A LEI DOS REMÉDIOS E A EQUIPARAÇÃO DE COSMÉTICOS E SANEANTES A REMÉDIOS: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA E SUA INCLUSÃO NO ROL DOS CRIMES HEDIONDOS[1]

Anderson dos Santos Guimarães[2]

Carlos Alberto Braga Diniz Neto[3]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[4]

 

SUMÁRIO: Resumo; Considerações Introdutórias; 1. A Lei dos Remédios e o Código Penal; 1.1. Artigo 273: Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; 2. Cosméticos, saneantes e remédios: interpretação dos elementos normativos e a Lei nº 3.360/76; 3. A inclusão do artigo 273 do Código Penal no rol dos crimes hediondos; 3.1. Análise e sopesamento dos princípios envolvidos; Considerações Finais; Referências.

RESUMO

O presente artigo tem, como principal foco e delimitação, a análise da (in)constitucionalidade e a legitimidade da integração do artigo 273 do Código Penal, tipificado com o nomen iuris “Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, no rol taxativo do artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos. Em primeira análise, observa-se que tal crime possui uma pena desproporcional por não ser crime de dano, mas sim perigo, e que a inserção no rol dos crimes hediondos fora uma medida desproporcional. E isso se comprova por meio da análise dos princípios afetados, observando ainda o tema da equiparação de cosméticos e saneantes a remédios.

Palavras-chave: Hediondo. Dano. Perigo. Abstrato. (In)constitucionalidade.

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

 

O presente trabalho será elaborado com o objetivo de mostrar a relação entre o Código Penal e a Lei dos Remédios. Objetiva também fazer uma interpretação dos elementos normativos da Lei 3.360/76 visando discorrer sobre a equiparação de cosméticos e saneantes a remédios.

Para tanto, será necessário se debruçar, sobretudo, sobre o art. 273 do Código Penal para atestar sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Foi necessário também, preliminarmente, se dispor ao estudo e análise crítica dos conceitos de crimes de dano, crimes de perigo concreto e de perigo abstrato. E também será de suma importância identificar os princípios constituicionais-penais envolvidos nesse contexto e realizar o sopesamento necessário com o fim de identificar se a posição tomada é a mais adequada, real e justa, dentro das possibilidades do ordenamento jurídico brasileiro.

A necessidade e relevância do presente trabalho surgiram por se identificar que houve a inclusão do artigo supracitado (“art. 273. Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, CP) no rol dos Crimes Hediondos. É extremamente relevante ressaltar tal fato, pois constata-se que, a partir disso, há uma nítida desproporcionalidade entre conduta típica e consequente pena. Dessa forma, é irrefutável apregoar que, no mínimo, o artigo 273 do Código Penal Brasileiro é inconstitucional pela referida inclusão no rol dura lei penal (art. 1º, VII-B, L.8.072/90).

Em suma, o resultado desejado é comprovar a desproporcionalidade da pena do art. 273 após sua inclusão rol de Crimes Hediondos, resultando, portanto, na sua inconstitucionalidade. Tal desproporção se identifica após a análise e sopesamento de princípios (por meio da Proporcionalidade stricto sensu) constitucionais e penais, sobretudo, o da Proporcionalidade lato sensu. Dessa forma, após identificada a desproporcionalidade, passa-se a sua consequência lógica, qual seja, a inconstitucionalidade do referido artigo, incluso na Lei 8.072/90.

1 A LEI DOS REMÉDIOS E O CÓDICO PENAL

 

A lei nº 9.677/98 trouxe mudanças notórias ao Direto Penal Brasileiro, em especial para o Código Penal. A criação de tal lei visou alterar drasticamente dois dispositivos, adotando uma política criminal mais severa e punitiva. Foram alterados os artigos 272 e 273 do CP. Neste trabalho, analisaremos apenas o mérito a respeito do segundo artigo. Antes de mais qualquer passo citemos a íntegra do dispositivo em questão:

Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

  • § 1o Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.
  • § 1o-A. Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.
  • § 1o-B. Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1o em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:

I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;

II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;

III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;

IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;

