A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA: REINVENTANDO OS CONTOS DE FADAS

Mônica de Souza Serafim

Universidade Federal do Ceará

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RESUMO: Ao examinarmos os Parâmetros Curriculares Nacionais, no capítulo sobre Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a literatura deixa de ser vista de forma dicotomizada, deixa de ser valorizada apenas pela leitura de textos clássicos e passa englobar tanto os textos tradicionais como os contemporâneos, em suas modalidades oral e escrita. Visando mostrar como esta nova tendência para o ensino da leitura pode ser utilizado nas escolas, este trabalho tem por objetivo mostrar uma experiência de (re)leitura de contos de fadas com alunos-professores do 2º semestre do curso de Letras de uma universidade da capital cearense. A fim de empreendermos este trabalho utilizaremos como postulados teóricos as contribuições de Aguiar (2001), Bordini e Aguiar (1993), Colomer (2007) e Mafra (1999), que versam sobre a importância de investir em diversos meios que permitam ao professor despertar o interesse do aluno pela leitura. A metodologia empregada para a realização deste trabalho consistiu na apresentação teatralizada e modificada dos chamados contos de fadas nas salas de aulas, de ensino fundamental, que os próprios professores-alunos do curso de Letras ensinavam. Ao realizarmos esta proposta de trabalho com os professores-alunos, pudemos constatar que o teatro é uma excelente ferramenta de trabalho para despertar nos jovens alunos de ensino básico o interesse para lerem as obras interpretadas, além de mostrar para os professores-alunos outras possibilidades de se trabalhar a leitura, fugindo, um pouco, da tradicional e, muitas vezes, exclusiva leitura do livro didático ou paradidático, tal concepção faz com que a leitura literária seja vista como uma atividade que associa as práticas sociais comunicativas e acaba por resultar em atos de leitura produzidos no espaço escolar, associados à vida cotidiana.

Palavras-chave: leitura literária, teatro, contos de fadas.

INTRODUÇÃO

Ao examinarmos os Parâmetros Curriculares Nacionais, no capítulo sobre Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a literatura deixa de ser vista de forma dicotomizada, deixa de ser valorizada apenas pela leitura de textos clássicos e passa englobar e a modificar tanto os textos tradicionais como os contemporâneos, em suas modalidades oral e escrita.

Nesse ínterim a narrativa aparece com umas das seqüências textuais a sem abordadas nas aulas. A explicitação desta seqüência textual pode ainda ser algo um tanto novo na escola, mas o mesmo não ocorre se procurarmos a origem deste tipo de texto.

A narrativa é o gênero mais utilizado na troca de experiências entre os falantes de uma língua. Dado o caráter inerente à narração, quem narra se torna o centro das atenções, passa do relato de fatos aos relatos pessoais, expõe uma série de eventos, vividos ou imaginados, relacionados a um fio condutor que envolve, principalmente, o tempo, o espaço e os personagens.

As primeiras formas de narração eram feitas através de desenhos sobre a superfície de algum objeto, tais formas evidenciaram as primeiras manifestações da necessidade do ser humano de expressar sua visão de mundo, de exteriorizar suas idéias e emoções (daí a importância da narrativa na psicologia jungiana), enfim, de estabelecer comunicação com outros indivíduos. Nossa concepção de narrativa é baseada nos estudos de Barthes (1971), segundo o qual a narrativa começa com a própria história da humanidade, não há em parte alguma, povo algum sem narrativa e também na tese evolucionista dos usos da escrita desenvolvida por Ehrlich (1983).

Segundo Ehrlich (op. cit.) o homem, desde a mais remota Antiguidade, usa a escrita para as mais diversas finalidades, dentre elas: o uso emprático ou atos elementares de fala; o uso homílico ou atos de fala para o entretenimento (como o relato de histórias e conversas); o uso institucional e o uso para a troca de informações ou transmissão de conhecimentos. O autor ainda apresenta um quadro de distribuição de funções entre a fala e a escrita em que o uso homílico é o mais empregado, quer na atualidade, em comunidades lingüísticas européias e norte-americanas, quer por suposição nos primórdios do desenvolvimento da escrita. Para o autor, a transmissão do conhecimento era fundamentada no ato básico da fala, no ato de "contar", isto é, através do discurso narrativo.

