Resumo: A ideia de “potentia”, tal como concebida por Heisenberg, possibilita inquirir sobre a constituição ontológica da teoria quântica. Heisenberg deseja construir uma ontologia formal, capaz de ser expressa pela matemática. A ontologia formal de Heisenberg encontra eco na concepção platônica da ideia, ambas compartilhando o mesmo estatuto ontológico de realidades atemporais. Pode-se atribuir à noção platônica da “khora” a função de meio através do qual o potencial (a “potentia”) se torna atual. Este encaminhamento do pensamento ontológico encontra eco na filosofia de Alfred North Whitehead, construindo uma nova base conceitual para se entender a ontologia da mecânica quântica.

Palavras-Chave: Ontologia; Mecânica Quântica; Khôra; Heisenberg; Whitehead.

 

Em Process and Reality, Whitehead dedica-se, no terceiro capítulo, ao estudo da ordem da natureza. Heisenberg, no seu manuscrito de 1942, intitulado Ordnung der Wirklichkeit (traduzido em português por “A Ordenação da Realidade”), também elabora uma tentativa de ordenar a realidade. Será que há algo em comum entre esses dois pensadores quando tratam de algo denominado “ordem”? A resposta é: sim, há. Ambos recorrem, em certa medida, à filosofia de Platão.

            Whitehead afirma que Platão e Newton, com o Timeu e o Escólio, respectivamente, são as duas grandes influências para o pensamento cosmológico moderno. No entanto, ele vê uma diferença entre esses dois pensadores. Newton atém-se à descrição do mundo físico, enquanto Platão promove uma investigação essencialmente metafísica, à qual Whitehead se refere como o “[...] esforço de conectar o comportamento das coisas com a natureza formal das coisas” (1985, p. 94, tradução nossa).

            Outrossim, há em Heisenberg uma constante preocupação com o que ele chama de “ordem central”, cujo princípio metafísico encontra-se, segundo o físico alemão, no cerne da filosofia platônica. O manuscrito de 1942 deve ser entendido dentro desse espírito da busca por uma “ordem central”.

            Podemos considerar o manuscrito de 1942 como uma consequência das preocupações filosóficas sobre as ciências da natureza, que inquietavam Heisenberg desde a sua juventude. É fácil constatar-se esta assertiva quando lemos o capítulo intitulado “Primeiro encontro com a teoria atômica (1919-1920)”, do livro A Parte e o Todo. Ali, Heisenberg rememora a sua primeira conversa sobre o mundo dos átomos com dois jovens amigos. O tema central do capítulo é a existência de uma “ordem central” e de como ela se encontra intimamente ligada à filosofia de Platão. A princípio a ideia de uma “ordem central” parecia um tanto perturbadora ao jovem físico:

 Enquanto isso, minha inquietação persistiu, embora talvez fosse apenas parte do desassossego que se havia apoderado de toda a juventude alemã. Fiquei imaginando por que um grande filósofo como Platão teria pensado poder reconhecer uma ordem nos fenômenos naturais, quando nós mesmos não éramos capazes de fazê-lo (HEISENBERG, 1996, p. 17-18).

No entanto, uma experiência inusitada o levaria a ter uma percepção imediata, uma intuição, daquilo que, de início ele não compreendia. Quando um jovem violinista executou as primeiras notas da Chacona de Bach, conta Heisenberg que imediatamente, e com extrema certeza, descobriu a sua ligação com o centro (1996, p. 20).

A ideia de uma ordem central, à qual alude Heisenberg, encontra ressonância no texto de Whitehead. Contudo, a concepção do filósofo inglês parece estar mais de acordo com o pensamento platônico, uma vez que para cada entidade atual existe uma ordem ideal dominante.  Sem muito esforço, podemos conceber essa ordem ideal dominante como uma característica dos objetos eternos, que definem e limitam as entidades atuais quando ingressam nos seus processos de concrescência. Algo semelhante à methexis (participação) platônica, ou seja, a ingressão dos objetos inteligíveis no mundo sensível, pela doação da forma aos objetos materiais.

