A Justiça em Aristóteles: notas preliminares para estudo em Filosofia do Direito 

Gisele Mascarelli Salgado

pós-doutora em Direito pela FD-USP, doutora e mestre em Filosofia

do Direito pela PUC-SP, bacharel em Direito e Filosofia 

Resumo: Este trabalho pretende trazer um roteiro inicial para estudo do conceito de justiça, como diké, em Aristóteles através do livro V da Ética a Nicômaco

Sumário: Introdução, 1. Concepção de justiça em Aristóteles, 2. Justiça como ética ou política; 3. Diferentes concepções de justiça; 4. Fim da justiça; 5. Justiça e ordem judiciária; Bibliografia

Palavras-chave: Filosofia do Direito, teoria da Justiça, Aristóteles

Introdução

            Este trabalho pretende abordar o conceito de justiça, ou melhor, de diké, em Aristóteles através do livro V da Ética a Nicômaco. O objetivo desse trabalho é apontar, e apenas isso, que Aristóteles não apresenta só um, mas vários conceitos de justiça, e que o de justiça política é o que mais se aproxima ao que usamos no âmbito do Direito, ou melhor, o conceito de justiça aristotélico empregado no livro Ética a Nicômaco é um dos vários conceitos de justiça, e que esse conceito tem diversos significados.

Muitos dos estudos que tratam das obras de Aristóteles concederam-no como um 'velho conhecido', já que todo em geral tem uma vaga ideia de Aristóteles assim como tem, por exemplo, de Platão.  Porém é necessário observar que o contexto histórico que estava inserido nosso pensador era muito diferente do nosso e muitos séculos nos separam.  Por isso não se deve entender a obra de um grande pensador isoladamente; nem do seu contexto histórico, nem do contexto filosófico com que dialogava, nem fora do próprio sistema filosófico desse autor.

            No caso de Aristóteles como de muitos outros pensadores antigos, além da dificuldade temporal causada pelo nosso distanciamento da obra, há o problema do léxico que o autor utilizava e também o da língua, no caso o grego. Por possuir certas particularidades a língua grega antiga não permite uma tradução literal para o português sem perdas significativas, por isso neste pequeno texto além de se utilizar uma tradução para o português direto do grego, procurou-se na medida do possível verificar algumas palavras chaves no original, para que o sentido destas não fosse totalmente perdido.

            Outra dificuldade de se lidar com um texto antigo, é que ele não pode ser considerado obra e, portanto, pensamento de um só autor, só de Aristóteles, por exemplo. Ele é fruto de uma série de colagens, o texto é uma reelaboração do pensamento do autor original. Muitas vezes se utiliza diversos compiladores para se montar um texto. Por isso deve-se ter cuidado para não considerar o texto como material consolidado, mas sim entender suas possíveis mutações, e o que estas possam ter influenciado no conteúdo do texto.

           

1. Concepção de Justiça em Aristóteles

            A palavra utilizada por Aristóteles para designar justiça é díke, pode ser traduzida como justiça, porém esta é uma daquelas palavras gregas que carregam consigo um significado amplo e suas nuances permitem entendem melhor o que Aristóteles estava falando em seus textos. A definição aqui exposta sobre díke é a definição dada por Marilena Chauí:

"Inicialmente, díke significa: uso, maneira ou modo de ser e de agir, à maneira de, ao modo de, costume. A seguir, o uso e o modo de ser ou agir se torna uma regra de conduta, a norma correta de ser e agir, ganhando assim, o sentido jurídico de certo, justo, conforme às leis e ao direito, donde: justiça. Por extensão, refere-se ao processo judiciário ou ao julgamento de uma ação para saber se está ou não conforme à justiça, à lei, ao direito. No plural, significa a consequência de um julgamento: decreto, punição, recompensa. A função de díke é impor uma regra de equilíbrio entre os seres e punir a transgressão da regra. Estabelece uma medida justa para avaliar o modo de ser e de agir dos homens e, a seguir, por extensão, é vista  como impondo medida a todas as coisas do mundo (natural e humano). A palavra díkaios significa: o que está conforme à regra, o que é conveniente e adequado ao direito; honesto, justo legítimo, tratamento merecido, castigo merecido. Por extensão, refere-se a tudo o que se realiza em conformidade com uma regra (um escritor pode ter díkaios, um cavalo pode ser díkaios, um juiz deve ser díkaios, etc). O oposto de díke é adikía: o que não está conforme à regra, à lei, ao uso, ao direito, à justiça, o injusto, o desmedido, o desequilibrado, o desnaturado..."[1].