V - de procedência ignorada;

VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

Modalidade culposa

  • § 2o Se o crime é culposo:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

A norma foi alterada “com inserção de novos parágrafos, ampliação da tutela dispensada e elevação substancial das sanções penais, além de transformá-lo em crime hediondo” (BITENCOURT, 2011, p.314). Desde já percebe-se o rigor exacerbado e desproporcional adotado pelo legislador. Afirma Guilherme Rodrigues Abrão (2009) que a edição da Lei em questão

Demonstra a política criminal adotada pelo Legislador pátrio, a qual consubstancia-se em uma política criminal extremamente punitivista, onde o Direito Penal é visto como o único instrumento de controle das mais diversas formas de criminalidade (ABRÃO, 2009).

O novo preceito secundário adotado após a reforma do artigo demonstra uma das principais anomalias. De fato, a imputação de uma pena de 10 a 15 anos é um exagero analisando o dano ao bem jurídico protegido. Além disso, a inclusão desse tipo penal no rol de crimes hediondos assevera ainda mais a desproporcionalidade entre a sanção aplicada e o dano sofrido pelo bem jurídico protegido, visto que os crimes classificados como hediondos possuem tratamento mais rígido. Analisaremos tais questões mais a frente, visto que, para tanto, precisamos interpretar brevemente a conduta tipificada no artigo 273 do CPB.

1.1 Artigo 273: falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais

 

Primeiramente, devemos analisar o bem jurídico tutelado. Bitencourt (2011, p. 312) afirma que “o bem jurídico protegido é a incolumidade pública, especialmente em relação à saúde pública”. Termina o autor afirmando que “sua gravidade decorre do perigo em comum que produzem” (BITENCOURT,2011, p. 312). Concluímos, dessa forma, assim como a maioria da doutrina, que se encaixa na classificação de crime de perigo abstrato, pois o perigo é presumido por lei.

O sujeito ativo, afirma Mirabete (2011, p. 1575), “é qualquer pessoa que pratica uma das ações incriminadas, independentemente da qualidade de produtor ou comerciante”, sendo portanto um crime comum. Já o sujeito passivo é a coletividade, cuja a saúde é posta em risco, lembrando que presumidamente.

Consuma-se o crime quando praticada qualquer conduta descrita no tipo, não dependendo de qualquer outro resultado, sendo, portanto um crime formal, pois não exige a ocorrência de um resultado naturalístico. Afirmam Mirabete(2011, p. 1576) e Bitencourt (2011, p. 313) que a tentativa é “teoricamente” possível.O crime admite a forma culposa, prevista no §2º. A ação penal é pública incondicionada.

Notório que, observando o nomen iuris, tem-se que este crime pode ser praticado de quatro formas, ampliando significativamente a incidência penal nas práticas delituosas. São quatro núcleos que possuem significados diferentes. Em sua monografia, a estudante Giulia Gandra Freitas utiliza as palavras de Greco para diferenciá-los: “o ato de corrupção é o mesmo que estragar, decompor, tornar podre; adulteração é sinônimo de deturpação ou deformação; falsificação significa reproduzir, imitar, e, por fim, alterar é o mesmo que mudar, modificar ou transformar” (GRECO, 2006, p. 146, apud FREITAS, 2010, p. 52).  

2 COSMÉTICOS, SANEANTES E REMÉDIOS: INTERPRETAÇÃO DOS ELEMENTOS NORMATIVOS E A LEI Nº 3.360/76

 

Pela análise do caput percebemos de imediato que existe o elemento normativo: produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Giulia Gandra Freitas (2010, p. 54), em sua monografia a respeito deste tema, afirma que este elemento normativo “pode ser entendido como remédios ou medicamentos de um modo geral, bem como quaisquer outras substâncias destinadas à cura de doenças ou com fins terapêuticos”. O §1º-A acrescentou, com a reforma, que “incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico”. Temos, portanto, um problema que fora resolvido pelo próprio legislador, que conceituou o elemento normativo em questão.

