RESUMO

As investigações criminais possuem grande relevância frente a aplicação do direito processual penal, emergindo, na atualidade, o questionamento se poderia o representante do Ministério Público promover, por si só, investigações criminais, ou se seria este um desiderato inerente às funções exclusivas da Polícia Judiciária, devendo se pontuar, em qualquer hipótese, as limitações de tais investigações.

 

Palavras-chave: Investigações Criminais. Monopólio Investigativo da Polícia Judiciária. Funções do Ministério Público. Poder Investigativo do Ministério Público. Limitações.

  1. 1.    Introdução

Emerge, na atualidade, uma grande controvérsia acerca dos procedimentos investigatórios, pois, afinal, teria o Ministério Público legitimidade para promover, por si só, investigações criminais, ou seria este um desiderato inerente as funções exclusivas da polícia judiciária.

Esta discussão tem tomado grandes proporções, especialmente pelo fato de que os Tribunais Pátrios têm enfrentado a matéria sucessivamente, ora acolhendo, ora afastando o monopólio da Polícia Judiciária apuração de infrações penais, o que acaba por repercutir diretamente na sistemática do direito processual penal.

Vale registrar que, não obstante o tema tenha se tornado extremamente recorrente no cotidiano jurídico, ainda não se pacificou um entendimento sobre a questão, havendo, pois, substanciosas divergências doutrinárias e jurisprudenciais pontuando diferentes linhas argumentativas, que serão objeto de análise no presente artigo.

 

2. A controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca dos poderes investigativos do Ministério Público.

A Constituição Federal estabelece que caberá à Polícia Federal a apuração das infrações penais contra a ordem política, social, em detrimento de bens, serviços e interesses da União, bem como de suas entidades autárquicas e empresas públicas, e, por fim, outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme. (art. 144 CF/88)

Nosso Código de Processo Penal, por seu turno, ao tratar dos inquéritos policiais, institui em seu art. 4º a competência da Polícia Judiciária para a apuração das infrações penais e da sua autoria, excetuando, contudo, em seu parágrafo único, que aludida competência não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.

Vê-se, pois, que não nos restam dúvidas de que a Policia Judiciária possui sim a competência de apurar infrações penais, contudo, cumpre-nos examinar se seria esta uma competência exclusiva ou não.

A Constituição Federal, ao tratar das atribuições do Ministério Público, previstas no art. 129, não estabelece um rol taxativo de atribuições, conferindo ao órgão Ministerial, além daquelas expressamente previstas, a legitimidade de exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Daí emerge a controvérsia examinada no presente artigo, pois a doutrina e a jurisprudência, examinando sistematicamente todos os dispositivos normativos acima invocados, se divergem consideravelmente, como será abaixo explanado.

Àqueles que se filiam ao entendimento de tratar-se de competência exclusiva da Polícia Judiciária, a apuração de infrações penais e sua autoria, se baseiam no discurso de que a Constituição Federal teria atribuído, exclusivamente à Policia Judiciária, a competência de promover investigações criminais, se pautando também na assertiva de que a Carta Política não teria atribuído ao órgão ministerial a prerrogativa de investigar a ocorrência de infrações penais.

A título de ilustração, vale trazer à baila a doutrina de Guilherme de Souza Nucci, que, em sua obra Código de Processo Penal Comentado, 10 ª edição, se manifesta pela inviabilidade do representante do Ministério Publico produzir e conduzir sozinho inquérito ou investigação penal, in verbis:

“Embora esse tema seja polêmico, comportando várias visões a respeito cremos inviável que o promotor de justiça, titular da ação penal, assuma a postura de órgão investigatório, substituindo a polícia judiciária e produzindo inquéritos visando à apuração de infrações penais e de sua autoria. A Constituição Federal foi clara ao Estabelecer as funções da polícia – Federal e Civil – para investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário – daí o nome Polícia Judiciária - , na atribuição de apurar a ocorrência e autoria de crimes e contravenções penais (art, 144). Ao Ministério Público foi reservado a titularidade da ação penal, ou seja, a exclusividade no seu ajuizamento, salvo o excepcional caso à vítima, quando a ação penal não for intentada no prazo legal (art. 5, LIX, CF). Note-se, ainda, que o artigo 129, III, da Constituição Federal prevê a possibilidade de o promotor elaborar inquérito civil, mas jamais inquérito policial. Entretanto, para aparelhar convenientemente o órgão acusatório oficial do Estado, atribuiu-se ao Ministério Público o poder de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos (o que ocorre no inquérito civil ou em algum processo administrativo que apure infração funcional de membro ou funcionário da instituição, por exemplo), a possibilidade de exercer o controle externo da atividade policial (o que não significa a substituição da presidência da investigação, conferida ao delegado de carreira), o poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (o que demonstra não ter atribuição para instaurar o inquérito e, sim, para requisitar a sua formação pelo órgão competente). Enfim, ao Ministério Público cabe, tomando ciência da prática de algum delito, requisitar a instauração da investigação pela Polícia Judiciária, controlar todo o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não eventual pessoa apontada como autora. O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação, denunciando a seguir quem considerar autor da infração penal, excluindo, integralmente, a Polícia Judiciária e, consequentemente, a fiscalização salutar do Juiz.” (p.82/83)