            Outra definição possível é apresentada por Eduardo Bittar para quem díke é entendida como justiça, termo com inúmeras interpretações. Há ainda uma definição de justiça que é menos geral, e não mais díke, mas sim dikaiosýne, onde "justiça é entendida em seu aspecto subjetivo e individual como virtude; prática reiterada de atos de justiça"[2].

            É interessante lembrar que a palavra díke em grego arcaico também servia para designar outras palavras, como por exemplo, dobradiça (encaixe que permite o mover de portas). A palavra justiça estava associada à justeza, ou seja, perfeito encaixe entre duas partes. Aristóteles ao falar de justiça, tem em sua concepção uma noção diferente da justiça atual. Além disso, diferencia o que vem a ser justiça e o que vem a ser procedimento judiciário. Comentadores discutem se a justiça de Aristóteles estaria no campo da ética ou da política, e aqui pretende-se recuperar algumas dessas posições.

            Serão utilizadas duas obras de Aristóteles, Ética à Nicômaco (Ética à Nicomaquéia) e a Política. A dificuldade de se lidar com as obras de Aristóteles é imensa e muito disso vem da própria tradução das obras, que por mais que se esmerem não conseguem retratar a policromia da língua grega. Outra dificuldade vem do próprio conjunto da obra aristotélica, que foi escrita em diferentes fases da vida do filósofo, não havendo datação precisa destas. A datação na obra aristotélica é fundamental, pois Aristóteles reformula seu pensamento, escreve de diferentes maneiras o que já tinha escrito, o que pode gerar ao leitor desavisado uma compreensão de uma contradição interna insolúvel em suas obras.

Adota-se a datação provável de Marilena Chauí, onde as obras que pretendem ser aqui estudadas, estariam no segundo período dos escritos de Aristóteles, situando-se por volta de 335 à 332 a. C. Estas obras "que formam o sistema e a doutrina de Aristóteles e que constituem a primeira enciclopédia do saber ocidental e a única enciclopédia de tal proporção escrita por um só homem, são as obras acroamáticas, divididas em cinco grupos"[3]. Um desses grupos é formado pelos escritos dedicado à Ética e a Política, estando as éticas divididas em três: Ética à Eudemo, Grande Ética, e Ética à Nicômaco; e sendo a Grande Ética uma obra que muitos duvidam ser de Aritóteles.

            Estas obras são consideradas obras "esotéricas, isto é, obras para uso interno na escola"[4] de Aristóteles. São, portanto, notas de aula e não propriamente textos escritos por Aristóteles. A datação dessas três éticas apresenta problemas como quase todas as obras do filósofo. Kury sobre isto comenta:

"A ética maior, que quanto à sua doutrina poderia situar-se cronologicamente entre a Ética a Êudemos (geralmente considerada a versão mais antiga, e mas próxima do ensinamento de Platão, da doutrina moral de Aristóteles), e a Ética à Nicômaco (tida, embora não unanimemente, como a versão mais amadurecida e representativa do pensamento aristotélico), seria, segundo alguns estudiosos, uma compilação em geral em escala menor, por um peripatético da geração seguinte, baseada principalmente na Ética a Êudemos) e subsidiariamente na Ética a Nicômacos"[5].

            Ética a Nicômacos e Ética a Eudêmio apresentam livros em comum, e dentre eles está o dedicado à justiça. "É igualmente difícil de dizer por que razão as duas coleções apresentam três livros em comum. Estes textos 'comuns' tratam da justiça, das virtudes intelectuais, da bestialidade, da incontinência e do prazer"[6].

            Este trabalho pretende lidar em especial com o livro V da Ética à Nicômaco, por este tratar especificamente do tema da justiça, da díke. O mesmo capítulo também será visto na Ética à Êudemos, já que as duas éticas tratam do mesmo assunto, porém de uma maneira ligeiramente diferente.

