A LEI N. 12.663/2012: ASPECTOS GERAIS E DISCUSSÕES SOBRE SUA COLOCAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

 

Luiz Saraiva Narciso

 

RESUMO: Este artigo tem por escopo uma breve análise dos dispositivos da Lei n. 12.663/2012, diploma comumente conhecido como Lei Geral da Copa. Nesse sentido, busca analisar os dispositivos dessa Lei, sobretudo àquelas que provocam discussões acadêmicas acerca de possível ofensa à soberania do Estado. Dessa forma, são apontados e analisados os principais autores e argumentos na defesa, por um lado, dessa ofensa à soberania nacional e, por outro, na defesa da Lei Geral, como instrumento perfeito de regulação dos fatos decorrentes da realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil.

PALAVRAS – CHAVE: Lei Geral da Copa – Soberania – Copa do Mundo

SUMÁRIO: Introdução; 1 Introdução; 2 Breve Análise dos Dispositivos da Lei Geral da Copa; 3 Discussão Acerca da Mitigação da Soberania com a Lei Geral Da Copa; 4 Considerações Finais 

1. INTRODUÇÃO 

            O Brasil atravessa uma década em que sedia importantes eventos no cenário mundial. São facilmente assinaláveis: Jogos Mundiais Militares, ocorridos em 2011, Copa das Confederações FIFA de 2013, Jornada Mundial da Juventude, realizada em 2013, Copa do Mundo FIFA de 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Verão, a serem disputados em 2016. Além destes, outros grandes eventos-teste e mundiais de modalidades olímpicas vem sendo disputadas em território nacional nos últimos anos.

            A realização desses megaeventos tem grande reflexo no cenário político, social, econômico e jurídico do país que os realiza. Segundo dados apresentados por Wladimyr Vinycius de Moraes Camargos e Luiz Felipe Guimarães Santoro, em sua obra Lei Geral da Copa Comentada, de 2012: 

Os Jogos Pan-Americanos de 2007 movimentaram cerca de R$ 10 bilhões em nossa economia.

[...]

somente a Copa do Mundo de 2014 irá agregar à nossa economia cerca de R$ 183 bilhões até o ano de 2019. O setor público prevê investimentos de R$ 26 bilhões apenas para obras de infraestrutura, que somados aos recursos advindos da iniciativa privada para esse fim totalizarão R$ 33 bilhões.

[...]

Ainda em se tratando de Mundial de Futebol, espera-se que mais de 3 milhões de turistas estrangeiros acompanhem as partidas e demais eventos a ele relacionados. Este turismo incremental deverá gerar novos R$ 9,4 bilhões  à economia do país.  (CAMARGOS, SANTORO, 2012, p.15, 16) 

            Como se observa, com a realização de eventos de grande magnitude como os supramencionados, espera-se grande mudança no cenário nacional. Entretanto, é necessária indagação se o direito pátrio está sendo ou será capaz de acompanhar tamanha modificação e, espera-se que consequente modernização.

            E quando se fala em modernização do direito, não é possível fazer uma restrição a qual área deverá sofrer alterações. Nota-se que pela massa de investimento em construções o direito do trabalho é certamente um dos mais envolvidos no processo. Contudo, tão importante quanto este será a regulamentação do direito empresarial, no tocante aos direitos de grandes marcas e empresas que se instalarão no Brasil por meio de anúncios, exposição de marcas e investimentos; o direito tributário, bastando pensar na quantidade de material é importado para construção de parques esportivos de alta tecnologia ou para realização de variados eventos esportivos; direito civil, no que toca ao direito de imagem de milhares de atletas que atuarão nas mais diversas competições; o direito administrativo, quando se fala em responsabilidade do Estado em relação aos danos causados durante a realização de tais eventos; entre outras áreas.

