A LEI DOS REMÉDIOS E A EQUIPARAÇÃO DESTES AOS COSMÉTICOS E SANEANTES: uma análise critica acerca da tipificação da conduta à luz do princípio da proporcionalidade e da ofensividade[1]

 

Isabella Maria de Araújo Lauande

 Larissa Pereira Rodrigues[2]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[3]

 

Sumário: introdução; 1 Análise normativa do artigo 273 do Código Penal; 2 Breves considerações sobre a equiparação de cosméticos e saneantes a produtos medicinais; 3 A proporcionalidade e a pena aplicada ao art. 273 do CP; Conclusão; Referências.

                                                                                                                    

 

RESUMO

O presente paper tem por objetivo analisar o tipo penal descrito no art. 273, do Código Penal, em especial o § 1º-A, em seguida verificando se houve equívocos na reformulação deste dispositivo no que tange à equiparação feita entre cosméticos e saneantes a remédios, e, principalmente, no que se refere à pena estabelecida a este tipo penal, elegendo como princípios norteadores da discussão os princípios da proporcionalidade e da ofensividade.

 

PALAVRAS-CHAVE

Proporcionalidade. Pena. Cosméticos. Saneantes. Medicamentos.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Ante ao crescente número de denúncias e escândalos decorrentes da falsificação e adulteração de remédios no Brasil, o legislador pátrio entendeu por bem alterar a redação do art. 273 do Código Penal, alterando a sanção penal que lhe era cominada, assim como incluído-o no rol de crimes hediondos (vide art. 1º, VII - B, da Lei nº. 8.072/90).  

A alteração do mencionado tipo penal deu origem a inúmeras discussões. Tal fato se dá em razão de questionamentos acerca da proporcionalidade da conduta descrita no tipo penal e a pena cominada a este, pois indaga-se se a aludida alteração não seria um desrespeito a princípios penais, como o princípio da proporcionalidade e da ofensividade.

Portanto, a discussão do presente paper ocorrerá em torno da proporcionalidade da pena aplicada ao art. 273 do Código Penal ao bem jurídico que o citado dispositivo penal visa proteger; propondo, assim, uma análise crítica sobre o tema.

 

1 CLASSIFICAÇÃO NORMATIVA DO ART. 273 DO CÓDIGO PENAL

 

O artigo 273 do Código Penal trata de dispositivo que possui como bem jurídico a ser tutelado a “incolumidade pública, em especial a saúde pública” (BITENCOURT, 2009, p. 184).

São sujeitos deste crime, ativamente, qualquer pessoa, ou seja, trata-se de delito de perigo comum; e passivamente a coletividade, cuja saúde seja lesada ou colocada em perigo pela ação do sujeito ativo (BITENCOURT, 2009, p. 184).

O delito em comento diz respeito a crime misto alternativo, tendo como núcleos previstos em seu caput os seguintes verbos “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais” (PRADO, 2004, p. 752).

Incorre, também, nas mesmas penas aquele que importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido ou alterado, nos termos do § 1º do dispositivo em epígrafe.  

Nesse passo, quanto ao objeto material deste tipo normativo, temos que é o “produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, ou seja, próprios para o tratamento, a cura ou a prevenção de enfermidades” (BITENCOURT, 2009, p. 184), sendo incluídos a estes produtos, nos termos do § 1º-A, os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.

Nesse diapasão, passa-se a análise do elemento subjetivo que consiste especificamente no dolo, o qual se trata “da vontade livre e consciente de praticar qualquer das condutas descritas no artigo em exame” (BITENCOURT, 2009, p. 184).

A consumação se dá no momento em que o agente incorre na prática dos atos previstos no tipo penal, caput e seus parágrafos, tratando-se de mero exaurimento o resultado prático advindo da conduta, sendo a tentativa admissível e o fracionamento do iter criminis possível, pois se refere a delito plurissubsistente e que deixa vestígios (PRADO, 2004, p. 757).