Por sua vez, Heisenberg parece colocar em relevo as ideias de unidade e de totalidade, ao se referir à noção de ordem central. Isto nos parece claro quando ele fala sobre os vários discursos proferidos pelos jovens que se reuniram em assembleia no Castelo de Prunn, para debater que tipo de futuro deveriam construir depois da derrota na guerra:

Pelos discursos dos oradores, ficou claro que diferentes ordens, por mais sinceramente que fossem defendidas, eram passíveis de entrar em choque, e que o resultado era o oposto diametral da ordem. Achei que isso só era possível porque todos aqueles tipos de ordem eram parciais, eram meros fragmentos cindidos de uma ordem central; talvez não houvessem perdido sua força criativa, mas já não eram direcionados para um centro unificador (Ibid., p.19).

A percepção de Heisenberg de que várias ordens parciais confrontando-se podem produzir a desordem, porque coexistem enquanto fragmentos afastados de uma ordem central única e totalizadora, encontra o seu correlato no pensamento de Whitehead, quando o nosso filósofo introduz o conceito de desordem como consequência de uma realização apenas parcial da ordem ideal dominante para cada entidade atual (1985, p. 83). Portanto, do ponto de vista de Whitehead, a desordem é a não realização completa da ordem ideal dominante que, assim como para Heisenberg, torna-se apenas um fragmento dessa ordem. Ainda em consonância com Heisenberg, Whitehead afirma que não apenas a desordem resulta desse fragmento da ordem ideal dominante, mas há nele ainda alguma ordem, ainda que parcial (Ibid., p.83-84).

Outro ponto em comum entre as especulações filosóficas de Heisenberg e de Whitehead é o interesse por uma obra específica de Platão, o Timeu. Ambos constroem suas ontologias a partir de elementos da filosofia platônica encontrados nesse diálogo sobre a natureza do mundo físico.

A nossa tarefa agora é a de produzir uma interpretação whiteheadiana da noção heisenbergiana de potentia, recorrendo ao núcleo comum platônico que consideramos encontrar nos dois pensadores. Obviamente essa interpretação deve se pautar pelo aspecto mais proeminente da ontologia platônica, ou seja, o formalismo. Procuraremos tratar o formalismo em Heisenberg e Whitehead de acordo com critérios específicos que nos permitam conjugar os conceitos de potentia e de potencialidade – estando este último atrelado à noção de objeto eterno, no esquema ontológico de Whitehead. Não custa lembrar que o objeto eterno é um correlato ontológico da ideia platônica, compartilhando com esta o mesmo estatuto de realidade atemporal.

Neste ponto, é necessário esclarecer que tanto a ideia platônica quanto o objeto eterno whiteheadiano são reais. Contudo, ser real não tem o mesmo significado que ser atual. O atual realiza-se no mundo concreto. Já a ideia e o objeto eterno são reais no sentido de que existem apenas segundo um ponto de vista ontológico.

Por analogia, a potentia heisenbergiana desfruta do mesmo estatuto ontológico da ideia platônica e do objeto eterno whiteheadiano. Ela também pode ser pensada como uma realidade atemporal. Portanto, quando Heisenberg declara que a potentia é um estranho tipo de realidade física entre a possibilidade e a realidade (2007, p.15), isto é, uma tendência objetiva para algo vir a ser, ele a situa em uma dimensão atemporal, caracterizada por seu aspecto formal.

Interessa-nos agora expandir a ideia de potencialidade, examinando-a na ontologia de Whitehead, para depois compará-la com a noção de potentia em Heisenberg. O primeiro ponto a ser discutido diz respeito ao aspecto formal do conceito de potencialidade, logo, a sua dimensão atemporal.