            Pensando por este prisma, existe a possibilidade de que o grande legado que pode ser deixado para a sociedade com a realização de todos esses megaeventos no Brasil, muito mais que obras de mobilidade urbana ou grandes arenas esportivas, é exatamente a modernização do direito e de seus institutos, além, evidentemente, de melhoria da atuação administrativa, para a efetivação desses direitos.

            Nesse sentido, anotam Camargos e Santoro 

Um novo marco jurídico está sendo organizado pela União e demais entes federados, o que reflete, da um lado, a necessidade de adimplemento das garantias prestadas por nosso país às entidades internacionais de administração do desporto, quando da apresentação de nossas candidaturas para sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo. Por outro lado, a própria Administração Pública necessita estruturar-se juridicamente para a realização das competições. Portanto, está em curso um processo de inovação legislativa para o atendimento desses objetivos. (CAMARGOS, SANTORO, 2012, p. 17) 

            Exemplos desse arcabouço jurídico importante para a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 já podem ser observados em nosso ordenamento. Já estão em vigência as Leis nº 12.350/2010, que dispõe sobre as imunidades tributárias à FIFA, nas atividades de organização dos eventos, como também cria o Regime Especial de Tributação para Construção, Ampliação, Reforma ou Modernização de Estádios de Futebol; e 12.462/2011, que, mesmo sofrendo críticas por possivelmente mitigar o princípio da publicidade, preceito fundamental da Administração Pública, instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, (RDC), considerado um novo marco nas licitações e contratos a serem empreendidos para as obras e serviços destinados à Copa das Confederações de 2014, à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016 e que, segundo Camargos e Santoro: 

A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) tem utilizado, com sucesso, a nova lei em suas licitações, com resultados importantes, especialmente na redução do tempo anteriormente despendido nos procedimentos que adotavam somente a Lei nº 8.666/1993. (CAMARGOS, SANTORO, 2012, p. 17) 

            Para os demais ramos do direito afins à realização da Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014,  foi promulgada a Lei nº 12.663/2012, denominada Lei Geral da Copa, que é objeto do presente trabalho. 

2. BREVE ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS DA LEI GERAL DA COPA 

Passando por esta importante e necessária discussão sobre as correntes contrárias e favoráveis à Lei Geral da Copa, faz-se também imprescindível no presente estudo a análise dos dispositivos do referenciado diploma, a fim de que se entenda a sistemática e os objetivos dessa norma.

No que se refere aos dispositivos, a Lei Geral da Copa foi inicialmente concebida para regulamentar assuntos exclusivamente relacionados à Copa, entretanto, o art. 63 da referida lei dispõe que os mesmos procedimentos previstos para a emissão de vistos de entrada deveriam ser também adotados para a organização da Jornada Mundial da Juventude – evento oficial da Igreja Católica - que foi realizado em julho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro. Ademais, o art. 57 estabeleceu que as regras relativas à prestação de serviço voluntário poderiam ser as mesmas adotadas para a referida Jornada religiosa.

            Antes de adentrar propriamente no objeto do presente trabalho, que é o estudo do art. 23 da Lei nº 12.663/2012, o qual trata da responsabilidade estatal durante a realização da Copa do Mundo de 2014 e Copa das Confederações 2013, é prudente para melhor compreensão, uma breve exposição a respeita das disposições da referida norma.

            O Capítulo I da lei, em seus arts. 1º e 2º, são destinados a definições relativas às entidades (FIFA, CBF, COL, Confederações, associações estrangeiras, prestadores de serviços, parceiros comerciais, emissoras, agência de direitos de transmissão, locais oficiais de competição, entre outros).