Pelo fato de as condutas previstas no caput, bem como no § 1º do art. 273 sugerirem ações por parte do agente para a configuração do ilícito penal, trata-se de crime comissivo, porém, segundo Rogério Greco, em sua obra Curso de Direito Penal Parte Especial, Volume IV, assevera que nada obsta à prática deste delito na modalidade omissiva imprópria, caso em que o agente, revestido da qualidade de garantidor, nada faz para evitar o cometimento da conduta (GRECO, 2006, p. 161).

Ressalta-se, ainda, que o tipo prevê a modalidade culposa, a qual se configurará quando “qualquer das condutas perpetradas decorrerem da desatenção às regras de cuidado objetivo pelo agente”, aplicando-se a pela prevista no § 2° do tipo penal em apresso.

Nas hipóteses das formas qualificadas, se do crime doloso resultar lesão corporal de natureza grave, aumenta-se a pena pela metade; se resulta morte, é aplicada a pena em dobro. Se ocorrer na modalidade culposa, resulta lesão corporal de natureza grave, majora-se a pena pela metade, e na hipótese morte pela modalidade culposa, aplica-se a pena conferida ao homicídio culposo aumentada em um terço.

As penas cominadas pelo caput  e pelos §§ 1° e 1°- B do tipo penal são de reclusão de dez a quinze anos e multa. Já o § 2° prevê pena de detenção de um a três anos, sem prejuízo de multa. Admite-se, ainda, a suspensão condicional do processo, porém quanto à modalidade culposa (§ 2°). A ação penal cabível é pública incondicionada. (BITENCOURT, 2009, p. 190).

 

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE À EQUIPARAÇÃO DE COSMÉTICOS E SANEANTES Á PRODUTOS MEDICINAIS

 

O legislador, ao incluir § 1º-A do artigo 273 do Código Penal, equipara as condutas daqueles que falsificam produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais à conduta daqueles que falsificam produtos cosméticos e saneantes, igualando, consequentemente, a ofensibilidade e o dano ocasionado por tais atos.

Ocorre que os produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais consistem em “materiais preparados ou empregados para prevenir ou curar enfermidades humanas” (PRADO, 2004, p.752), ou seja, tais produtos encontram-se diretamente relacionados à saúde pública, a vida do sujeito passivo.

Já os cosméticos consistem em “produtos para uso externo, destinados à proteção ou ao embelezamento das diferentes partes do corpo” (PRADO, 2004, p. 753); e os saneantes, por sua vez, consistem em “produtos destinados à higienização (limpeza) e desinfectação de ambientes” (PRADO, 2004, p. 754).

Contudo, podemos verificar que a alteração redacional do art. 273 do Código Penal feita pela Lei nº 9.677/98, colocou, em um único tipo penal, “produtos qualitativamente autônomos e que não suportam uma igualdade conceitual” (FRANCO apud GRECO, p. 756), ficando patente, por conseguinte, que não deveriam tais produtos possuir o mesmo tratamento.

Complementa, ainda, Alberto Silva Franco, que:

A falsificação de um cosmético, como um batom, ou de produto destinado à higienização doméstica, ou ainda a exposição à venda de produto adquirido de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente são ações que não chegam a ofender, de modo significativo, o bem jurídico que se buscou proteger (a saúde pública) (FRANCO apud GRECO, 2006, p. 756).

                                                                                                   

Em outras palavras, quis o doutrinador indicar que é um impropério aceitarmos que a criminalização da conduta do agente que falsifica um medicamento destinado, por exemplo, à cura de um câncer e do agente que falsifica um batom, cujo fim se destina ao embelezamento, se pretendam a resguardar o mesmo bem jurídico, qual seja, a saúde pública.

