrer do filme. O protagonista, Marques de Sade, passa o filme todo preso interditado pelo fato de que seus enunciados foram julgados proibidos pela sociedade francesa do século XVII. Alguns trechos de suas obras são lidos em alta voz e chegam a chocar o católico que esteja a assisti-lo com a descrição de atos cuja carnavalização é inegável como um em que Justine, personagem-título da obra lida, tem uma hóstia inserida em suas entranhas rosadas por um bispo que a pusera em seu colo. Uma blasfêmia. Por enunciados, assim a sociedade procura segregá-lo, determinar seu silêncio entre as paredes do manicômio de Charenton, afinal o louco não poderiam fazer soar além daquelas paredes os enunciados patológicos daqueles escritos fato que o próprio Marquês questiona ao ditar aos loucos uma de suas obras através das paredes para que sua colaboradora pudesse transcrevê-la para o papel, mesmo porque, dele fora tirado então até as vestimentas. Segundo Foucault (1971) desde a Alta Idade Média, a palavra do louco não é ouvida e baseada nessa proposição a igreja o condena ao manicômio, assim seu discurso seria rotulado como o de um louco e não teria leitores.

Todavia enquanto do marquês é tirada a pena, depois o vinho, ou qualquer instrumento para a escrita, ele dita sua obra, chegando mesmo a questionar se sua obra passando pelas mãos (boca) dos loucos não ficaria ela ainda melhorada?  Não seria a presença dos loucos uma necessidade social para enfrentarmos nossos vícios, por exemplo? Quem seriam realmente os loucos? A vontade de saber estabelece a verdade: as obras do Marquês de Sade são impuras e impróprias a leitura de qualquer francês do século XVII que fosse considerado virtuoso. A segregação e a interdição do autor dos contos em questão é produto dessa verdade historicamente produzida, logo é a vontade de verdade, um dos mecanismos de controle externos, o fundamental sistema de exclusão que atinge e proíbe o discurso em questão.

4. A Função Autor em Sade

Ao voltarmos nosso olhar para o Marquês encontramos nele uma função autor que é mais forte que ele mesmo, sequer a manutenção da própria vida importa. A função autor seria a "característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade" (Foucault, 1992, pág. 46) Os leitores de Sade conhecem o teor de suas obras e aguardam sempre ansiosos pelo próximo. O desejo de escrever extrapola quaisquer limites e se mostra indiferente aos diversos sistemas de controle externos que insistem em tentar silencia-lo. Seja com sangue, vinho, ou suas próprias fezes a função autor no Marquês deve ser exercida como se estivesse amordaçada em seu interior e só a escrita a libertasse, precisando de asas - a pena - para voar.

A cena da morte do Marquês corrobora quão forte é o desejo de escrever.  Privado da pena, e de qualquer instrumento porventura útil à escrita, o Marques utiliza as fezes para escrever seu último conto nas paredes da masmorra onde fora deixado. Dentre as palavras escritas na parede destaca-se: brazier que pode ser traduzido como braseiro, aquele que queima, perturba, exige reação.  Não encontramos visível princípio de controle interno no Marquês. Não há disciplina delimitante, o autor como foco de coerência e princípio de agrupamento de discurso, centra sua obra no tabu de então (inclusive contemporaneamente): a sexualidade e a expõe da maneira mais explícita possível desprezando doutrinas, ritos sagrados ou qualquer princípio de controle.

5. Considerações Finais

A pena nessa obra é a personagem silenciosa mais falante de todas, tendo um caráter simultaneamente leve e pesado para o Marques. Como instrumento de escrita é leve e deixa-o mais leve por poder escrever com ela seus contos; pesada por ser através dela que o Marques recebe a condenação, a pena de ficar recluso num manicômio, e posteriormente a pena de morte. Face aos princípios de controle retomemos utilizados para dominar a proliferação dos discursos (Gregolin,2004. p. 97) , volto por fim, ao substantivo que intitula, em inglês, o filme: QUILLS. Tal termo o faria por mero acaso? Poderia outro substituí-lo com tamanha significância numa obra em que são mostrados tantos princípios de controle? QUILL, como traduzi na  introdução, remete-nos ao vôo livre das aves, e nessa quill o Marquês alça seus vôos, se liberta de todo e qualquer controle externo e não só ele.

O personagem Abbe Coulmier, o abade, durante todo o filme é um dos cerceadores do discurso, termina por encontrar nelas (as quills) a verdadeira liberdade. O ex-diretor do manicômio, um religioso, acostumado a disciplinar seu corpo, negando-o muitos dos prazeres terrenos, surge por trás de uma das portas de ferro, numa das celas, totalmente transformado, cabelos soltos, desalinhado. Tal cena deixa claro, pela imagem do abade o que acontecera com ele. Fora libertado. O cabelo sempre alinhado anteriormente aparece solto, livre de qualquer instrumento cerceador de suas ondulações, assim como a alma do abade. A insistente repetição do discurso do Marquês, que ele até estimava, resulta por transformá-lo; nas palavras do mesmo para se conhecer a virtude é necessário conhecer o vício. O que, porém, não o leva a simplesmente repetir-se como um segundo Marquês. Ele produz um discurso diferente, porém, com a mesma sede de fluir. O padre acaba por encontrar a libertação das hipocrisias sociais nas quills e como acrescenta o narrador no fundo de um tinteiro, par indispensável às penas.