            O Capítulo II é dividido em 4 seções, e regula a proteção e exploração dos direitos comerciais, estabelecendo normas de proteção especial aos direitos de propriedade industrial relacionados aos eventos. Protege ainda a exclusividade da FIFA ou pessoas por ela indicadas quanto à divulgação de suas marcas, distribuição, venda, publicidade etc., nos locais oficiais de competição bem como nas suas imediações. Ainda no mesmo capítulo, encontram-se normas de exclusividade relativa aos direitos de imagens, sons e outras formas de expressões dos eventos, incluindo os direitos de exploração, negociação, autorização e proibição  de transmissões ou retransmissões. Os três últimos artigos desse capítulo (arts. 16 a 18) estabelecem sanções civis para possíveis reparações dos danos causados à FIFA, pela violação da exclusividade de que é detentora. Em síntese, o capítulo em análise resguarda a FIFA pelos seus produtos, garantindo sua exclusividade de utilização comercial ou de imagem dos mesmos.

            O Capítulo III regula a concessão de vistos de entrada e das permissões de trabalho, permitindo a concessão de vistos de entradas, sem qualquer restrição quanto à nacionalidade, raça ou credo. Os prazos de estadia dos portadores de visto na condição de espectadores serão de noventa dias improrrogáveis, contudo, os demais poderão receber prazo de estada até o dia 31 de dezembro de 2014. Cabe acrescentar, que, nesses casos, a aplicação do Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/80, será subsidiária. Para emissão das permissões de trabalho, basta a comprovação por meio de documento expedido pelo FIFA ou por terceiro por ela indicado, de que a entrada no país se destina ao desempenho de atividades relacionadas aos eventos.

            O Capítulo V trata da venda de ingressos e é mais um que tem sido objeto de intermináveis discussões doutrinárias e acadêmicas. Isso se dá porque a Lei n. 12.663/2012 estabelece um mecanismo de venda de ingressos completamente diferente do adotado em nosso país, regulado pelo Estatuto do Torcedor, diploma de 2003. Pela Lei da Copa, os ingressos serão separados em quatro categorias. O art. 26, § 5º estabelece que os ingressos da categoria 4 serão vendidos com 50% de desconto, para residentes no Brasil desde que sejam estudantes, tenham idade igual superior a 60 anos ou participem de programa federal de transferência de renda.

            Um dos pontos polêmicos do artigo está no veto, pela Presidente da República do § 9º do dispositivo. Este afastava leis estaduais e municipais concessivas de descontos, gratuidades ou outros tipos de benefícios. O dispositivo configuraria uma intromissão nos entes federados, o que seria uma violação do pacto federativo, sendo este o argumento para o veto.

            Outro ponto que causou discussão foi o sorteio público de ingressos da categoria 4, caso a procura seja maior que a demanda. O instituto é uma aberração jurídica no ordenamento, não sendo previsto no Estatuto do Torcedor ou qualquer outra lei vigente no país.

            Também no Capítulo V é tratada a questão da venda de ingressos para deficientes físicos e indígenas. No caso dos deficientes, é reservado à eles a quota de 1% dos ingressos para as competições. A venda de ingresso para os indígenas depende de regulamentação e de acordo a ser firmado entre o governo brasileiro e a FIFA.

            A Lei Geral da Copa instituiu alguns crimes contra a FIFA, estes são se ação penal privada e tem vigência até 31 de dezembro de 2014. São exemplos de alguns desses tipos penais a reprodução, imitação, falsificação, ou modificação indevida de símbolos oficiais de titularidade da FIFA – pena de detenção de três meses a um ano ou multa -, importação, exportação, venda, distribuição, oferta ou exposição à venda, ocultação ou manutenção em estoque dos respectivos símbolos, ou produtos resultantes de reprodução, imitação, falsificação ou modificação não autorizadas pela FIFA, para fins comerciais ou de publicidade – pena de detenção de um a três meses ou multa.

