A LEGITIMAÇÃO DO ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS FRENTE À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Felipe Marto Soeiro Carneiro

RESUMO

Realizando uma concisa análise histórica é possível denotar que a consideração do aborto como um lícito penal provém de um decurso temporal extenso e está diretamente associada com a problemática da determinação do conceito de vida, bem como a devida proteção do bem jurídico. Denota-se que o Código Penal vigente preleciona três modalidades punitivas e as especialidades em que não há uma tipificação na conduta criminosa da prática do aborto. Tem-se a iniciativa de pautar o presente trabalho na temática da interrupção da gestação em caso de anencefalia por ser uma problemática que adentra no conflito da determinação de existência ou não de vida intrauterina e encontra a sua legitimação ao se deparar com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

1 INTRODUÇÃO

Desenvolver-se-á o presente trabalho no que tange aos principais pontos que fundamentam e possibilitam o entendimento acerca do aborto, seus requisitos, formas e possibilidades de excludente de ilicitude, explicando os motivos que foram levados a construir coerentemente a discursão. São necessárias explicações breves e simplórias acerca das singularidades e pressupostos do aborto de maneira ampla, bem como uma delimitação no aborto de anencéfalos. A problemática será enfrentada frente ao princípio da dignidade humana, uma garantia constitucional que será explanada e servirá como fundamento para realizar o decurso lógico e acadêmico do presente trabalho.

O presente trabalho possui como labor abordar o tema e os subtemas necessários para o esclarecimento da legitimação do aborto de fetos anencéfalos sob a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, abordando aspectos históricos, jurídicos e sociais que ensejaram no desenvolvimento da problemática ao ponto de ser solucionada. Posteriormente, abordar-se-á as possibilidades dentro do ordenamento jurídico para descriminalização da conduta, introduzindo o aborto e suas previsões, bem como o amparo constitucional, e discorrendo sobre a problemática levantada.

O tema discorrido não possibilita o exaurimento do conteúdo, sendo insuficiente para a integral absorção temática. Os autores e referencias utilizados no decorrer do trabalho, servirão para aprofundamento posterior e criticas que poderão ser feitas diante o exposto.

 2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DO ABORTO

A proscrição ou supressão da vida intrauterina faz-se como o basilar para uma conceituação do aborto. Temos como nexo causal a morte do feto que é decorrente dos meios abortivos que visam tal finalidade. É nesse contexto que Fernando Capez entende que só há um bem jurídico tutelado em tal caso fático, que seria o direito à vida. (CAPEZ, Fernando, 2005). Dentre a sua concepção, podemos destacar diversas modalidades, formas majorantes e excludentes especiais de ilicitude.

Ressalta-se que a destruição do produto da concepção da gravidez não implica necessariamente sua expulsão. Tal afirmação é importante para que se entenda que há diversas possibilidades decorrentes dos múltiplos modos de perpetrar a prática do aborto e, em todas as que há supressão da vida intrauterina fez-se imprescindível tipificar a conduta como aquela prevista no art. 211 do Código Penal. (MIRABETE, Julio, 2012).

É necessário destacar as fases que constituem o processo evolutivo do produto de uma gravidez, bem como o posicionamento doutrinário como forma de se entender a gênese do ato. Nos primeiros meses é chamado de ovo, de embrião nos dois meses conseguintes e, por fim, de feto no período restante. Cleber Masson leciona que:

É com a fecundação que se inicia a gravidez. A partir de então já existe uma nova vida em desenvolvimento, merecedora da tutela do Direito Penal. Há aborto qualquer que seja o momento da evolução fetal. A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a constituição do ovo ou zigoto, até aquela em que se inicia o processo de parto, pois a partir de então o crime será de homicídio ou infanticídio. (MASSON, Cleber, 2012, p. 67).

Estabelecer o momento exato em que há uma vida que carece da tutela do Direito Penal é alvo de divergência doutrinária. Para alguns, dá-se com a fecundação, para outros, apenas quando o ovo fecundado é implantado no útero, o chamado processo de nidação.