O Autor crítica, também, a atuação do legislador ao editar a mencionada lei, afirmando que:

 

facilmente é vislumbrada a deficiência da técnica legislativa, pois foram equiparados medicamentos, cosméticos e saneantes. De fato, “não há como equiparar, na sua ofensibilidade à saúde pública, produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais a meros cosméticos, ou seja, a produtos que servem ao embelezamento ou à preservação da beleza ou a simples saneantes, produtos dirigidos à higienização ou à desinfecção ambiental. (grifo-nosso) (FRANCO apud PRADO, 2004, p. 754).

 

              Assim, conclui-se que equacionar corretamente o bem jurídico tutelado ao dano que este possa causar a sociedade trata-se de tarefa “inafastável de um legislador no Estado Constitucional de Direito” (FRANCO apud PRADO, p. 756), devendo, portanto, ser efetuada uma interpretação restritiva da equiparação colocada pelo §1º-A, do art. 273, do CP, no sentido de serem somente equiparados a remédios os cosméticos e saneantes destinados a fins terapêuticos ou medicinais.

 

3 A PROPORCIONALIDADE E A PENA APLICADA AO ART. 273 DO CÓDIGO PENAL

 

O ilícito penal constante no art. 273, quando da alteração de seu texto pela Lei nº 9.677/98, definiu como crime punível com reclusão mínima de 10 (dez) e máxima de 15 (quinze) anos a conduta de quem falsifica, corrompe, adultera ou altera produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, elencando em seu §1º-A um rol de produtos, entre eles, os cosméticos e saneantes.

Inobstante, o dispositivo legal ter sofrido tal alteração como meio de proteger com maior amplitude os direitos e de inibir a prática da falsificação e adulteração de produtos terapêuticos e medicinais, tão recorrente em meados dos anos 1990, este acabou por descaracterizar, vindo até mesmo a desmerecer algumas técnicas legislativas, bem como princípios essenciais à existência do direito.

BECCARIA em sua obra “Dos delitos e das penas” assevera que “a única e verdadeira medida dos delitos é o dano provocado à nação” (2002, p. 52-53), dessa forma, exige-se do legislador penal “um liame axiológico e, portanto, graduável, entre o fato praticado e a cominação legal/consequência jurídica” (PRADO, 2008, p. 140).

HASSERMER aduz que “a exigência de proporcionalidade deve ser determinantemente ‘um juízo de ponderação entre a carga coercitiva da pena e o fim perseguido pela cominação penal’”. (HASSERMER apud PRADO, 2008, p. 140).

Assim, analisando o tipo penal em testilha verifica-se que há flagrante desproporcionalidade na equiparação das condutas previstas no §1º-A, violando assim de forma grave o mencionado princípio constitucional, pois ao equiparar as condutas supramencionadas o legislador omitiu-se em analisar a desaprovação moral diversa de tais condutas, bem como de observar o princípio da proporcionalidade da pena, o qual assevera que “a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato. Significa que a pena deve ser medida pela culpabilidade do autor” (DAMÁSIO, 2002, p. 11).

REALE JÚNIOR, ao tecer considerações ao dispositivo em comento, complementa ainda que

  • o princípio da proporcionalidade, decorrente do mandado de proibição de excessos, e o princípio da ofensividade foram claramente afrontados na Lei nº 9.677 de 02.07.1998, bem como pela Lei nº 9.695, de 20.08.1998. Regras aí contidas concretizam graves distorções entre os fatos inócuos descritos e a sua criminalização. Isto porque não se exige, no modelo de conduta típica, a ocorrência de resultado consistente em perigo ou lesão ao bem jurídico que se pretende tutelar, vale dizer, à saúde pública (REALE JUNIOR apud Rodrigues Abrão, 2009, p.2).