Para iniciar o nosso exame da ideia de potencialidade, na filosofia do organismo de Whitehead, precisamos entender o tipo de realidade que ela representa ontologicamente. Cobb Jr. explica os diferentes termos usados por Whitehead para se referir aos objetos eternos:

O próprio Whitehead fornece os seguintes termos equivalentes: "potenciais puros para a determinação específica de fato" e "formas de definição". Às vezes ele usa o termo "possibilidade abstrata" e os estudantes muitas vezes fazem o contraste entre os objetos eternos como possibilidades puras e as entidades reais como possuindo realidade completa. No entanto, geralmente Whitehead associa a possibilidade com algo que realmente pode ocorrer. É melhor ficar mais próximo da sua linguagem. Objetos eternos são potenciais puros, e isso significa formas que poderiam, em princípio, caracterizar algo atual, mas que são, em sua natureza, indiferentes ao fato de que eles caracterizem, ou não, qualquer coisa atual (2008, p. 24, tradução nossa).

Gostaríamos de destacar nessa passagem a indiferença que, segundo Cobb Jr., é própria da natureza dos objetos eternos, no que diz respeito àquilo que eles possam caracterizar. Isto significa que os objetos eternos podem estar relacionados a entidades atuais, definidas no espaço-tempo como entidades concretas, ou que eles podem caracterizar entidades somente abstratas, que não venham a se atualizar jamais no mundo atual. Este último tipo de entidades pode ser exemplificado por um espaço de Calabi-Yau, utilizado na Teoria de Cordas para explicar a existência de dimensões espaciais extras, mas cuja expressão matemática não encontra uma entidade atual correlata no espaço-tempo quadridimensional.

Estejam relacionados ou não a entidades atuais, os objetos eternos são entidades abstratas. Eles existem fora do tempo. E assim como as formas ideais de Platão, os objetos eternos só podem ser conhecidos conceitualmente. Este é o significado da expressão “possibilidade abstrata”, utilizada por Whitehead. Cobb Jr. nos alerta quanto a um possível equívoco na compreensão da ideia de abstração tal como o filósofo inglês a utiliza para falar dos objetos eternos.

Às vezes, os objetos eternos são explicados como abstrações. Isto também pode ser enganoso. Sugere que o seu estado inicial encontra-se nas coisas atuais e que só existem lá ou quando os abstraímos destas.  Tal abstração certamente ocorre, mas não tem efeito sobre o caráter ou a condição de um objeto eterno. No entanto, dizer que eles são totalmente abstratos pode ajudar (2008, p. 25, tradução nossa).

Cabe lembrar que os objetos eternos são preendidos conceitualmente em um processo de concrescência. Como afirma Ann Plamondon, “[...] o dado de uma preensão conceitual é um objeto eterno no seu aspecto de pura potencialidade – em sua capacidade geral para a determinação, mais do que como um determinante realizado da atualidade” (1979, p. 32, tradução nossa).

Em Process and Reality (1985, p. 65), Whitehead distingue dois tipos de potencialidades: as gerais e as reais. As potencialidades gerais são os feixes de possibilidades, mutuamente consistentes ou alternativas, fornecidas pela multiplicidade de objetos eternos. As potencialidades reais são condicionadas pelos dados fornecidos pelo mundo atual. “A potencialidade geral é absoluta, e a potencialidade real é relativa a alguma entidade atual, tomada como um ponto de vista pelo qual o mundo atual é definido” (Ibid., p. 65).