No entanto, houve desnecessária comparação entre cosméticos e saneantes a remédios, conceitos que feriam o princípio da proibição da analogia in malam partem no momento da criação do dispositivo. De fato cosméticos e saneantes não se encaixam na classificação de produtos medicinais ou terapêuticos. Essa comparação é exagerada e desnecessária, tomando como ponto de partida a inclusão de tal conduta no rol dos crimes hediondos. Pode-se afirmar que

O cosmético é produto utilizado na limpeza e conservação ou maquiagem da pele e, embora alguns deles possam causar eventuais males à pele, não se pode afirmar que todo ele é classificado como um produto medicinal, no sentido técnico e científico do termo. A discrepância da norma se verifica quando ela peca por não se referir expressamente à condição e nocividade positiva do produto falsificado, alterado ou corrompido para a saúde pública. O mesmo raciocínio doutrinário se aplica aos saneantes por serem considerados produtos terapêuticos ou medicinais, vez que, conforme Monteiro (2008, p. 74), aqueles são destinados à higienização em geral. (p. 56).

Para concretizar este entendimento, seria impossível de se aceitar a imputação de uma pena de 10 a 15 anos para alguém que modificasse os componentes químicos de um sabonete caseiro. A desproporcionalidade se eleva ainda mais se comparado com a falsificação, alteração, adulteração, corrupção de um remédio em sentido estrito.

3 A INCLUSÃO DO ARTIGO 273 DO CÓDIGO PENAL NO ROL DOS CRIMES HEDIONDOS

 

A inclusão de um crime no rol do artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) modifica o tratamento anteriormente dado a conduta. A lei dos crimes hediondos, surgiu com a necessidade de punir mais severamente algumas condutas repudiadas pela sociedade e pelo Estado, adotando uma política mais severa e punitivista, como anteriormente citado. A necessidade de prevenir a sociedade do cometimento de crimes declarados hediondos, fez com que o legislador assevera-se a punição, tendo em vista o caráter punitivo e educacional da pena, adotando medidas como a proibição de concessão de anistia, graça e indulto (art. 2º, I, LHC) e da fiança (art. 2º, II, LHC). Tais crimes causam um maior dano ao bem jurídico e representam um mal maior à sociedade.

Apesar do louvável motivo da edição desta lei, é necessário afirmar que a inclusão da conduta tipificada no artigo 273, do Código Penal, no artigo 1º, da LHC, carece de legitimidade. De fato a conduta aqui estudada não é merecedora da característica de hedionda, visto que é apenas um crime de perigo abstrato, não precisando, sequer, que o dano ao bem jurídico se realize. Para que a conduta não padeça de insignificância e seja considerada delituosa é necessário que ocorra uma lesão ao bem jurídico. De fato, por ser um crime de perigo abstrato, ocorre a lesão mas de uma maneira presumida pela lei. É desnecessário, por este motivo, que seja classificada como hediondo, visto que não ocorre necessariamente um resultado naturalístico capaz de elevá-la a uma conduta hedionda.

Damásio de Jesus (2010, p. 263) caracteriza os crimes hediondos como “delitos repugnantes, sórdidos, decorrentes de condutas que, pela forma de execução ou pela gravidade objetiva dos resultados, causam intensa repulsa”. Temos que ser racionais. Comparando a conduta estudada com outras do Código Penal, que não foram incluídas no rol dos crimes hediondos, percebemos que não há um grau de lesividade elevado, nem qualquer “intensa repulsa” por parte da sociedade, como afirma Damásio. O próprio homicídio simples, que lesa consideravelmente mais o bem jurídico vida, não está incluído integralmente no rol dos crimes hediondos.

É de se lamentar que a visão do legislador a respeito dos crimes hediondos não seja eficiente no combate ao crime, visto que, ao invés de punir mais severamente condutas que firam concretamente os bens jurídicos mais importantes, punem algumas condutas que seriam desnecessárias, tendo em vista que o Direito Penal é a ultima ratio  do Estado.