As reflexões iniciais deste trabalho nos incitaram a traçarmos um breve estudo sobre a seqüência textual narrativa, ponto que será desenvolvido a seguir.

2. ANCORAGEM TEÓRICA

Os estudos de Ehrlich (1983) conferem à narrativa um status especial e um grau de importância percebidos pelo grande interesse comque tem sido estudado o discurso narrativo nas diversas áreas do conhecimento humano.

Graesser, Golding e Long (1991) mostraram as diversas áreas do conhecimento que possuem um grande interesse pela narrativa, como a psicologia cognitiva, a inteligência artificial, a lingüística computacional, a crítica literária, antropologia e a educação. Os autores conferem à narrativa este status especial por esta ser uma forma de discurso fácil de ser compreendida e lembrada quando comparada a outros tipos de discurso, como a definição, a descrição, a exposição e a persuasão. Mas há traços do discurso narrativo que não podem ser separados da modelagem cognitiva (os autores trabalham principalmente com essa concepção). A importância que o gênero narrativo assume no sistema cognitivo é explicada, primeiramente, pelo seu conteúdo e depois pela forma como o conteúdo é representado e pela quantidade de exposição. A troca de experiências, seja ela vivida ou imaginada, entre o falante/ouvinte ocorre mais freqüentemente através do discurso narrativo do que entre outras formas discursivas e é ao mesmo tempo regulada pela cultura, que orienta o conteúdo da narrativa. Como o conteúdo da narrativa resulta da troca de experiências, composto por seqüências de eventos que aparecem freqüentemente no processo comunicativo e que permitem mais facilmente compreender e lembrar o conteúdo da história, a primeira conseqüência dessa colocação é a aceitação de que a estrutura da história é adquirida mais cedo que as estruturas de outros gêneros discursivos e que nas sociedades que priorizam o sistema da escrita, a narrativa oral surge antes da narrativa escrita, isto é, a criança antes de aprender a escrever já domina estratégias concernentes à estrutura da narrativa, principalmente, quando relata um episódio passado.

Uma outra característica da narrativa como produto da troca de experiências entre falante/ouvinte ou escritor/leitor é o uso de inferências. No momento da comunicação nem todas as informações aparecem na estrutura superficial do texto, já que os esquemas que temos sobre todas as formas de conhecimento que orientam e compõem nossa visão de mundo nos permitem, no momento da fala ou daescrita, selecionar e utilizar somente as estruturas da língua que consideramos necessárias.

Este processo de acessar as informações armazenadas em nossa memória nem sempre é comum ao falante e ao ouvinte. Na oralidade, as lacunas criadas pelo falante são mais fáceis de serem preenchidas, o mesmo não ocorre na língua escrita. A narrativa é o gênero discursivo que possibilita um melhor preenchimento dessas lacunas, porque os participantes do processo comunicativo, além do conhecimento das estruturas da língua nos níveis semântico, sintático e grafofônico, compartilham também o conhecimento de mundo, que integra o conteúdo e a estrutura da narrativa.

Ainda segundo Graesser, Golding e Long (op. cit.), existe uma densidade mais alta de conhecimento mútuo associada ao texto narrativo que favorece o debate de como as categorias de inferência são geradas quando o texto narrativo é compreendido, de como as inferências são levantadas em torno das metas que impulsionam as ações dos personagens em episódios lidos e episódios não lidos.

Segundo Hudson e Nelson (1984) e Emmott (1996), a narrativa desempenha um papel importante em várias habilidades relacionadas ao desenvolvimento cognitivo.