Não nos restam dúvidas de que os inquéritos policiais deverão, necessariamente, ser presididos por autoridade policial, mesmo porque, como o próprio inquérito indica, trata-se de inquérito policial, contudo, disso não se pode concluir pelo monopólio da polícia judiciária na promoção de investigações criminais, o que é ratificado inclusive pela corrente que nega a legitimidade investigativa do Ministério Público, que reconhece a possibilidade de inquéritos civis, representações fiscais para fins penais de cunho investigativo dirigidas aos órgãos ministeriais, inquéritos para apuração de crimes falimentares.   

Neste contexto, manifestando-se em partido contrário, vale transcrever o magistério de Lenio Luiz Streck, que, em sua obra “Crime e Constituição – A Legitimidade da função investigatória do Ministério Público”, rebate brilhantemente os argumentos utilizados pela corrente adepta ao monopólio investigativo da Policia Judiciária, veja-se:

 “Não se revela necessário um esforço de raciocínio mais rigoroso para concluirmos que o Minnistério Público não tem poderes para a conclusão de ‘inquérito policial’. Sobre isso não resta dúvida alguma, pela singela razão de que se o inquérito fosse conduzido pelo Ministério Público já não mais se poderia qualificá-lo como ‘policial’, se não que teria outra designação (procedimento administrativo, procedimento criminal, etc.). Simples, pois.

É a questão de fundo, sensivelmente distinta: reside em saber se a luz do ordenamento jurídico vigente, o Ministério Público tem – ou não – legitimidade para, no âmbito de seus próprios procedimentos, realizar ‘diligências investigatórias’ no intuito de subsidiar a proposição de futura ação penal pública.

(...)

Recorrentemente, aqueles que desafiam a legitimidade do Ministério Público para proceder a diligências investigatórias na seara criminal, esgrimem o argumento de que tal possibilidade não se encontraria expressa na Constituição, ‘locus político normativo’ de onde emergem suas funções institucionais.

Trata-se, em verdade, de uma armadilha argumentativa. Esconde-se, por detrás da linha de raciocínio, aquilo que se revela manifestamente insustentável: a consideração de que as atribuições conferidas ao Ministério Público pelo art. 129 da Constituição são taxativas, esgotando-se em sua literalidade mesmo. Equivoco, ‘data venia’, grave.

Atende-se, a tanto, que o próprio art. 129, berço normativo das funções institucionais do Ministério Público, ao cabo de especificar um rol de funções acometidas à instituição, dispôs expressamente, em seu inciso IX, que:

Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:

 IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

   Trilhando no mesmo diapasão, veja-se que a lei complementar nº75/93, ao concretizar essa disposição constitucional, dispôs que, art. 5, inciso VI

A norma constitucional sob o apreço qualifica-se como uma cláusula de abertura legalmente concretizável ao exercício, pelo Ministério Público, de ‘outras funções ’, as quais, entretanto, haveriam de estar submetidas as seguintes três condicionantes.

Proveniência legal da função (limitação formal);

Compatibilidade da função legalmente conferida com a finalidade institucional do Ministério Público (limitação material afirmativa);

Vedação de qualquer função que implique a representação judicial ou a consultoria jurídica de entidades públicas (limitação material negativa).

Afastada, pela lógica, qualquer hipótese de relação do tema (realização de diligências investigatórias) com eventual representação judicial ou consultoria de entidades públicas, cabe-nos verificar se estão afirmadas as demais disposições institucionais: função legalmente prevista e compatibilidade as finalidades institucionais do Ministério Público.

Concretiza-se legislativamente, pois, e com a carga eficacial  avigorada própria das lei complementares, o desiderato constitucional. No que concerne ao real objeto de nosso tema, o dispositivo foi cristalino, acertando caber ao Ministério Público, ‘nos procedimentos de sua competência’ (art. 8º - caput), ‘realizar inspeções e diligências investigadores’ (inciso V).

(...) resta-nos um último passo: analisar se a realização de diligências investigatórios pelo Ministério Público encontra pertinência temática com suas atribuições funcionais, haja vista que, o teor do art. 129, IX, a validade material das funções legalmente conferidas à instituição haveria de passar por um crivo de finalidade; é dizer, deverá fazer-se relacionada a um fim para o qual o Ministério Público esteja constitucionalmente legitimado.

Retornaremos, pois, a Constituição da República, a qual dispôs, como atribuição primeira do Ministério Publico,

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

Resulta nítida a revelação meio-fim exsurgente do cotejo dos dispositivos legal (art. 8, V, da LC 75/93, congruente à dicção do art. 26 da Lei nº 8.625/93) e constitucional (art. 129, I, da CRFB), a dar acolhida, portanto, à terceira – e última – das condicionantes impostas pelo art. 129, IX, da Constituição.