            Foram criados ainda os crimes de “marketing de emboscada por associação” e “marketing de emboscada por intrusão”. O primeiro ocorre caso haja a divulgação de marcas ou serviços junto ao nome da FIFA ou de suas competições, como se a entidade as endossasse ou como se fossem parceiras dos eventos. O segundo tipo é observado caso alguém se aproveite dos eventos para expor ou fazer publicidade de marca não autorizada pela entidade máxima do futebol, a FIFA, obtendo vantagem econômica ou publicitária com essa exposição nos locais de competição. (BOMFIM, 2012, p.241)

            No art. 37 e seguintes, a Lei Geral da Copa concede aos jogadores brasileiros titulares ou reservas campeões do mundo com a seleção brasileira de futebol nos mundiais de 1958, 1962, 1970, prêmio em dinheiro, pago em parcela única de R$ 100.000,00 (cem mil reais), isentos de imposto de renda ou contribuição previdenciária, pagos pelo Ministério do Esporte, sendo que no caso de óbito do beneficiário do prêmio poderão seus herdeiros se habilitar para o recebimento proporcional de sua quota parte. A lei estabelece ainda auxílio especial mensal para jogadores sem recursos ou recursos limitados, de maneira que, através do auxílio governamental, a renda mensal do beneficiário atinja o valor máximo do salário de benefício do Regime Geral da Previdência Social. Esse auxílio se sujeita à incidência do imposto de renda, mas não é objeto de contribuições previdenciárias.

             O art. 52 da Lei Geral da Copa é responsável por criar uma modalidade administrativa de solução de conflitos ao estatuir que as controvérsias entre a União e a FIFA, suas subsidiárias no Brasil, seus representantes legais, empregados ou consultores, cujo objetivo verse sobre os eventos, poderão ser resolvidas pela Advocacia Geral da União, em sede administrativa, mediante conciliação, se conveniente às partes.

            O art. 53 da lei em análise estatui isenção da FIFA, suas subsidiárias no Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados, relativamente às custas judiciais, emolumentos, caução, honorários periciais e quaisquer outras custas devidas aos órgãos da Justiça Federal, Justiça do Trabalho, da Justiça Militar do União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, em qualquer instância, estendendo-se  a isenção plena aos tribunais superiores, e, caso vencidas em quaisquer ações, não serão condenadas em custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé.

            Em relação às férias escolares e aos feriados, o art. 56 estabelece que, durante a Copa do Mundo, a União poderá decretar feriados nacionais nos dias em que houver jogos da seleção brasileira. O parágrafo primeiro estabelece que os demais entes federados poderão decretar feriado ou ponto facultativo nos dias em que houver competições em seu território. O art. 64 dispõe que os sistemas escolares, deverão em 2014, adequarem seus calendários a fim de que as férias escolares, nas instituições públicas e privadas, abranjam todo o período de realização da Copa do Mundo, ou seja, entre os dias 12 de junho e 13 de julho, segundo calendário estabelecido pela FIFA.

            De acordo com o art. 57, o serviço voluntário que vier a ser prestado por pessoa física para auxiliar a FIFA, suas subsidiária no Brasil ou comitê organizador, tanto na realização quanto na organização dos eventos, constituirá atividade não remunerada, e não gerará vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim para o tomador do serviço, devendo ser exercido mediante a celebração do termo de adesão, no qual conste o objeto e condições de seu exercício, sendo que não descaracteriza a gratuidade do serviço voluntário a concessão de meios para prestação do serviço, como, por exemplo, transporte, alimentação e uniforme. O dispositivo não traz qualquer novidade em relação à Lei n. 9.608/98, que regula a prestação de serviço voluntário.

            A Lei Geral da Copa também regula sua interação com outros diplomas do ordenamento jurídico. O art. 67 decide que deverão ser aplicadas subsidiariamente às pessoas jurídicas ou naturais brasileiras, as disposições da Lei n. 9.615/98, conhecida como Lei Pelé. Essa lei institui princípios a serem aplicados ao desporto, tratando do sistema nacional do desporto, da justiça desportiva, da aplicação e utilização de recursos públicos além de dar outras providências.