A partir dessa distinção entre potencialidade geral e potencialidade real, passaremos a considerar a ideia de potentia em Heisenberg. O nosso objetivo é mostrar que essa divisão também pode ser encontrada na distinção que Heisenberg faz entre a potencialidade diante de um arranjo experimental e a potencialidade entre dois arranjos experimentais. Começaremos a nossa demonstração partindo da ideia matemática da função de probabilidade. Vejamos o que o físico alemão nos diz sobre esse assunto:

Quando a função de probabilidade, na teoria quântica, foi determinada no tempo inicial da observação, pode-se calcular, a partir das leis da teoria quântica, a função de probabilidade em qualquer tempo posterior, e pode-se, assim, determinar a probabilidade de uma medição dando um valor especificado da quantidade medida. Podemos, por exemplo, prever a probabilidade de encontrar o elétron em um tempo posterior, em um determinado ponto da câmara de nuvens. Entretanto, é preciso enfatizar que a função de probabilidade não representa em si mesma uma série de eventos no curso do tempo. Ela representa uma tendência para os eventos e para o nosso conhecimento dos eventos. A função de probabilidade só pode se conectar com a realidade se uma condição essencial for cumprida: se uma nova medição for feita para determinar certa propriedade do sistema. Somente então a função de probabilidade nos permite calcular o resultado provável da nova medição (HEISENBERG, 2007, p. 20, tradução nossa).

Do que foi dito acima sobre a função de probabilidade devemos reter duas ideias. A primeira é que a função de probabilidade representa uma tendência para os eventos e o nosso conhecimento deles. A segunda, concerne ao fato de que a função de probabilidade só se conecta à realidade quando uma segunda medição é feita. Essas duas ideias podem ser esclarecidas se continuarmos atentos àquilo que Heisenberg nos comunica sobre a interpretação teórica de um experimento.

A interpretação teórica de um experimento requer três passos distintos: (1) a tradução da situação experimental inicial em uma função de probabilidade; (2) o acompanhamento dessa função no curso do tempo; (3) a declaração de se fazer uma nova medição do sistema, cujo resultado pode ser então calculado a partir da função de probabilidade. Para o primeiro passo o cumprimento das relações de incerteza é uma condição necessária. O segundo passo não pode ser descrito em termos dos conceitos clássicos; não há descrição do que acontece ao sistema entre a observação inicial e a próxima medição. É apenas no terceiro passo que mudamos outra vez do “possível” para o “atual” (Ibid., p. 20-21).

No primeiro e no terceiro passos a função de probabilidade encontra os seus correlatos nos conceitos clássicos. No primeiro passo, por exemplo, podemos definir o arranjo experimental de acordo com o observável que desejamos medir: a posição, o momento, o momento angular, a energia etc. Mas, uma vez que se define o observável do sistema que se quer medir, segundo as relações de incerteza, a função de probabilidade passa a ser escrita em função desse observável, fazendo com que seja impossível obter medições simultâneas. Isto significa, também, que quanto mais conhecimento o experimentador passa a ter sobre um observável, menos conhecimento ele obtém sobre os outros observáveis do sistema, ou sobre o sistema total.  É neste sentido que a função de probabilidade na qual se traduz o arranjo experimental inicial exprime uma tendência para os eventos e para o nosso conhecimento dos eventos.

 No terceiro passo, quando uma nova medição é realizada, a função de probabilidade, escrita de acordo com o arranjo experimental inicial, passa novamente a descrever um observável do sistema passível de ser traduzido em linguagem clássica. Além do mais, o conhecimento que se adquire sobre esse observável do sistema só podia ser expresso de maneira probabilística, antes da medição.

Mas o problema da medição quântica encontra-se na descrição do que acontece entre duas medições. Vejamos o que Heisenberg diz a esse respeito:

Uma dificuldade real na compreensão dessa interpretação surge, todavia, quando se faz a famosa questão: mas o que acontece “realmente” em um evento atômico? Foi dito anteriormente que o mecanismo e os resultados de uma observação podem ser sempre afirmados em termos de conceitos clássicos. Mas o que se deduz a partir de uma observação é uma função de probabilidade, uma expressão matemática que combina afirmações sobre possibilidades ou tendências com afirmações sobre o nosso conhecimento dos fatos. Então não podemos objetificar completamente o resultado de uma observação. Não podemos descrever o que “acontece” entre esta observação e a próxima (2007, p. 24).