            Para facilitar a consulta em qualquer tradução das obras de Aristóteles cita-se aqui a convenção internacional das obras de Aristóteles, sempre entre parênteses ao longo do texto, em que E.E. refere-se à Ética à Êudemos e E.N. à Ética à Nicômaco.

2.  Justiça como ética ou política ?

            A ética e a política fazem parte dentro do sistema aristotélico do conhecimento prático, pois elas mesmas indicam seu fim, mas ambas tem como finalidade o bem[7].  A ética e a política se referem à práxis, no entender de Marilena Chauí: "como algo propriamente humano, uma atividade que não produz algo diferente do agente e que tem como causa a vontade humana entendida como escolha deliberada, refletida e racional"[8].

            Entende-se aqui como ética, a ciência prática que "estuda a ação do homem enquanto alguém que deve ser preparado para viver na Cidade, estabelecer os princípios racionais da ação virtuosa, isto é, da ação que tem como finalidade o bem do indivíduo enquanto ser sociável que vive em relação com outros"[9], e Política enquanto uma ciência prática que "estuda a ação dos homens enquanto seres comunitários ou sociais, procurando estabelecer, para cada forma de regime político os princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade ou o bem comum. A política, ... é mais nobre e mais geral do que a ética, pois (para um grego)  o indivíduo só existe como cidadão (sua humanidade é sua cidadania) e por isso o 'bem propriamente humano' é trazido e conseguido pela política"[10].

            O tema da justiça é tratado por Aristóteles tanto na sua obra Ética a Nicômaco, como também na Política. Nesta em dois sentidos pelo menos, um como justiça significando Poder Judiciário e outra         como virtude (justo meio). Há diferenças portanto, do que Aristóteles quer dizer como justiça em uma obra e o que quer dizer em outra, isso ocorre muito devido à natureza dessas obras.

Anacronicamente, se pode dizer que na ética, Aristóteles está mais preocupado com a esfera privada e na política com a esfera pública, mas isso seria apenas uma classificação para fins didáticos, pois essa classificação estaria completamente errada se levada aos rigores do pensamento grego por não existir diferenciação entre uma esfera e outra, como ocorre modernamente. Pode-se também diferenciá-las pelo seu fim: a ética como obra que pretende que o homem busque a justiça e por fim último o bem, e a política como obra em que pretende guiar os homens ao bem.  O bem é visado por caminhos diferentes e apesar o bem de um não ser diferente do bem de muitos, de uma cidade, é diferente a forma de se atingir um ou outro, um é o bem da parte, outro o bem do todo, que não exclui o bem da parte.

3.      Diferentes concepções de justiça

            Aristóteles no livro V da Ética a Nicomaqueia trás diferentes concepções do que vem a ser justiça, podendo-se apontar algumas: a) é uma ação; b) é uma espécie de meio termo; c) "é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo"; c) é um termo que não tem só um significado; d) "justo, é aquilo que é conforme a lei e correto " 1129b; e) é "a mais elevada forma de excelência moral" 1130 a , pois visa o bem de quem a pratica e também o bem do próximo; f) "é o princípio de ordem de uma comunidade política".

No sentido de justiça, de justo, sendo aquilo que é conforme a lei, Aristóteles ressalta que este é medido pelo fim, ou seja, porque visam um determinado interesse, que é o bem.

"Em seus preceitos sobre todos os assuntos as leis visam o interesse comum a todas as pessoas, ou às melhores, ou às pessoas das classes dominantes, ou algo do mesmo tipo, de tal forma que em certo sentido chamamos justos os atos que tendem a produzir e preservar a felicidade, e os elementos que a compõem, para a comunidade política" (E.N., V, 1129 b,  capítulo 1, linha 15).

Aristóteles na primeira parte do livro V parece tratar de uma concepção de justiça genérica, ou melhor, de uma justiça strictu sensu; porém no item 2 do mesmo livro diz ser objeto da sua investigação  uma concepção de justiça mais restrita, ou seja, como parte da noção  excelência moral. Excelência moral que seria uma disposição irrestrita da alma em relação aos outros.