Hudson e Nelson (1984), comparando a produção escrita de crianças em textos narrativos de relato geral do que acontece num evento e textos narrativos deespecíficos passados, encontraram que a familiaridade com os eventos influenciou os dois tipos de narrativas e que, com o aumento da experiência, as crianças incluíam mais informações gerais e menos informação particular. Este resultado corrobora com a proposta de Graesser et al.(1991) de que as representações mentais mais abstratas são derivadas de eventos conhecidos. Assim, não é difícil aceitarmos que, quanto mais a criança compreende e produz textos com base em seqüências de eventos cotidianos variados, mais ela amplia seu sistema cognitivo.

Porém, a questão das estruturas mentais recebe um enfoque mais amplo e é vista de diversos modos.

Emmott (1996) traçou uma distinção entre estruturas mentais de conhecimento em geral e estruturas mentais específicas do texto. Para a autora (op. cit.), a estrutura geral de conhecimento consiste em informações que levamos para um texto, enquanto a estrutura mental específica é formada de informação que vem do texto. Emmott (1996) mostrou ainda que, ao contrário dos estudos sobre estruturas gerais de conhecimento, ointeresse pelo conhecimento em estruturas mentais específicas de texto é bastante recente.

Diante da diversidade de pontos de vista sob os quais a narrativa pode ser tratada, não nos surpreende admitir uma diversidade de conceitos e de regras que tentam explicar seu funcionamento. Diversas questões podem ser levantadas. Por exemplo, podemos perguntar: como o narrador narra os fatos? Lentamente ou aceleradamente? Como entrelaça as partes que integram a sua narração? Como o narrador se coloca no seu texto? Como procura solucionar os episódios que narra?

Em que ordem os eventos são apresentados? A estrutura da narrativa é formada por estruturas narrativas menores ou episódios incidentes, cujos acontecimentos devem ser dispostos no tempo. Um aspecto importante no discurso narrativo é a seqüência narrativa, que diz respeito à disposição dos fatos, episódios e comentários. O narrador pode ordená-los uns após os outros ou de modo simultâneo.

O narrador manifesta uma preocupação com o leitor? Uma das maiores dificuldades na construção de um texto é exatamente definir o tipo de leitor para o qual se escreve. Na narrativa, procuramos fazer a distinção entre a figura do narrador e do escritor. Assim como o narrador é uma entidade distinta do escritor, o leitor também é uma entidade múltipla. Na realidade, o autor de um texto, no momento de sua composição, imagina um leitor virtual, isto é, aquele para quem o autor imagina estar escrevendo. Muito embora, o seu desejo seja que o leitor virtual compreenda integralmente o sentido do texto, tornando-se assim um leitor ideal. Este desejo se traduz nas pistas oferecidas pelo autor a partir da relação letra/som, forma das palavras, combinação e ordem das palavras, significado das palavras e exposição dos fatos.

Essas questões sobre a natureza da narrativa implicam considerarmos quais os componentes básicos da narrativa à luz da gramática da história.

Algumas teorias sobre a estrutura da história diferenciam a natureza da organização da história, a estrutura do evento e a estrutura discursiva e as narrativas orais e as escritas. Contudo, a melhor forma de definir a narrativa, segundo Brewer (1985) e Graeeser et. al. (1991), é por meio da descrição de seus componentes básicos, que serão descritos a seguir, como o início da história, as personagens, a localização espacial e temporal, os conflitos, as metas e as tramas, os eventos,o componente afetivo, o narrador e seu ponto de vista e o fechamento da história.

Segundo Brewer (1985), o início da história é a principal diferença entre as narrativas orais e escritas. As formas canônicas do início da história, como o "era uma vez", são determinadas pelas propriedades culturais de um povo, somente em histórias orais; já nas histórias escritas, não há uma forma lingüística fixa. As gramáticas de história são unânimes em colocar o "início da história", seja ele convencional ou não, como um dos componentes essenciais ao discurso narrativo (Graesser et. al.). Os autores ainda acrescentam que o final também é extremamente salientado pelas crianças na faixa etária de seis anos.