O segundo óbice erguido contra a possibilidade de o Ministério Público exercer a atividade investigatório para fins persecução penal (...) reveste-se de forte dose corporativa, pois, busca fazer concentrar na política do monopólio para a realização de toda e qualquer tarefa nesse sentido. Sem procedência também.

Em essência esteia-se tal argumentação no art. 144, §1º, inciso IV, da Constituição, o qual estabelece que compete à política federal ‘exercer ’ com exclusividade as funções de polícia judiciária da União.

Logicamente, ao referir-se a ‘exclusividade’ da Polícia Federal para exercer funções de ‘ Polícia Judiciária da União’, o que fez a Constituição foi, tão somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (Federal, Rodoviária, Ferroviária, Civil e Militar), razão pela qual reservou, para cada um uma delas, um parágrafo dentro mesmo art. 144. Daí porque, se alguma conclusão de caráter exclusivista pode-se retirar do dispositivo seria a de que não cabe à Polícia Civil ‘apurar’ infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da união ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas. (art. 144, §1ª, inciso I), pois que, no espectro da ‘Polícia Judiciária’, tal atribuição está reservada à Polícia Federal.

Acaso concluíssemos distintamente, ou seja, no sentido do ‘monopólio investigativo’ da polícia, teríamos de enfrentar importantes indagações para as quais não visualizamos qualquer possibilidade de resposta coerente com a tese restritiva.

Por exemplo: o que se passaria com as ‘diligências investigatórias’ imprimidas pelos demais órgãos da administração (Poder Executivo), os quais, conquanto não ostentem, ao contrário do Ministério Público, finalidade dirigida à persecução penal, as realizam no escopo de fomentá-la? Bem assim o que ocorreria com investigações criminais – que existem em pluralidade – levadas a efeito no âmbito dos poderes legislativos e judiciários?”  (p. 79/84)

Impende destacar, diante das argumentações expostas, que o acolhimento ou não da possibilidade de o ministério público promover investigações criminais traz conseqüências práticas de extrema relevância.

Isto porque, ao se concluir possibilidade de o Ministério Público promover investigações, importaria estabelecer, primordialmente, certas limitações ao órgão ministerial, que deverá, em qualquer hipótese, dar cumprimento as garantias fundamentais dos investigados, como a ampla defesa e do contraditório, tal como faz a Policia Judiciária no exercício de suas funções investigativas.

Já em sentido contrário, ao se acolher o entendimento de que poderia não poderia, o promotor de justiça, promover, por si só, a investigação criminal, implicaria no necessário reconhecimento de diversas nulidades de processos já iniciados ou já julgados, o que levaria a uma crescente demanda de processos penais objetivando as revisões criminais de julgados ou anulação de processos em cuso.

De qualquer forma, não obstante as argumentações doutrinárias divergentes, o ponto mais relevante seria, de fato, estabelecer os corretos limites as investigações, independentemente de qual seja o órgão investigador, devendo, sempre, se dar fiel cumprimento aos relevantes princípios e garantias fundamentais esculpidas na Constituição Federal.

  1. 2.    CONCLUSÃO

Há que se concluir, diante das argumentações aqui expostas, que de fato a competência para presidir inquéritos policiais restringe-se à Polícia Judiciária, havendo, contudo, relevantes argumentos ao entendimento de que haveria sim a possibilidade de o Ministério Público promover investigações criminais, afinal, o Ministério Público seria o maior interessado na colheita de informações acerca da ocorrência de crime, mesmo porque é o único legitimado a promover a ação penal pública incondicionada, não havendo, também, qualquer vedação expressa a tal atribuição.

Assim, registra-se, por derradeiro, que, examinando os dispositivos normativos que regem a espécie, não se pode concluir, ao menos não de forma incontroversa, pela vedação à promoção de investigações criminais promovidas pelos representantes do Ministério Público, pois, assim como explanado na doutrina de Luiz Streck, para sustentar tal hipótese haveria de se concluir pela taxatividade do art. 129 da Constituição Federal, o que vai de encontro, manifestamente, ao disposto no mesmo dispositivo, em seu inciso IX, cabendo, portanto, apenas delimitar a atuação do órgão ministerial, ou de qualquer que seja o órgão investigativo, de modo a dar efetividade a normas e princípios esculpidos na Constituição Federal, ao menos até que sejam feitas alterações legislativas pertinentes e ou então que o Supremo Tribunal Federal se posicione, definitivamente, sobre a tema aqui tratado.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal.

NUCCI, Guilherme de Souza – Código de Processo Penal Comantado – 10ª edição – revista atualizada e ampliada –Editora revista dos Tribunais: 2011.

STRECK, Lenio Luiz – Crime e Constituição – A Legitimidade da Função investigatória do Ministério Público – Editora Forense: 2003.