A diferença entre justiça e excelência moral é dada por Aristóteles como sendo uma diferença de excelência e uma diferença também de grau, pois uma seria gênero e outra espécie, porém parece não há diferença de natureza. A excelência moral também pode ser chamada de justiça e aí há a confusão entre a justiça em sentido lacto e a em sentido estrito.  Para Aristóteles uma está relacionada com o ganho (seja ele de dinheiro, honra, segurança) e outra está relacionada com ação do homem bom. (E.N., V, 1130 b). Aristóteles diferencia justiça, do justo.

Justiça em sentido amplo, ou seja, como gênero, é a excelência moral. Aristóteles aponta um exemplo deste tipo de justiça citando a lei. "... A maioria dos atos prescritos tendo em vista a excelência moral como um todo, de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral..." (E.E., V, 1130 b,  capítulo 1).

A justiça em sentido restrito apresenta diversas espécies e subespécies e Aristóteles apenas apresenta como exemplo algumas dessas espécies, justiça como distribuição de funções, dinheiro, benefícios; e justiça como função corretiva nas relações entre as pessoas. O que diferencia os diferentes tipos de justiça dado por Aristóteles, tanto em relação às espécies como em relação ao gênero e espécie é a função destas. A função é um critério de diferenciação dos conceitos de justiça.

A justiça em sentido restrito é um conceito relativo, relativo a pessoas e relativo às coisas. "O justo, portanto, pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para as quais ele é de fato justo são duas. E a mesma igualdade existirá entre as pessoas e as coisas envolvidas, pois da mesma forma que as últimas - as coisas envolvidas - são relacionadas entre si, as primeiras também o são" (E.N, V, 1131 a , cap. 3). Sendo assim o conceito de justiça restrita não é absoluto, mas sim relativo e dependente de proporção, que é uma "igualdade de razões".

A justiça que tem como função a correção das relações entre as pessoas podem ser de dois tipos: voluntárias e involuntárias. Cita a justiça distributiva e a justiça corretiva. Aristóteles proporciona um outro exemplo de justiça no sentido restrito, que é o de justiça distributiva. "O justo nesta acepção é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional" (E.N., V, 1131b, cap. 3). "A justiça distributiva não é uma proporção contínua, pois seus segundos e terceiros termos- alguém que recebe parte de alguma coisa e uma participação na coisa - não constituem um mesmo elemento". (E.N., V, 1131b, cap. 3).

A justiça corretiva pode ser voluntária ou involuntária, e é uma subespécie de uma das justiças em sentido restrito. A justiça corretiva se faz pela perda e ganho. A justiça corretiva involuntária é, por exemplo, aquela feita por um juiz que restabelece a igualdade onde antes havia desigualdade. A justiça corretiva voluntária é feita pela vontade das pessoas relacionadas, e pode implicar ou não no ganho e na perda. Um exemplo disso é o empréstimo sem juros, que causa perda para uma parte, e outro a compra e venda, que não implica perda nem ganho (compra e venda não implica ganho na visão aristotélica pois não se criou nada, não surgiu nada de novo, só foram trocadas coisas).

A reciprocidade não é sinônimo para Aristóteles, de justiça irrestrita, como era para o pitagóricos e "não se identifica com nem com a justiça distributiva nem com a corretiva" (E.N., V, 1132 b, cap. 5). Reciprocidade, aqui entende-se, a troca, uma permuta entre as pessoas de coisas, serviços. Aristóteles fala de reciprocidade proporcional.

O texto apresenta um resumo do que vinha sendo tratado até então. Por se tratar de aulas de Aristóteles que foram escritas por seus alunos, pode-se inferir que o trecho apresentado no item 1134a, é uma espécie de resumo, síntese do que vinha sendo dito, uma recapitulação para depois entrar em outro aspecto do tema. Aristóteles aponta algumas 'conclusões' a respeito da justiça: a) a justiça é a observância do meio termo e se relaciona com o meio termo, assim como a injustiça se relaciona com os extremos; b) a justiça se relaciona com o injusto que é o excesso do que é nocivo e a falta do que é útil, sendo o injusto, o contrário à proporcionalidade, c) "ação justa é um meio termo entre agir injustamente e ser tratado injustamente, pois no primeiro caso se tem demais e no outro se tem muito pouco" (E.N., V, 1134 a, cap. 5). O item a muito provavelmente trata da justiça em sentido amplo, o item b, de justiça no sentido restrito e o item c, da ação justa.