Quanto às personagens são caracterizadas de acordo com as diferentes culturas. Sendo assim, podemos encontrar narrativas em que as personagens são apresentadas logo no início da história; primeiramente o vilão, depois o herói; e em se tratando de irmãos, o mais velho é apresentado primeiro que o mais novo (Brewer, 1985). De acordo com Graesser et al.(1991), as personagens são preferencialmente seres animados com metas e planos estabelecidos. As qualidades próprias do ser humano são assumidas na narrativa por seres inanimados ou por não humanos, por meio da personificação. Estes personagens tentam reconstituir os comportamentos presentes no mundo real.

Numa narrativa os eventos baseados em experiência ocorrem num determinado período de tempo e com uma localização espacial determinada. Este tipo de informação normalmente aparece no início da narrativa e seu objetivo, segundo Graesser et al. (1991) é permitir que o leitor construa uma imagem visual do cenário espacial e identifique as normas sociais relacionadas à situação.

Por ser papel da circunstância temporal mostrar as relações de anterioridade, simultaneidade e posterioridade entre os fatos da história, o tempo na narrativa determina um problema entre a temporalidade da história e do discurso. Na história o tempo é multidimensional e no discurso é linear. Naquela, os acontecimentos podem se desenvolver simultaneamente, cabendo ao narrador através do tempo do discurso ordená-los em seqüência. Mas o escritor nem sempre obedece à ordem dos fatos e rompe com a cadeia sucessiva para fins estéticos.É a situação temporal que possibilita, dentro de uma narrativa, a ocorrência de encadeamento, alternância e encaixamento de outra narrativa.

A localização espacial na narrativa permite ao leitor interagir melhor com o texto narrado. Segundo a teoria literária, o espaço ultrapassa as fronteiras do lugar onde os fatos da história vão ocorrer e estabelece relações recíprocas que influenciam o meio ambiente e o homem.

Os acontecimentos em uma narrativa, geralmente, são ocasionados por um conflito ou problema que a personagem principal deve enfrentar. Utilizaremos o termo conflito com uma significação bastante ampla, já que ele abriga todo tipo de seres que se defrontam ou que exercem, uns sobre os outros, algum tipo de influência. A complicação da história começa com a apresentação de uma meta principal para solucionar um conflito, isto é, diante de um problema uma personagem expressa através das metas um estado que deseja atingir para solucionar o conflito. Quando se instaura o conflito e a meta para solucioná-lo, surge a trama, apresentada em uma série de episódios que eventualmente resolvem a complicação: se a narrativapossui apenas uma complicação, a meta é apresentada no início da narrativa e a trama expõe subseqüentemente as idéias para a resolução da complicação; se for mais longa apresenta uma quantidade maior de obstáculos e de desafios no curso da história.

Segundo Brewer (1985), podemos compreender "eventos" como um conjunto de ações organizadas por metas que fazem parte do esquema da narrativa. Assim, podemos compreendê-los como o estabelecimento da trama e das resoluções de complicações ao longo da história.

A sequenciação dos eventos ou trama é um aspecto bastante importante para a ordenação de metas. Brewer (1985) ao testar eventos ordenados por metas, desenvolveu uma teoria de representação psicológica e observou que os eventos que eram hierarquicamente organizados por metas, foram mais recontados que aqueles pouco hierarquizados. Isto é, as ações que eram organizadas de forma canônica foram mais lembradas que as ações fora de ordem, as quais mudaram mais de posição quando recontadas.

O autor reconhece ainda uma distinção entre os eventos de histórias orais e de histórias escritas: nas histórias orais, a ordem do discurso pode seguir a ordem dos eventos ou ser alterada através de avanços e retrospectos; já nas histórias escritas, a ordem do discurso quase não segue a ordem dos eventos subjacentes que são selecionados para estabelecer conflito.