Neste ponto, consideramos que a intervenção do esquema ontológico de Whitehead ser-nos-á útil para tentar compreender a dificuldade apontada por Heisenberg. Em primeiro lugar devemos ter em mente a ideia de que a função de probabilidade expressa uma possibilidade ou uma tendência. Isto significa dizer que a função de probabilidade representa uma potencialidade do sistema observado. Sabemos que a função de probabilidade é escrita a partir do arranjo experimental inicial, depois de o experimentador decidir o observável a ser medido no experimento e depois de a medição ser realizada. Portanto, a potencialidade que se exprime na função de probabilidade é condicionada pelos dados fornecidos pelo arranjo experimental, o que na linguagem ontológica de Whitehead corresponde à potencialidade real. Isto se dá porque o aparato de medida pode ser concebido como uma ocasião atual que define o tipo de potencialidade a ser atualizada pelo processo de medição.

Quando Heisenberg afirma que a função de probabilidade combina afirmações sobre possibilidades ou tendências com afirmações sobre o nosso conhecimento dos fatos, de um ponto de vista whiteheadiano, podemos concluir que a função de probabilidade descreve dois modos de preensão distintos. Uma preensão física, feita pelo aparato de medida, e uma preensão conceitual, realizada pelo observador.

Por outro lado, a incapacidade de se descrever o que acontece entre duas observações deve-se, primordialmente, ao fato de estarmos diante de uma potencialidade geral, definida por Whitehead como absoluta. Neste caso, todos os observáveis do sistema encontram-se em potentia, ou seja, permanecem indeterminados em relação ao mundo atual, como puras potencialidades.

Em ambos os casos as potencialidades são atemporais. No entanto, a potencialidade real tende a ingressar no mundo atual por intermédio do processo de observação, constituindo o que se convencionou chamar de colapso da função de onda. Assim, a passagem do potencial ao atual equivale ao ingresso do atemporal no tempo. O que nos remete à filosofia de Platão, tão cara a Heisenberg e a Whitehead.

Em Platão, as formas ideais participam do mundo sensível unindo-se à matéria. No Timeu, o filósofo da Academia concebe um enigmático receptáculo ao qual dá o nome de khora (χώρα). No diálogo platônico as referências à khora são sempre vagas e imprecisas. Ele afirma que basta se admitir três gêneros: “o que devém, aquilo em que isso devém, e o modelo à cuja semelhança se originou o que nasceu” (2001, p. 90). Jayme Paviani, ao analisar o significado do termo khora, diz que ele “[...] pode significar ‘região ocupada’, ‘lugar’, ‘espaço’. Pode-se dizer que khora determina a materialidade e a espacialidade das coisas que podem ser percebidas no mundo e que estão sujeitas à geração” (2001, p. 145). A khora não é nem sensível, nem inteligível. Ela pertence a um terceiro gênero.

É interessante notar que Heisenberg não menciona a khora quando escreve sobre o Timeu. Ele está mais interessado nos aspectos matemáticos da teoria platônica, mesmo quando trata de questões como a dos componentes mínimos da matéria. O seu foco concentra-se na possibilidade de extrair de Platão uma ontologia formal, capaz de se adequar ao formalismo quântico da interpretação de Copenhague. Talvez por isso encontre tanta dificuldade em lidar com o aspecto ontológico da teoria quântica, ainda que consiga descortinar o problema pelo viés gnosiológico.

Não obstante, Heisenberg lança a questão. A sua ideia de potentia, concebida como uma tendência objetiva para que um evento ocorra, inscreve-se no âmbito da ontologia, até porque ele mesmo a descreve como um estranho tipo de realidade entre uma possibilidade e um evento real. Ou seja, a potentia, assim como a khora pertence a um terceiro gênero. As possibilidades existem fora do tempo, mas são conceitualmente preensíveis. Os eventos ocorrem no mundo atual, e as suas preensões são físicas. Assim, resta a potentia como algo intermediário entre o conceitual e o real (atual), como a khora platônica.