            O mesmo art. 67 assevera que às competições, aplica-se no que couber a Lei n. 10.671/03, que instituiu o Estatuto do Torcedor. Entretanto, várias disposições dessa lei foram afastadas ou restritas. O § 1º do art. 68, dispõe textualmente que “Excetua-se da aplicação supletiva constante do caput deste artigo o disposto nos arts. 13-A a 1719 a 2224 e 27, no § 2º do art. 28, nos arts. 31-A32 e 37 e nas disposições constantes dos Capítulos IIIIIVIIIIX e X da referida Lei”. A lei em referência é a Lei 10.671/03. Utilizando as palavras de Silvano Andrade do Bomfim, a fim de exemplificação: 

Veja-se, a título de exemplo, que a Lei Geral da Copa determina no § 2º, do art. 68, a restrição de regras, punições e responsabilidade civil (arts. 2º-A, 39-A e 39-B, do Estatuto de Defesa do Torcedor) das torcidas organizadas àquelas pessoas jurídicas de direito privado, ou existentes de fato, constituídas ou sediadas no Brasil, não se aplicando, portanto, às torcidas organizadas de outras qualidades que venham ao Brasil participar dos eventos relacionados à Copa do Mundo. (BOMFIM, 2012, p. 245) 

            Outro ponto importante e que tem causado polêmica em torno da integração entre a Lei Geral da Copa e o Estatuto do Torcedor é a liberação para a venda e o consumo de bebidas alcóolicas nos estádios. Sendo um dos patrocinadores do evento uma indústria de cerveja, o governo brasileiro sofreu grande pressão por essa liberação. Por outro lado, a medida causa discussão quanto à desigualdade de tratamento dado aos jogos organizados pela FIFA no Brasil durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo em relação às competições nacionais.

            Cabe ressaltar que o objetivo da norma instituída no Estatuto de Defesa do Torcedor é evitar a prática de atos de violência, e, consequentemente, danos às pessoas e ao patrimônio público e privado. Para isso, impede que o torcedor entre no recinto esportivo portando bebidas alcoólicas. A Lei Geral da Copa veta a aplicação dessa regra nas competições organizadas pela FIFA. Contudo, a responsabilidade por qualquer dano causado à FIFA é da União. Observa-se então que aquela pressionou para que as bebidas alcoólicas fossem liberadas por uma finalidade meramente econômica, o que pode gerar situações de violência e danos. Estes podem resultar em responsabilidade, que é integralmente assumida pelo Poder Público. Partindo dessa análise conclui-se que a FIFA é beneficiada duas vezes: a primeira, por poder vender bebidas alcoólicas nos parques esportivos e aumentar o faturamento; em segunda análise, por não ter que arcar com qualquer dano e ainda receber da União os prejuízos a ela causados. 

3. DISCUSSÃO ACERCA DA MITIGAÇÃO DA SOBERANIA COM A LEI GERAL DA COPA 

            A Lei Geral da Copa é instrumento hábil e recorrentemente utilizado para regular todos os assuntos que envolvem a realização da Copa do Mundo em um país. Não há dúvidas de que é mais interessante que se tenha um diploma organizado e sistematizado do que leis difusas acerca do assunto, mesmo porque, como já abordado, várias matérias e questões precisam ser abraçadas.

            Contudo, tal diploma vem sofrido desde sua publicação severas críticas. Silvano Andrade Bonfim, em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Constitucional, defende que a lei atenta contra a soberania do Estado brasileiro, positivada como fundamento básico da República e positivado no art. 1º, I da Constituição de 1988. Nas palavras do supramencionado autor 

E tratando-se de funções do Direito Constitucional parece-nos oportuno lançar o olhar à recente Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012, alcunhada de Lei Geral da Copa, vez que diversas alteração introduziu no sistema brasileiro, algumas padecendo de flagrante inconstitucionalidade, fruto de imposição inadmissível da FIFA – Fedération Internationale de Football Association -, associação jurídica de direito privado, entidade mundial que regula o esporte de futebol de associação, com aniquilação parcial – admitida passivamente pelo governo brasileiro – dos basilares atributos da soberania, esta que se traduz no “poder supremo, exclusivo e autodeterminante” de uma Nação. (BOMFIM, 2012. p. 235) 