Uma outra característica dos eventos é que eles se relacionam com os aspectos culturais de um povo, mas não refletem o esquema narrativo ou de história do escritor. Reflete, sim, o conhecimento de aspectos culturais da comunidade na qual o escritor está inserido e deve encontrar no seu leitor uma estrutura cultural correspondente para que as seqüências descritas na narrativa sejam satisfatoriamente compreendidas. Segundo Brewer (op.cit.), os aspectos culturais da narrativa são características válidas para todas as narrativas de uma cultura, sejam elas histórias ou não.

Segundo Graesser et. al.(1991), o componente tenta salientar o fato de que as histórias são usadas para entreter e que elas são responsáveis por sentimentos de surpresa, suspense e curiosidade, considerados estruturas de eventos que produzem efeitos particulares no leitor. Na estrutura discursiva de surpresa, o autor retém informações no começo da estrutura que impedem o leitor de perceber que algo não está sendo revelado. Apenas no final do discurso, o autor revela as informações para surpreender o leitor. Já a estrutura do evento de suspense conduz o leitor a perceber que algo pode ser bom ou não para um dos personagens. Este tipo de discurso possui ainda informações que prolongam o suspense e motivam o leitor a ficar concentrado sobre as conseqüências potenciais até quando a conseqüência é dada resolvendo o suspense. Assim, tanto a curiosidade, como a surpresa e o suspense resultam de alguma informação que não está presente no texto. Em muitas narrativas, o componente afetivo se desenvolve de acordo com a trama, ou seja, a trama pode inverter, mudar o sentido e entrelaçar o quadro de excitação que alcança o clímax e retorna abruptamente a um estágio de calma.

Neste sentido, podemos perceber que o componente afetivo permite ao autor de uma narrativa uma grande liberdade para omitir ou reordenar os eventos de uma história e ainda permite ao leitor manifestar sua satisfação quando as narrativas são organizadas em estruturas de eventos que causam surpresa, suspense ou curiosidade e apresentam a resolução das estruturas deste componente. Sendo assim, são chamadas histórias apenas as narrativas que possuem um evento de iniciação e um desfecho. As intuições sobre o que é a história são mediadas por dois possíveis mecanismos do leitor: conhecimento das estruturas canônicas discursivas para as histórias e conhecimento das possíveis respostas que os eventos com componente afetivo são capazes de produzir.

O papel do narrador em uma história é articular a apresentação dos elementos que constituem a narrativa. Assim, a primeira atitude do narrador é decidir quem vai relatar os fatos, mostrar a ações e idéias dos personagens.

Segundo Graesser et. al.(1991), há uma complexa relação que envolve a relação escritor/narrador: de forma simplória, pode indicar que não são entidades diferentes; de modo mais complexo, podemos perceber quehá uma distância entre o escritor e o narrador quando entra em questão um outro componente da narrativa, o ponto de vista. Este componente é considerado a forma como o narrador se situa no relato e como um critério organizacional do material narrativo. Raramente, aparece explícito, ao contrário, é inferido pelo leitor através de traços lingüísticos que assinalam a subjetividade.Segundo Graesser et. al.(1991), o ponto de vista pode relacionar o narrador com o escritor, com um personagem, com o escritor e um personagem ou com nenhum deles.

O narrador pode ficar ausente na história, comportando-se portanto como um mero observador (visão "de fora", segundo Todorov, 1971),pode incluir-se na história como um personagem (a visão "com") ou pode assumir o papel de alguém que sabe tudo (a visão "por trás"). Quando o narrador é onisciente, sua onisciência manifesta-se, primeiramente, quando o narrador desenvolve os acontecimentos sem antecipá-los para o leitor, muito embora a caracterização de alguns personagens permita fazer previsões sobre a atuação dos mesmos. Por exemplo, o uso de adjetivos como, "uma linda menina", delineia um perfil positivo da personagem, o que prever que esta personagem representará o bem. Já para o antagonista, o narrador também utiliza adjetivos, como "lobo mal", mas de caráter negativo, fazendo com que o leitor perceba a alegoria do mal que este personagem materializa. Deste modo, o narrador demonstra através da qualificação dos personagens a linha de atuação de cada um, bem como controla a relação e empatia personagem/leitor. No segundo modo, o narrador antecipa de forma genérica as ações que irão ocorrer, como, por exemplo, "um dia o lobo queria comer a chapeuzinho."