A ideia de uma obra que não foi escrita por Aristóteles, é dada entre outros aspectos por certas descontinuidades no texto. Terminado, a espécie de resumo do que estava sendo tratado até então, o texto apresenta um trecho que parece deslocado do restante. O trecho que compreende, "Mas já que agir injustamente não resulta necessariamente em ser injusto (...) mas comete o adultério, e assim por diante em todos os outros casos". Este trecho em 1134 a, é retomado segundo nota de Mário Gama Kury[11], em 1135 a 16, já no capítulo 8 do livro V.

Um outra hipótese para este trecho é que ele estaria desenvolvendo o que nós aqui denominamos item c, ou seja, a diferença entre ato, ação e o ser. Essa diferença que explicaria de acordo com o texto a possibilidade do agir injustamente sem ser injusto. A passagem é explicada através do seguinte exemplo: "um homem não é um ladrão, mas rouba, não é um adúltero, mas comete o adultério.." (E.N., V, 1134 a,  linha 16, cap.6).  Esta passagem não pode ser interpretada por si só, necessitando-se buscar uma explicação mais detalhada ao longo da obra, entre a diferenciação do ser e do agir. Esta diferença, colocada em outra parte da obra, poderia ser aqui só apontada, pois já foi ou será desenvolvida.

Aristóteles trata ainda de outro tipo de justiça, a justiça política. "A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma foça e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente" (E.N., V, 1134 b, cap.7). A justiça política tem como titular de seu exercício a lei, e como seu guardião o governante; por isso a justiça do senhor para o escravo, do pai para o filho, nem a justiça entre marido e mulher, não podem ser consideradas justiça política, pois são justiças entre pessoas que governam e são governadas, ou justiça doméstica.

A justiça política permite que haja justiça pela natureza, por mera convenção, e por decisões humanas. Aristóteles está particularmente interessado neste último tipo de justiça, isto porque, sua finalidade é o bem, e este bem diferentemente do bem platônico é um bem que deve ser construído, almejado, querido pelos homens, só podendo portanto ser alcançado pela ação e essa ação não é uma operação natural, mas juízos possíveis[12].

É em especial este conceito de justiça, o de justiça política, que interessa em especial o jurista, pois este é que abarca a parte legal, que tem relação com a lei. É a lei que determina em sua grande parte a justiça política.  Naquilo que não é natural, que é humano, que depende da ação do homem, é que a justiça política se dá pela lei. A lei também será para Aristóteles um instrumento para a busca do bem.

Deve-se atentar para que os atos de justiça e injustiça, em especial estes últimos só podem ser assim considerados se o agente agiu voluntariamente e não involuntariamente. Por voluntariamente, Aristóteles entende uma ação consciente e involuntário aquele ato praticado por uma ação inconsciente ou por ignorância, ou por compulsão, ou mesmo aquele ato não querido pelo agente. (E.N.,V, 1135 b, cap. 8)

Aristóteles passa no capítulo nove a tratar da justiça, porém agora se preocupando com aquele que a recebe, ou seja, com o paciente, com aquele que sofre a ação. Outra questão de Aristóteles é se o agente de ação injusta, poderia cometer injustiça para com ele mesmo (e termina este trecho afirmando que isso é possível - 1138 b).  Aristóteles aponta para a ação do agente para obtenção da justiça, afirmando que "as pessoas pensam que depende delas agir injustamente, e que, portanto, é fácil ser justo, mas não é..." (E.N., V, 1137 a, cap.9). Leva em conta, além da disposição da alma, a acidentalidade na ação praticada.

As ações humanas estão para Aristóteles no campo do contingente, do acidental, por três motivos principais, como destaca Marilena Chauí:

"...a) porque o homem tem uma vontade deliberativa para escolher a ação, b) porque a escolha se refere ao futuro e este é meramente possível e não necessário, c) porque a escolha é um ser misto, ou seja, possui um lado que segue a Natureza (a vontade racional, que é sua essência) e possui um lado que é também sua natureza (o apetite ou desejo próprio a todos os animais) , que pode contrariar sua verdadeira natureza racional; é por essa contrariedade e mesmo contradição entre os dois lados da natureza humana que a ética não pode ser teorética, embora, ao mesmo tempo, seja uma exigência para a felicidade humana"[13]

 Para Aristóteles não basta conhecer o que é justiça, o que é justo, pois estes não garantem que as pessoas cheguem ao fim último que é o bem. A justiça deve ser utilizada como um instrumento para a obtenção do bem. A justiça deve ser entendida como um instrumento e as pessoas devem aprender a manejá-lo, e aí se encontra a sabedoria, não em saber o que é justiça, mas saber como utilizá-la.