Sobre soberania, acrescenta ainda o autor que: 

A soberania, que por definição é o direito de uma vontade que não se determina jamais a não ser por ela mesma (DUGUIT, 1927, p.631), elencada no art. 1º, I da Carta Maior, como o primeiro fundamento sobre o qual está a República Federativa do Brasil firmada, e primeiro princípio sobre o qual se funda a ordem econômica, a teor do que dispõe o art. 170, I, sofreu inadmissível golpe o fim de ceder lugar a um dos maiores – senão o maior – estelionato político e econômico desde o “descobrimento” e a pilhagem ocorrida na era do Brasil Colônia pelas potências de então, ao exato estilo de Robin Hood às avessas. (BOMFIM, 2012, p.236) 

Além da soberania, o autor critica de forma dura o afastamento da incidência de alguns outros diplomas durante as competições da Copa das Confederações e da Copa do Mundo. Isso porque, segundo a lei, durante a realização dessas competições, serão aplicadas de forma subsidiária o Estatuto do Torcedor, Lei n. 10.671/2003, o que enseja, consequentemente, o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, e o Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/80. Acerca dessa questão, Silvano Bonfim faz em seu artigo importantes apontamentos. 

À guisa de ofertar ao povo a pretensa oportunidade de “felicidade e desenvolvimento” em receber o campeonato mundial em meados de 2014, e ainda como reflexo da abjeta violação – ou renúncia – da soberania estatal, chega-se mesmo  a legislar contra direitos e garantias fundamentais, como aquela insculpido no art. 5º, XXII, segundo o qual “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, na medida em que a Lei Geral da Copa afasta a aplicação, no período das competições e dentro dos estádios onde estas ocorrerão, da produção conferida pelo § 2º, do art. 28, da Lei n. 10.671, de 15 de maio de 2003, que instituiu o Estatuto de Defesa do Torcedor, este que não deixa de ser, em última instância, um consumidor, o que viola, por conseguinte, a Lei n. 8.078/90, instituidora do Código de Defesa do Consumidor. Há, portanto, flagrante inconstitucionalidade no art. 68, § 1º, da Lei n. 12.663/2012, pois afronta não apenas o art. 5º, XXXII, como também o art. 170, V, da mesma Carta Magna, na medida em que procura derrogar cláusula pétrea, a qual sequer por emenda constitucional pode ser abolida, como estatui o art. 60, § 4º, IV, da Constituição da República. (BONFIM, 2012, p. 236) 

Outro que critica a Lei Geral da Copa é Jéferson Botelho Pereira, que em artigo publicado na revista Âmbito Jurídico, conclui sua exposição com o seguinte pensamento acerca do assunto: 

Por derradeiro, é fundamental explicitar que o povo brasileiro deseja a realização da Copa das Federações e do Mundo, mas não se podem aceitar intervenções gratuitas, arbitrárias e efetivadas ao arrepio da lei por uma associação de cunho essencialmente privado que, sequer, possui a audácia de perturbar países evoluídos, mas que se aproveita da fragilidade do mundo rastejante e faminto de alegrias para soltar suas malditas peçonhas, contaminando a inteligência do nosso povo. (BOTELHO, 2012) 

De forma ainda mais enfática, Leandro Franklin Gorsdorf e Thiago Hoshino, em artigo publicado no periódico de circulação nacional Le Monde Brasil: diplomatique, afirmam que a Lei Geral da Copa não passa de uma lei de interesses particulares. Nesse sentido, criticam as autoridades brasileiras pela aprovação do diploma em análise. Nas palavras dos autores 

Autoridades brasileiras parecem admitir que a recepção de um megaevento esportivo autoriza também megaviolações de direitos, megaendividamento público e megairregularidades. É preciso questionar a legitimidade dessa relação de vassalagem política, que endossa negócios privados que geram considerável ônus público. (GORSDORF e HOSHINO, 2011) 