Novamente vamos recorrer a Whitehead para nos ajudar a entender a correspondência entre a potentia e a khora. O curioso é que em seu principal livro, Process and Reality, onde o pensador britânico apresenta as bases da sua filosofia do organismo, a partir de um esquema ontológico com forte influência do pensamento platônico, o conceito de khora sequer é citado. Somente mais tarde, em Adventures of Ideas, Whitehead sentirá a necessidade desse conceito, “[...] para completar a sua descrição da unidade harmoniosa de todos os devires” (PARK, 2011, p. 209, tradução nossa).

Contudo, o conceito de khora em Whitehead não se assemelha ao de Platão. A principal diferença reside no fato de que a Khora platônica é excessivamente passiva, concebida como receptáculo, ela não possui uma dinâmica interna, enquanto Whitehead a concebe ativa e dinâmica, enfatizando o avanço criativo. “Assim, o ser estático e eterno de Platão torna-se o Eros divino em Whitehead para atrair as coisas para as suas atualizações. Então, a criatividade surge quando a Khora e o Eros divino estão unidos” (Ibid., p. 207, tradução nossa). Portanto a khora, segundo Whitehead, é o lugar da criatividade. Na khora, o processo de concrescência ganha a sua dinâmica por intermédio da atualização das potencialidades. Ela é uma matriz natural de todas as coisas (WHITEHEAD, 1967, p. 134).

Na khora, o universo disjuntivo, representado pela multiplicidade, encontra-se conjuntivamente unido na concrescência de uma entidade atual. Mas como adverte Park,

[...] o universo whiteheadiano é sempre e já o pluriverso, pois o universo de cada entidade atual paira sobre os outros. Assim, para alcançar a harmonia das harmonias, o universo whiteheadiano ainda precisa de algo para colocar todas as atualidades juntas. Aqui, Whitehead introduz a Khora para a Harmonia.  A necessidade da Khora é devido à estrutura celular de cada entidade atual. Em outras palavras, quando cada atualidade tem o seu próprio universo e forma sua subjetividade singular, a interconexão entre elas não elimina a individualidade de cada uma delas. Assim como a unidade celular não garante uma unidade no nível do organismo, a integridade de cada ocasião atual não necessariamente prova a unidade das sociedades (Ibid., p. 207, tradução nossa).

A khora, então, é a integração criativa entre o múltiplo e o um, entre o universo disjuntivo e o universo conjuntivo. De acordo com Park, “Whitehead exemplifica dois loci da Khora: o continuum extensivo e a identidade pessoal” (Ibid., p. 207, tradução nossa). Para a nossa finalidade de pensar a potentia heisenbergiana como khora, vamos nos ater apenas ao primeiro destes loci, a saber, o continuum extensivo.

 O continuum extensivo designa, no pensamento de Whitehead, o que a maioria dos físicos chama de espaço-tempo. Contudo há certas peculiaridades no conceito whiteheadiano do continuum extensivo que devem ser esclarecidas.