 A analogia utilizada por Aristóteles é a do médico e do remédio, onde para curar o doente não basta o médico saber o que é o tal remédio, pois para curar o médico deve saber como ministrar o remédio:

"..Ser covarde ou agir injustamente não consiste em agir desta maneira, a não ser acidentalmente, e sim agir desta maneira em decorrência de uma disposição da alma, da mesma forma que exercer a medicina e curar consiste não em usar ou não usar um instrumento cirúrgico, ou em usar ou não usar remédios, e sim em usar uns e outros da maneira certa" (E.N, V, 1137 b, linha 4, cap.9).

Aristóteles pretende ainda examinar o que vem a ser equidade e sua relação com o conceito de justiça. Equitativo para Aristóteles é definido por aquilo que: "embora seja melhor que uma simples espécie de justiça, é em si mesmo justo, e não é por ser especificamente diferente da justiça que ele é melhor do que o justo. A justiça e a equidade são portanto a mesma coisa, embora a equidade seja melhor" (E.N, V, 1137 b,  linha 30, cap.10)

A equidade é um problema que interessa em especial o jurista, pois ela é pensada a partir da justiça legal. O equitativo seria, portanto, "um justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal". O conceito de equidade aristotélica, ainda é o que muitos autores utilizam sem quase alteração, no direito atual.

Utiliza-se da equidade, "quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo que o próprio legislador diria se estivese presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão" (E.N., V, 1137 b, 41, cap.10).  A equidade é assim entendida como uma espécie de justiça e não uma disposição da alma.  As concepções de justiça em Aristóteles para Truyol Serra seriam:

"Em sentido lato, a justiça equivale ao exercício de todas as virtudes, com referência a outrem. Já aqui aparece uma nota essencial da justiça: a alteridade. Em sentido estrito, porém a justiça define-se como virtude ética particular, em que se dá, além da alteridade, a nota da igualdade. Na justiça se aplica e realiza o princípio da igualdade como fundamento da coesão e harmonia na vida social. Mas o princípio da igualdade pode ser aplicado de duas maneiras, originando-se por isso duas espécies de justiça: a justiça distributiva, por um lado, e por outro, a corretiva ou sinalagmática, que por sua vez se divide em comutativa e judicial... A doutrina completa-se com a equidade (epiekeia)"[14].

Uma outra síntese da justiça em Aristóteles, em especial na Ética, é dada por Allan:

"A justiça é classificada como uma virtude do caráter e é-lhe aplicada a teoria geral do meio-termo, embora com uma diferença. Mas, neste ponto, Aristóteles considera evidentemente impossível manter a separação entre a virtude moral e a excelência no julgamento que a acompanha. O ensaio de Aristóteles sobre a Justiça ocupa-se principalmente, não com a disposição moral para aceitar ou rejeitar o meio-termo, mas com várias operações para-matemáticas por meio das quais se calcula um meio-termo ou justo meio"[15].

Para Eduardo Bittar as categorias que Aristóteles teria apresentado para a questão  da justiça e da injustiça seriam : "1. justo total (díkaion nomimón), 2. justo particular (díkaion íson), 2.1 justo distributivo (díkaion dianemetikón), 2.2 justo corretivo (dirthótikon díkaion), 2.2.1 justo comutativo, 2.2.2 justo nas relações não voluntárias, 3. justo político (díkaion politikón), 3.1 justo legal (díkaion nómikon), 3.2 justo natural (díkaion physikón), 4. justo doméstico (oidonnomidón díkaion), 4.1 justo despótico (despotikòn díkaion), .4.2. justo conjulgal (gamikòn díkaion), 4.3. justo paternal (patrikòn díkaion)"[16].