Porém existe dissidência em relação as críticas recebidas pela Lei n. 12.663/2012. Corrente encabeçada pelos doutrinadores Wladimyr Vinycius de Moraes Camargos e Luiz Felipe Guimarães Santoro, e pelo professor da Universidade Federal do Ceará, Álvaro Melo Filho, não acredita que as disposições dessa lei vão de encontro ao direito posto no ordenamento jurídico brasileiro. Consideram, portanto, que são “comuns e cogentes as alterações na legislação do país anfitrião, ainda que temporárias ou provisórias, para adequar-se aos padrões da FIFA, e ao perfil deste evento mundial de interesse de povos de todos os continentes, de todas as culturas e de todos os credos.” (MELO FILHO, apud CAMARGOS e SANTORO, 2012, p. 9).

Ainda segundo os mencionados doutrinadores, a lei objeto desse trabalho visa, na verdade, a simplificação de algumas matérias, consideradas de grande burocracia quando aplicada a legislação atual. Ademais, tratam a Lei Geral da Copa como uma obrigação para a realização desse grande evento, uma vez que o Brasil se obrigou perante à FIFA pela aprovação do aludido diploma. Tais obrigações do país sede são comumente chamadas de hosting agremeent. Nas palavras do autor: 

O atendimento às garantias formalmente prestadas pelo Governo brasileiro à FIFA, em 2007, evidencia não uma quebra de soberania nacional, mas, ao revés, que o país está cumprindo e honrando os compromissos pactuados no exercício do poder soberano, pois o Brasil perderia o direito de organizar a competição, caso não aprovasse a Lei Geral da Copa. (MELO FILHO, apud CAMARGOS e SANTORO, 2012, p.10) 

Apoiando-se no direito comparado, Álvaro Melo Filho aponta ainda um outro argumento para defender a Lei n. 12.663/2012: 

Semelhantes diplomas foram elaborados para as anteriores Copas do Mundo nos EUA, na França, no Japão, na Coreia, na Alemanha e na África do Sul sem se cogitar que a soberania desses países foi malferida, e, no caso do Brasil, não há exigência da FIFA diversa do que foi feito naqueles países organizadores da Copa do Mundo. Por isso, na lição de Valed Perry, essa soberania alvitrada soa como uma patriotada ridícula, não passando de renomada tolice, por força da valência universal das normas desportivas internacionais. (MELO FILHO, apud CAMARGOS e SANTORO, 2012, p.10) 

Também no horizonte do Estado Democrático de Direito, o mencionado autor apresenta uma outra razão para a aceitação da Lei Geral da Copa no universo jurídico da forma como foi publicada. Segundo ele, se há legitimidade popular constitucional de deputados e senadores, não há que se falar em vício na legislação. 

Não houve e não há ingerência na soberania nacional, pois a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012), balizando a organização do Mundial de Futebol de 2014, promanou, exclusivamente, da vontade livre e independente dos deputados e senadores nas duas casas legislativas, com ulterior sanção presidencial, sem infringir quaisquer dos valores  inegociáveis ou cláusulas pétreas do nosso ordenamento jurídico. (MELO FILHO, apud CAMARGOS e SANTORO, 2012, p.10) 

Também defende o autor que foi o Brasil quem se candidatou a receber a Copa do Mundo. Não havia, portanto, nenhuma obrigação da nação em relação à FIFA, antes dos próprios governantes assinarem um documento estabelecendo medidas a serem tomadas para que os brasileiros pudessem sediar sua segunda Copa do Mundo. Para tanto, o autor utiliza em seu texto o conceito de soberania compartilhada - que pelo conceito de Flavio Augusto Odizio - “na qual os Estados, antes absolutos, compartilham sua soberania com um órgão supranacional” (ODIZIO, p.2). Logo, segundo esse pensamento, o Brasil não abre mão de sua soberania, mas reconhece a FIFA como órgão supranacional, dividindo com esta a possibilidade de produzir normas para eventos que envolvam as duas pessoas jurídicas.