 

A desproporção entre a pena conferida ao dispositivo ora discutido torna-se mais evidente com a sua inclusão no rol dos crimes hediondos, através da Lei nº 8.072/90. Neste sentido, apresenta-se o já citado Alberto Silva Franco, ao entender que:

Essa desproporção fica mais à mostra quando o preceito sancionatório formulado pelo legislador dá, como no caso do art. 273 do Código Penal, um tratamento punitivo mais rigoroso a condutas menos graves: a pena do homicídio simples (mínimo de seis anos de reclusão) é inferior à pena de falsificação ou de alteração de cosméticos ou saneantes ou de ilícito administrativo alçado à categoria de fato criminoso (mínimo de dez anos de reclusão). A conclusão final é, portanto, pela manifesta ofensa aos princípios constitucionais da ofensividade e da proporcionalidade (grifo nosso) (FRANCO apud GRECO, 2006, p. 162).

 

Wendel Laurentino também divaga sobre a deficiência legislativa do dispositivo, questionando não a respeito da equiparação equivocada, mas sim sobre o excesso de pena cominada à norma em comento, sustentando que:

Para se ter uma ideia do absurdo jurídico criado com o advento da Lei nº 9.677/98, hoje, se o agente introduzir (importar) produto destinado a fim medicinal sem o devido registro, estará sujeito a uma pena de no mínimo dez anos de reclusão. Importante ressaltar que, neste caso, o produto não precisa ter sido adulterado, pode estar em perfeitas condições, basta introduzi-lo sem o devido registro (LAURENTINO, 2008).

 

Dessa forma, fica evidenciada a total carência de proporção e absurdo jurídico entre a gravidade das condutas empreendidas e as consequências punitivas delas decorrentes, bem como a inserção deste tipo penal ao rol dos crimes hediondos, implicando em afronta aos princípios da proporcionalidade e da ofensividade.

 

CONCLUSÃO

 

            No presente trabalho, analisamos o contexto histórico que deu origem ao surgimento do tipo normativo descrito no art. 273, caput e seus parágrafos, ressaltando, ainda, a importância do bem jurídico que o tipo penal se pretende a salvaguarda.

            Em seguida, buscamos trazer à discussão os aspectos formais e materiais do dispositivo penal em estudo, bem como outros elementos necessários à compreensão do tipo normativo, tudo isso para melhor compreensão da complexidade e atenção que merece o tipo penal em estudo.

            Feitas essas considerações, tratamos por trazer à discussão os entendimentos da doutrina majoritária acerca do assunto, tendo ficado patente que houve flagrante desproporcionalidade na equiparação das condutas previstas no §1º-A, do Art. 273, violando assim de forma grave o princípio da proporcionalidade da pena, pois ao equiparar duas condutas que possuem natureza e fins diversos, o legislador omitiu-se em examinar com maior cuidado o desvalor moral que merece cada uma das condutas, e o dano que estas podem proporcionar.

Por fim, divagamos acerca da pena aplicada ao §1º-A do art. 273 do Código Penal, chegando ao entendimento de que está-se diante de flagrante absurdo jurídico, posto que a inclusão deste tipo penal no rol dos crimes hediondos é descabida, tendo em vista a atribuição do desvalor moral ser o fator determinante para a inserção de um delito neste rol. Portanto, necessária se faz uma interpretação restritiva deste dispositivo, considerando somente os cosméticos e saneantes que tenham fins terapêuticos ou medicinais os objetos deste tipo penal.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABRÃO, Guilherme Rodrigues. A (In) Constitucionalidade da Lei dos Remédios: Artigos 272 e 273 do Código Penal - Breve análise crítica. Disponível em http://www.lfg.com.br. 15 junho. 2009. Acessado em: 21 de maio de 2012.

 

BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de, 1738-1794. Dos delitos e das penas. Trad: Lucia Guidicini; Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

  

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 4: parte especial. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral, 1º volume. – São Paulo: Saraiva, 2002.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume IV. – Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

 

LAURENTINO, Wendel.A inconstitucionalidade do artigo 273 do Código Penal.Disponívelem http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=2008080415231853 Acessado em: 20 de maio de 2012.



[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial II da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Alunas do 5º período do Curso de Direito Vespertino.

[3] Professora responsável por ministrar a disciplina de Direito Penal Especial II.