A razão pela qual Whitehead usa um termo técnico diferente é que quando dizemos espaço-tempo, trazemos conosco as conotações que esses termos sustentaram por séculos, enquanto ele acha que precisamos repensá-los de maneira mais fundamental. O espaço-tempo pode ser entendido como tendo uma existência independente dos acontecimentos, sendo, então, o lugar onde os acontecimentos surgem. Whitehead rejeita essa ideia. O espaço-tempo de Einstein tem propriedades físicas tais como a curvatura. O continuum extensivo de Whitehead como potencial ao invés de real é abstrato demais para ter essas propriedades. Seu pensamento sobre isso é informado por seu trabalho em geometria, e não é fácil para aqueles que não são versados em matemática apreciá-lo totalmente. Na parte IV de Processo e Realidade, Whitehead desenvolve definições dos elementos geométricos a partir das características da ligação extensiva. As relações extensivas permeiam nossa experiência. As ocasiões atuais podem ser analisadas de forma coordenada nas suas preensões ou geneticamente nas fases de concrescência Mas elas não podem ser fisicamente divididas nestas ou quaisquer outras partes. Isto significa que o que é atual não é um continuum. Ele é composto de ocasiões atuais, cada uma das quais tendo extensão definida. No entanto, estas se encontram "conectadas extensivamente". Essas conexões extensivas não são atualidades, mas são potencialidades realizadas pelas ocasiões atuais. Estas potencialidades não são atômicas da mesma forma que as ocasiões atuais que as realizam. Ao contrário, elas constituem um continuum. Este é o continuum extensivo. A existência do continuum extensivo depende da existência das ocasiões atuais, mas dada a sua atualidade, o continuum extensivo constitui uma restrição a todas as ocasiões futuras. Elas devem existir em ligação extensiva com as ocasiões passadas e presentes e umas com as outras. O mundo que conhecemos é quadridimensional. No entanto, esta forma de dimensionalidade é uma característica contingente. Talvez a própria dimensionalidade seja contingente. O que é necessário para o continuum extensivo é apenas que todas as ocasiões estejam relacionadas extensivamente (COOB JR., 2008, p. 76-77, tradução nossa).

O mundo atual não é contínuo, mas atômico. Cada ocasião atual representa uma região do continuum extensivo. Este, por sua vez, é o resultado de uma percepção sensível, à qual Whitehead dá o nome de “imediatez presencial”. Neste modo de percepção o mundo atual é preendido conscientemente como um continuum de relações extensivas (WHITEHEAD, 1985, p. 61). As ocasiões atuais possuem uma duração temporal que caracteriza a sua atomicidade. O contínuo, portanto, é atemporal. Como tal, não pode ser entendido como uma atualidade, mas sim como uma potencialidade. Portanto, enquanto potencialidade, o continuum extensivo torna-se a condição necessária para as ocasiões atuais virem a ser no mundo atual. O continuum extensivo como o receptáculo é potencialidade para regiões em si, o que significa a sua divisibilidade (NOBO, 1986, p. 208). Mas, por outro lado, as ocasiões atuais, compreendidas como regiões do continuum extensivo, tornam-se condição necessária para a “imediatez presencial” do continuum extensivo. Esta é uma característica fundamental da filosofia do organismo de Whitehead, que estabelece o seu caráter relacional.

 A khora seria o sustentáculo das ocasiões atuais no continuum extensivo. Ela contém em si as ocasiões atuais, mas ela mesma não possui nenhuma forma. Como afirma Whitehead, a khora não é abstraída a partir das ocasiões atuais (1967, p. 134).

De tudo o que foi dito acima, podemos deduzir que a khora é o elemento essencial para o devir das ocasiões atuais. Ela atua entre as potencialidades e as atualidades, introduzindo a dinâmica criativa no processo de concrescência das ocasiões atuais. De certa maneira pode-se designar a khora como a própria criatividade, e não apenas como uma instância da criatividade. A instância máxima da criatividade, para Whitehead é Deus. Então, a khora pode ser concebida como o receptáculo de toda geração, ao mesmo tempo em que é a causa eficaz da atualização das potencialidades.

Em que medida o conceito de potentia elaborado por Heisenberg pode ser atrelado à ideia de khora, tal como Whitehead a entende? Não podemos nos esquecer do viés quantitativo que Heisenberg lhe imprime, ao contrário da concepção qualitativa existente em Aristóteles. Uma possibilidade de se pensar a potentia quantitativamente implica a construção de uma ontologia formal. Essa ontologia formal deve estar de acordo com o formalismo matemático da teoria quântica.