Outro argumento, segundo essa linha de não afronta à soberania nacional diz respeito à limitação das normas existentes em nosso sistema jurídico. Logo, o diploma regulador da Copa do Mundo é necessário para cobrir todas as hipóteses relacionadas ao mundial de futebol e não configura qualquer afronta à soberania, Sob esse prisma, Mello Filho afirma: 

A edição da Lei Geral da Copa com um conteúdo específico e uma função particular destina-se a substituir os instrumentos jurídicos de direito comum que tem uma eficácia limitada em face das peculiaridades jurídicas que permeiam a realização de um Mundial de Futebol. Outrossim, com este singular diploma legal, nem o Brasil está apropriando-se da Copa do Mundo, nem a FIFA está conspurcando a soberania nacional. (MELO FILHO, apud CAMARGOS e SANTORO, 2012, p.11) 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

      A Lei Geral da Copa é necessária e sempre existiu para regular os assuntos relacionados aos grandes eventos supramencionados desde a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Em algumas áreas, como nas questões de venda de ingressos e criação de alguns tipos penais a lei avança em relação à legislação pátria, entretanto, existe dissidência a respeito. Isso porque a Lei Geral da Copa afasta a aplicabilidade de partes de diversas leis, entre elas o Estatuto do Torcedor, a Lei Pelé e o Estatuto do Estrangeiro, além de permitir a venda de bebidas alcoólicas em eventos da FIFA, sendo que as mesmas não podem ser consumidas nos estádios em competições nacionais, ensejando ofensa à Soberania, pilar basilar da República.

Observando os dispositivos em questão, parece evidente que as garantias concedidas à FIFA são excessivamente genéricas e amplas. O afastamento da legislação brasileira é gritante, o que nos faz imaginar se esse não seria um perigoso precedente para as instituições que organizarem grandes eventos em nosso país.

Ademais, importante acrescentar que um vultoso resultado econômico para o Brasil nos casos de realização da Copa Do Mundo e das Olímpiadas não deve permitir qualquer forma de renúncia de soberania. Portanto, devem ser estudadas cuidadosamente as garantias prestadas pelo Estado nesses casos, afim de que se preserve a realização dos megaeventos e o respeito ao nosso ordenamento jurídico pátrio.

5. REFERÊNCIAS

BOMFIM, Silvano Andrade do. Lei Geral da Copa, Soberania Nacional e Constituição. In: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-19/RBDC-19-235-Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Lei_Geral_da_Copa_Soberania_Nacional_e_a_Constituicao).pdf. Acesso em 20 de agosto de 2013, às 17.

BRASIL. Lei n. 12.663, de 5 de junho de 2012, que dispõe sobre as medidas relativas à Copa das Confederações FIFA 2013, à Copa do Mundo FIFA 2014 e à Jornada Mundial da Juventude - 2013, que serão realizadas no Brasil; altera as Leis nos 6.815, de 19 de agosto de 1980, e 10.671, de 15 de maio de 2003; e estabelece concessão de prêmio e de auxílio especial mensal aos jogadores das seleções campeãs do mundo em 1958, 1962 e 1970. Presidência da República. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12663.htm, acesso em 20 de agosto, as 16h 

CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. SANTORO, Luiz Felipe Guimarães. Lei Geral da Copa Comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. 

GORSDORF, Leandro Franklin; HOSHINO, Thiago A. P. A Lei Geral da Copa dos Interesses Particulares. In: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1039, acesso em 10 de setembro de 2013, as 14h

ODIZIO, Flavio Augusto. A Necessidade de Redefinição do Conceito de Soberania Estatal. In: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1264/1206, acesso em 9 de setembro de 2013, às 16h 

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