Se for considerado que a vida intrauterina inicia-se com a fecundação, há um contraponto quanto aos métodos de controle de natalidade que visam impedir que ocorra o processo de nidação. Os mesmos seriam qualificados como abortivos. Todavia, “as normas do Ministério da Saúde permitem o uso da pílula do dia seguinte no Brasil e, com isso, as mulheres que utilizem referido medicamento, não correm o risco de serem acusadas pelo crime de aborto.” (LENZA Pedro, 2011, p. 151). Entende-se que ao utilizar de tais métodos há o exercício regular de direito, ocasionando exclusão de ilicitude.

Destarte, podemos elencar algumas modalidades do crime, visto que há métodos diversos para realização da conduta, bem como elementos fáticos que a qualificam de forma diferente a depender de cada um. Tem-se também os casos em que a conduta não depende do agente e, portanto, devem ser recepcionados de maneira diferenciada, conforme trabalhos a seguir.

Preliminarmente, há o chamado “aborto natural”, decorrente de o próprio organismo materno efetuar a expulsão do produto da sua concepção (GRECO, Rogério, 2013).  Também chamados de aborto espontâneo, existem diversos fatores que podem acarretar em morte fetal sem que necessariamente esteja relacionada a alguma conduta praticada pela gestante. Por ser uma interrupção espontânea da gravidez, não há consonância com os subsídios fáticos que tipificam o crime previsto no art. 211, portanto, não havendo crime. (MASSON, Cleber, 2012).

Ademais, tem-se também o aborto necessário ou terapêutico. Tal modalidade é recepcionada pelo art. 128, inciso I do Código Penal e possui dois pressupostos básicos. O primeiro se relaciona com a impossibilidade de outro método que venha a proteger a vida da gestante. Advém, por exemplo, na chamada gravidez tubária. “Não é necessário que haja situação de risco atual para a gestante, pois, para tal hipótese, já existe a excludente do estado de necessidade”. (LENZA, Pedro, 2011, p. 163).

O segundo requisito é a necessidade de um professional hábil para realizar o ato, ou seja, um médico. Como o risco para a gestante não se qualifica como imediato, há possibilidade de haver intervenção médica. A exceção para esse requisito é se o perigo para a vida da gestante possuir caráter atual e emergencial, podendo qualquer um praticar a conduta.

O aborto sentimental ou humanitário, por sua vez, figura com três condições básicas. A priori, deve ser fruto de uma gravidez decorrente de estupro. Quanto a essa modalidade, Pedro Lenza afirma que:

Com o advento da Lei nº 12.015/2009, que deixou de fazer distinção entre crimes de estupro e atentado violento ao pudor, revogando este último e passando a chamar de estupro todo e qualquer ato sexual cometido com violência ou grave ameaça, deixou de ser necessário discutir a possibilidade de aborto legal quando a gravidez resultar de atentado violento ao pudor, já que este crime não mais existe como infração autônoma. (LENZA, Pedro, 2011, p.164).

Ainda nesse sentido, tal modalidade carece do subsídio fundamental do consentimento. Sendo que, caso a gestante seja de menor idade, o seu representante legal assim o faça. Por último e semelhantemente à modalidade anterior, precisa ser efetuado por um médico ou profissional hábil para a prática.

Adiante, há o aborto eugênico ou eugenésico, que seria “a interrupção da gravidez para evitar o nascimento da criança com graves deformidades genéticas”. (MASSON, Cleber, 2012, p. 68). Bem semelhante àquele que será elucidado no levantamento da problemática no presente trabalho, tal modalidade é divergente em sua conclusão de ser ou não tipificado como crime.

Por fim, prosaico no contexto atual, o aborto econômico ou social é aquele que advém de uma suposta condição familiar (ou apenas materna) precária economicamente. Não há excludente de ilicitude em decorrência deste fato, sendo esta uma conduta criminosa.

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