 

4.      Fim da justiça

            O fim, o objetivo da justiça, assim como o objetivo de tudo é para Aristóteles alcançar o bem. "Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam" (E.N., I, 1094 a, 1, 1). O bem, portanto, não é algo que nos é dado pela natureza, mas sim depende da ação humana para ser conquistado.

 Os conceitos de justiça que Aristóteles apresenta em sua Ética, são conceitos de justiça que pretendem mostrar ao homem aquilo que é justiça, o que é justo, mas principalmente o que é injustiça e o que é injusto. A justiça e o justo são algo que devem ser buscadas, não são naturais, logo o homem deve dominar seus desejos, sua paixão, seus apetites para que seja justo e se tenha justiça.

"A tarefa da ética será educar nosso apetite-desejo para que evite o vício e alcance a virtude"; e virtude é "A medida entre dois extremos, a moderação entre dois extremos, o justo meio, nem excesso nem falta. Moderar, em grego, se diz médo, ação que impõe o médio/medida, méson. É uma ação-decisão de  impor limites ao que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar. A ética é a ciência da moderação ou, como diz Aristóteles, da prudência. A virtude é virtude de caráter educado pela moderação para o mesótes"[17]

Afastando o sentimento ou paixão (por natureza), a situação em que o sentimento ou paixão são suscitados (por contingência), o vício- excesso (por deliberação e escolha), e o vício- falta (por deliberação e escolha), chega-se a virtude que é o justo meio, e esta também pode ser por deliberação ou escolha[18]. Assim a paixão, não traz uma conotação cristã, não é nem boa, nem má. Para Aristóteles, "não nascemos bons, mas nos tornamos bons com os atos bons, pois atualizam nossa potencialidade para a razão e a felicidade"[19].

É no campo da função da justiça, e da ética em geral, é que pode-se ver como Aristóteles se afasta de Platão. "Poderá observar-se aqui  o abandono da teoria platonica das Ideias ou modelos de Justiça, Bem, Beleza, etc."[20]


5.      Justiça e ordem judiciária

            Aristóteles diferencia o que vem a ser justiça e o que vem a ser ordem judiciária, que é um dos órgãos de um governo. Há diversos tipos de justiça segundo Aristóteles, e as que mais se aproximam do conceito de justiça para o Direito, é a justiça legal, e de certo modo a justiça equitativa. A justiça legal se refere as leis que devem ser seguidas pelos cidadãos.

Há nos nossos dias uma confusão do que vem a ser poder judiciário e o que vem a ser justiça, e não são poucas as vezes que se ouvem pessoas falando, por exemplo, vou a Justiça do Trabalho. O que se busca na 'Justiça do Trabalho', por exemplo, não é justiça como Aristóteles define em seu livro V da Ética. Deve-se ter uma certa precisão nos termos, para não haver confusão nem tanto nos objetivos finais, que aristotelicamente seriam os mesmos: busca do bem, mas sim de como se faz isso.

Portanto a justiça está presente na Ética, como também na Política de Platão e não pode em especial o jurista, negligenciar este duplo caráter da justiça em Aristóteles. Há autores que ao escreverem para um público versado em Direito costumam esquecer ou dar menor importância ao caráter ético da justiça.

A justiça está no âmbito da ética, e visa o bem através da domesticação das paixões e dos desejos; a ordem judiciária está no âmbito da política, visa também o bem, mas é o bem da polis. Apesar de estar em âmbitos diferentes Aristóteles não enclausura as esferas de um e de outro, permitindo que a justiça da ética dê frutos na política.

Comentando sobre esta relação entre a política e a ética, diz Francis Wolff:

"Há, portanto, para Aristóteles, uma especificidade das coisas humanas. E, nesta esfera, há uma autonomia da política, especialmente em relação à ética. A 'filosofia das coisas humanas', segundo a expressão de Aristóteles (E.N, X, 10, 1181 b 15), tem seguramente um objeto uno, o humano enquanto tal, mas que pode ser focalizado de dois pontos de vista distintos, que são respectivamente adotados pelas duas obras que conhecemos com o nome de Ética a Nicômaco e de Política. A conduta dos indivíduos constitui a matéria-prima da ética, e a história das cidades com seus regimes constitui a da política. De uma para outra, há múltiplos laços, com sentido duplo: a política continua sendo, para Aritóteles - é ao menos o que ele afirma no início de sua Ética- a suprema ciência, da qual dependem o estudo e a efetivação do 'soberano bem'; o homem só pode realizar sua natureza de homem na e pela cidade. Inversamente, a cidade, quando digna desse nome, tem uma finalidade altamente moral, como Aristóteles não para de repetir na Política. Além do mais, a conduta individual somente poderia ser boa em geral com auxílio das leis da cidade, que mostram permanentemente qual é a regra e dispõem de um poder coercitivo quando falta virtude; reciprocamente, são necessários muitos legisladores virtuosos para dar boas leis à cidade. A ética, portanto, não é independente da política. E a política depende da ética em seu direcionamente tanto quanto em seus meios"[21].