Ronde (2012) tenta enfrentar essa questão, propondo o conceito de “potencialidade ontológica”. Ele parte de uma interpretação modal da teoria quântica que não considera o colapso da função de onda como uma interação física. “Ao contrário das interpretações ortodoxas, as interpretações modais mantêm a superposição no nível da possibilidade independentemente de qualquer atualização particular” (RONDE, 2012, tradução nossa). Ainda de acordo com Ronde, “negar o colapso, não só rompe a relação causal entre o possível e o atual, mas também determina o corte entre dois níveis descritivos: o possível e o atual”. No entanto, ele ressalva que não se trata de abandonar o atual em proveito único do potencial, mas de pensar a relação entre o atual e o potencial de uma maneira diferente.

De acordo com a nossa posição, as superposições são expressões matemáticas de um existente na teoria que deve ser explicado a partir de um conceito adequado. Sustentamos que, assim como a atualidade, a potencialidade remete a um modo de existência do mundo. O atual pode ser entendido então como uma expressão particular do potencial, onde cada efetuação nos explica ou nos dá a conhecer algo sobre aquilo que existe no modo de ser potencial. Acreditamos que o âmbito do potencial pode permitir a consideração e o desenvolvimento de conceitos que possibilitam dar conta do formalismo quântico de forma coerente (RONDE, 2012, s/p, tradução nossa).

Do ponto de vista de Ronde, a função de probabilidade não apenas pode, como deve ser entendida como a expressão ontológica de um existente na teoria quântica, o que poderia muito bem corresponder à ideia de potentia em Heisenberg. Infelizmente, a abordagem de Ronde, ao deixar de lado as relações causais entre as atualidades e as potencialidades, contraria a noção da khora whiteheadiana, concebida como causalidade eficaz para o processo de atualização das potencialidades em um processo de concrescência. Contudo, resta uma possibilidade de se manter o caráter relacional da concepção whiteheadiana na proposta feita por Ronde. Pois, ao pensar o atual como uma expressão particular do potencial, Ronde toma um caminho semelhante ao que Whitehead, via Platão, já havia percorrido. Para o filósofo inglês os objetos eternos são puros potenciais para a determinação específica do fato. A relação causal entre os objetos eternos e as ocasiões atuais tem a ver com aquilo que Whitehead denomina “potencialidade real”, determinada pelos dados do mundo atual. Mas existe a potencialidade geral, quando se considera o feixe de possibilidades constituído pela multiplicidade de objetos eternos, fora de qualquer relação com o mundo atual. Este último caso pode ser a chave para aproximar a interpretação de Ronde da filosofia do organismo de Whitehead.

Além disso, na argumentação de Ronde a favor da potência como um modo do existente independente do atual, encontramos a ideia de que “a potencialidade ontológica permite considerar um âmbito independente do espaço-tempo” (2012, tradução nossa). Para ele “[...] as superposições quânticas não são suscetíveis de ser interpretadas em termos do espaço e do tempo [..]”. Neste ponto parece que há uma aproximação entre as concepções de Ronde e de Whitehead. Sabemos que, para o filósofo inglês, o continuum extensivo é mais abstrato do que o conceito einsteiniano de espaço-tempo, ao qual se refere Ronde. Dessa maneira, é bem plausível conceder ao continuum extensivo o lugar das superposições quânticas. Ou seja, a khora, pode ser o “conceito adequado” que Ronde procura para a explicação das superposições quânticas enquanto um existente na teoria.

Se a khora for admitida como a instância de explicação do existente potencial, possuindo ela uma expressão matemática, podemos lhe atribuir o status de conceito chave da teoria quântica, capaz de fazer a integração entre o formalismo matemático e a compreensão ontológica das potencialidades. Assim, preservar-se-ia a concepção quantitativa da potentia, de Heisenberg, assimilando-a a ontologia de Whitehead, permanecendo o seu caráter formal, garantido pela filiação de ambos à filosofia de Platão.

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