A Lenda da Mandioca
Publicado em 15 de setembro de 2009 por Manoel Brandão Nobilli
Texto interpretativo que reúne pontos
Comuns de diversas versões da lenda.
Parte I
Conta-se que há muito e muito tempo, numa aldeia lá pelas bandas do rio Iriri, tributário do Xingu, o cacique Arumarã, de uma tribo de longa tradição agrícola, viu-se num tremendo embaraço quando percebeu que sua filha, ainda na idade da primeira volta-da-lua*, recebera em si o sopro do vento que agita a água para perpetuar a vida.
Mas como aceitar um desvio dos costumes: permitir a renovação do ciclo da existência temporal, antes do menda-hab? Interrogou veementemente a jovenzinha que jurava inocência persistentemente: he-maran-é-im!
Atordoado pelo turbilhão dos pensamentos que, neste tipo de situação, se contradizem e se multiplicam a cada instante, capazes até de fazê-lo aceitar o que é errado e negar o que é certo, refletiu profundamente sobre o acontecido e decidiu, usando sua grande sabedoria de tupichab, manter a menina confinada em uma oca até que Tupã lhe desse um sinal.
Passado o tempo certo, nasceu uma criança muito diferente dos outros curumins: era branca como leite, tinha cabelos alvos como as sábias cãs dos antigos awa-tu-a'u, os olhos eram de um verde profundo, pareciam a cor da floresta vista do alto da montanha em dia chuvoso.
A criança recebeu o nome de Maní e a notícia do seu nascimento, assim como das circunstancias peculiares desse acontecimento, espalhou-se rapidamente. Todos que ouviram falar sobre ela vinham de todos os lugares para vê-la e confirmar aquela estória singular.
Parte II
Várias luas se passaram e a criança, que estava sempre risonha e crescia em perfeita saúde, de súbito, sucumbiu à única e inexorável certeza que a vida reserva. A tristeza espalhou-se tornando sombria aquela linda manhã de sol.
Arumarã, pretendendo garantir proteção à infante alma, ofereceu-lhe lutuoso abrigo: levantou uma oca sobre o derradeiro e definitivo leito.
Algum tempo depois brotou naquele lugar uma plantinha desconhecida, nem os habitantes mais antigos daquelas redondezas souberam identificar.A planta crescia a cada dia e quando estava mais alta que o próprio cacique, fendeu-se o solo ao redor do caule, expondo as grossas raízes.
Curioso, Arumarã arrancou a planta da terra, limpou cuidadosamente as raízes e chamou toda a tribo para vê-las, pois eram da cor dos curumins.
Ao retirar-se a fina pele marrom, descobriram que existia outra, branquinha como a cor de Maní. As mulheres acharam que as folhas da planta tinham a mesma cor dos olhos da criança e ninguém teve dúvidas de que se tratava de um presente de Tupã.
As raízes foram utilizadas como alimento e pedaços do caule foram distribuídos aos mais velhos, que os enterraram, cada um em sua oca, onde nasceram outras plantas iguais a primeira.
Com o passar do tempo o cultivo da planta foi passado de geração para geração e hoje nós também a conhecemos, é a mandioca.
Léxico:
Awa-tu-a'u – homem velho ou pessoa idosa.
Curumim – criança
He-maran-é-im – sou inocente ou sou virgem.
Menda-hab – casamento.
Tupã – Deus
Tupichab – chefe.
*Volta da lua – menstruação.
Obs.: Apesar de não ser a principal família lingüística predominante na extensão do rio Xingu, optou-se por termos do Tupi para a composição deste texto.
Manoel Brandão Nobilli