Há uma diferenciação do que vem a ser justiça e o que vem a ser a ordem judiciária na obra de Aristóteles. Isto ocorre mesmo quando Aristóteles utiliza a palavra justiça em seu sentido legal, ou seja, empregando a palavra justiça para se referir ao campo do Direito. Pode-se dizer justiça legal ou justiça política, isto porque "é da opinião de alguns que o justo político (díkaion politikón) se resume ao justo legal (díkaion nomikón)"[22].

 Sobre a ordem judiciária na Política, Aristóteles procura verificar as espécie de tribunais e de juízes que são oito, fala da nomeação desses juízes e neste ponto há diferença na escolha dos juízes dependendo de que forma de governo se opte.

Aristóteles aponta cinco maneiras diversas de se compor os tribunais. "Destas maneiras possíveis de compor os tribunais, as duas primeiras são democráticas; os juízes são escolhidos dentre todos e para todas as matérias. Os dois modos seguintes são oligárquicos, pois os juízes são escolhidos de certa classe e tem uma competência universal. O último modo é o aristocrático ou republicano; os juízes são escolhidos dentre a universalidade dos cidadãos e, por outra parte, em tal ou tal classe" (Política, III, X)

Destas cinco maneiras ligadas a três formas de governo, somente a última se referiria a república e aí sim, forma de governo na acepção aristotélica da palavra, pois todas as outras são degenerações. "Essas três formas podem degenerar: a monarquia em tirania, a aristocracia em oligarquia, a república em democracia. A tirania não é, de fato, senão a monarquia voltada para a utilidade do monarca; a oligarquia, para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres" (Política, III, IX)

Bibliografia:

ALLAN, D.J. A Filosofia de Aristóteles. Lisboa, Editorial Presença, 1970.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos (trad. Mário da Gama Kury). 4 ed. UNB, Brasília,2001.

_____. A Política (Roberto Leal Ferreira). 2 ed.. São Paulo, Martins Fontes, 1998.

BARNES, Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. 2ed.. EUA,Cambridge Unisersity Press, 1999.

BITTAR, Eduardo. A justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles.  São Paulo, Brasiliense, 1994.

SERRA, A. Truyol. História da Filosofia do Direito e do Estado.(trad. Henrique Barrilaro Ruas) 7 ed., Portugal, Instituto de Novas Profissões, 1982.

WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política (trad. Thereza Strummer e Lygia Watanabe). São Paulo, Discurso Editorial, 1999.



[1] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 346

[2] BITTAR, E. A justiça em Aristóteles. p. 142.

[3] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 243

[4] KURY, Mário. Introdução à Etica à Nicômacos. p. 9

[5] KURY, Mário. Introdução à Etica à Nicômacos. p.10

[6] BODÉÜS, Richard. Aristóteles: o corpus. In: Construção da Filosofia Ocidental. p. 31

[7] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 309

[8] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 248

[9] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 249

[10] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 249

[11] Aristóteles. Ética a Nicômacos. (trad. Mario Gama Kury). p. 219

[12] sobre o conceito de bem em Aristóteles. CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 309

[13] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 311

[14] SERRA, A. Truyol. História da Filosofia do Direito e do Estado. p. 133

[15] ALLAN, A filosofia de Aristóteles. p. 164.

[16] BITTAR, E. A justiça em Aristóteles. p. 137

[17] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 312

[18] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 316

[19] CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. p. 313

[20] ALLAN. A filosofia de Aristóteles. p. 150

[21] WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. p.20

[22] BITTAR, E. A justiça em Aristóteles. p. 119