O narrador também pode apenas observar os personagens, sem seguir o fluxo, o psiquismo dos personagens. Este narrador sabe menos do que qualquer um de seus personagens.

Um outro ponto de vista é aquele em que o narrador conta os fatos, em primeira pessoa, não como protagonista, mas como personagem da história. Este tipo de narrativa é bastante difundido na literatura moderna, cuja narrativa pode ser conduzida em terceira pessoa, mas sempre na visão de um personagem. Este narrador sabe dos acontecimentos na mesma proporção que seus personagens, e, portanto, não tem como adiantar informações sobre os fatos antes que eles ocorram (Todorov, 1971).

Segundo Brewer (1985) o final de uma história pode ser considerado como a última ação de uma série de conseqüências que motivaram a história, como a resposta final de um personagem à trama narrativa, ou um enunciado que mostra que a seqüência dos eventos não será continuada. Em narrativas orais, o final possui uma estrutura mais convencional, podendo variar de um simples "fim" até "e viveram felizes para sempre". Aparentemente, as histórias modernas não mostram uma forma obrigatória de sinalizar o final.

Os componentes da história foram representados através de uma gramática da história, que segundo Fitzgerald (1992), define as partes importantes de uma história e a forma como elas são organizadas.

Para Graesser et. al.(1991), uma gramática da história pode ser compreendida também como um meio formal para se apreender as propriedades mais importantes de um esquema de história, isto é, de uma estrutura cognitiva que orienta a compreensão de uma determinada classe de histórias.

Para os formalistas russos, como Propp, Vieira (2001) nos mostrou que eles propuseram um estudo dos contos maravilhosos ou contos de fada baseado em tentar resolver o dilema da estrutura narrativa, ao questionarem se a narrativa era um simples acúmulo de fatos ou se possuía uma estrutura comum a outras narrativas. Segundo Vieira (op. cit.), Propp descobriu que muitas vezes os contos emprestam as mesmas ações a personagens diferentes, pois muitas são as situações, quando comparamos contos diferentes, que se resumem numa mesma ação, segundo a qual os nomes e os personagens mudam, mas não suas funções. Os estudos formalistas permitiram às histórias serem estudadas sobre um enfoque que priorizasse as partes do discurso, transcendendo assim aos estudos psicológicos, sociológicos e filosóficos que antes eram priorizados.

Após estas reflexões sobre os componentes da narração, seqüência textual a qual procuramos enfatizar na escola, vejamos sua abordagem na sala de aula.

3. METODOLOGIA E ANÁLISE DOS DADOS

A metodologia empregada para a realização deste trabalho consistiu na apresentação teatralizada e modificada dos chamados contos de fadas nas salas de aulas, de ensino fundamental, que os próprios professores-alunos do curso de Letras ensinavam. Os ensaios, bem como toda a proposta de trabalho, foram desenvolvidos durante a disciplina de Lingüística Textual, em uma universidade da capital cearense.

Primeiramente, procuramos as duas escolas públicas nas quais os alunos trabalhavam para estabelecer uma parceria, a fim de desenvolvermos nossa proposta de trabalho. Após a conversa estabelecemos uma parceria de dois meses, pois os alunos precisariam elaborar o material para ser aplicado.

Nos meses de fevereiro, março e abril, elaboramos todo o material na sala de aula. A produção desse material acontecia à medida que os conteúdos sobre texto, gênero e seqüência textual, textos orais e escritos eram trabalhados na universidade.

Os meses de maio e junho foram de aplicação do projeto na escola. No primeiro dia de aula fizemos uma breve reunião com as professoras, que nos receberam de forma bastante entusiasmada. Todas nos fizeram muitas perguntas sobre o projeto e se dispuseram a participar.