3.1 Análise e sopesamento dos princípios envolvidos

 

Analisemos agora os princípios mais afetados ao se tratar da tipificação da conduta estudada e sua inclusão no rol dos crimes hediondos. Partiremos da análise do princípio da lesividade ou ofensividade.

Para Damásio (2010, p. 52) “o Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta ofende um bem jurídico, não sendo suficiente que seja imoral ou pecaminosa. Guilherme Rodrigues Abrão (2009) afirma que “para haver delito é imperioso que tenha ocorrido lesão relevante ou perigo de lesão ao bem jurídico-penal, do contrário não há falar-se em conduta delituosa”. Este princípio pode ser considerado como um limite a atuação do Estado e seu poder punitivo. Portanto, não é qualquer conduta que deve ser tratada com tamanha rigidez e sim aquela que ofender significativamente o bem jurídico, ainda mais no crime aqui analisado, visto que não chega a produzir sequer um perigo concreto, mas sim um perigo abstrato presumido pela lei. Bitencourt (2010, p. 52) ousa afirmar que

são inconstitucionais todos os crimes chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado.

Quanto ao princípio da proporcionalidade, no Direito Penal, tratamos de analisar a equivalência entre a penalidade aplicada e o real dano ao bem jurídico. O princípio da proporcionalidade “determina que a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato” (JESUS, 2010, p. 53). A doutrina concorda em afirmar que a pena deverá ser medida pela culpabilidade dou autor, para que, no sopesamento de princípios, não ocorra grave injustiça. Portanto pode-se afirmar que “a pena a ser cominada ou a ser imposta deve guardar justa proporção com o grau de ofensividade da conduta delituosa no intuito de orientar a criminalização de comportamentos, tanto do legislador, como do juiz” (FREITAS, 2010, p 65).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Após a análise esmiuçada de todos os tópicos envolvidos somente conseguimos enxergar a inconstitucionalidade da inclusão do artigo 273 do Código Penal Brasileiro, visto que ocorre uma enorme violação dos princípios da ofensividade e da proporcionalidade. De fato, a pena cominada a tal crime se mostrou desnecessária e extremamente exagerada. A inclusão no rol dos crimes hediondos torna ainda mais rígido o tratamento de tal conduta, agravando, portanto sua inconstitucionalidade. Não podemos esquecer que o artigo foi elaborado sem qualquer clareza equiparando cosméticos e saneantes à remédios e ferindo, também, a taxatividade que deve estar presente na tipificação das condutas delituosas. Outro fato importante foi a equiparação das condutas presentes no §1º-B que não possuem o mínimo de equivalência para que sejam punidas com a mesma rigidez que o legislador resolveu aplicar.

Cumpre destacar que a atuação do legislador se mostrou, no mínimo, desleixada e descuidada, visando apenas punir irracionalmente quem pratica tal conduta. Sua elaboração se viciou por falta de clareza e sua inserção no rol de crimes hediondos violou uma série de regras e princípios que regulam os Direitos Penal e Constitucional brasileiros.

REFERÊNCIAS

 

ABRAO, Guilherme Rodrigues. A (In) Constitucionalidade da Lei dos Remédios: Artigos 272 e 273 do Código Penal - Breve análise crítica. Disponível em: <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1330054/a-in-constitucionalidade-da-lei-dos-remedios-artigos-272-e-273-do-codigo-penal-breve-analise-critica>. Acesso em: 31 de maio de 2012;

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 4. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2011;

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010;

FREITAS, Giulia Gandra. Lei dos Remédios: A normatividade principiológica em cotejo com a regra concernente à equiparação de cosméticos e saneantes a remédios para fins de penalização de caráter hediondo. Monografia apresentada em 2010 ao curso de Graduação em Direito da Unidade de Ensino superior Dom Bosco, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.  São Luís: UNDB, 2010;

JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte Geral. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2010;

MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Código Penal Interpretado. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

 

 

 



[1] Paper apresentado à disciplina Direito Penal Especial II, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB;

[2] Aluno do 5º período de Direito Noturno da UNDB;

[3] Aluno do 5º período de Direito Noturno da UNDB;

[4] Professora, Orientadora.