No outro dia após a reunião, em dupla, os professores-alunos iniciaram suas aulas. Os alunos os receberam muito bem, sempre participavam das aulas e mostravam grande perspicácia nas atividades de exploração do texto. As duplas foram orientadas a, primeiramente, trabalhar os textos narrativos nas suas salas de aula, procurando desfazer a confusão que há entre gênero e seqüência textual. Durante as aulas expositivo-dialogadas, os alunos procuravam mostrar a estrutura do gênero, bem como a compreensão textual e, em alguns casos a produção desses gêneros.

Durante o trabalho com a escrita os alunos ensaiavam ou na universidade ou na própria escola a peça que seria apresentada.

Após um semestre com esta proposta, realizamos a culminância de nosso projeto no último dia de aula do mês de junho, com a apresentação das peças teatrais, como podemos conferir nas fotos a seguir:

Fotos 1 a 5: Peça Preta das Neves

Essas fotos nos mostram uma subversão da história Branca de Neve. Essa atividade foi apresentada aos alunos do 4º ano do ensino fundamental.

Após a apresentação da peça houve, em sala de aula, uma discussão sobre a história. Alunos e professores, ainda encantados com o excelente espetáculo, puderam relacionar o assunto tratado na peça à realidade: como a apresentação tratava dos diversos tipos de preconceito, todos os envolvidos puderam apresentar seu ponto de vista sobre o tema.

Terminada essa parte oral da atividade, os professores, no dia seguinte, pediram, que os alunos escrevessem, em uma folha de papel ofício, a peça. Tal atividade visava à reescrita, em uma perspectiva que aborda o continuum oralidade-escrita.

O mesmo procedimento de produção de texto foi realizado na atividade seguinte, cujo título da produção era Chapeuzinho na cidade: de santinha não tem nada, como podemos conferir nas fotos mostradas abaixo:

Fotos 6 a 10: Peça Chapeuzinho na cidade: de santinha não tem nada

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao realizarmos esta proposta de trabalho com os professores-alunos, pudemos constatar que o teatro é uma excelente ferramenta de trabalho para despertar nos jovens alunos de ensino básico o interesse para lerem as obras interpretadas, além de mostrar para os professores-alunos outras possibilidades de se trabalhar a leitura, fugindo, um pouco, da tradicional e, muitas vezes, exclusiva leitura do livro didático ou paradidático.

Tal concepção faz com que a leitura seja vista como uma atividade que associa as práticas sociais comunicativas e acaba por resultar em atos de leitura produzidos no espaço escolar, associados à vida cotidiana.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. et al. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In: BARTHES, R. et. al. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes 1971.

BREWER, William. F. The story schema: universal and culture-specific properties. In: Literacy, Language and Learning. OLSON, David R. (org.) New York: Cambrigde University Press, 1985.

EHRLICH, K. Writing ancillary to telling. In: Journal of Pragmatics,vol.7.pp. 495-506, 1983.

EMMOT, Catherine. Frames of reference: contextual monitoring and the interpretation of narrative discourse. In: Children's Early Text Construction. PONTECORVO, Clotilde et al.(eds.) New Jersey: Laurence Erlbaum Associates, 1996.

FITZGERALD, Jill. Investigaciones sobre el texto narrativo- Implicaciones didácticas. In: MUTH, K.D. (org.) El texto narrativo- Estratégias para su comprensión. Argentina: Aique, 1991.

GRAESSER, Arthur C., GOLDING, Jonathan M. e LONG, Debra L. Narrative Representation and Compreension. In: Handbook of reading research. Vol. 2. New York: ed. Rebecca Barre et al., 1991.

HUDSON, J. e NELSON, K. Differentiation and Development in Children's event narratives. In: Papers and Reports on Child Language Development. Vol. 23. pp. 50-58, 1984.

TODOROV, Tzvetan. As Categorias da Narrativa Literária. In: Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro: Vozes, Petrópolis, 1971.

VIEIRA, André Guirland. Do Conceito de Estrutura Narrativa à sua Crítica. In: Psicologia:Reflexão e Crítica, vol. 14, p. 599-608,UFRGS, 2001.