A JURIDICIDADE DAS RESOLUÇÕES DO BANCO CENTRAL: UM ESTUDO ACERCA DA LEGALIDADE DAS SANÇÕES IMPOSTAS PELO BANCO CENTRAL NO EXERCÍCIO DE SUA FUNÇÃO PUNITIVA

 

Yuri Gomes de Mesquita[1]

 

RESUMO

 

Este trabalho tem como objetivo analisar a constitucionalidade das resoluções do Banco Central no tocante as sanções impostas pela Lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro Nacional), por meio do estudo do referido texto normativo. Os atos normativos expedidos pelo Bacen possuem a função de suprir a tecnicidade exigida para a aplicação de leis que regulam relações bancárias. Desse entendimento surge a dúvida acerca do caráter de norma em branco de dispositivos complementados pelas resoluções do Bacen. Conclui-se que as Resoluções do Bacen possuem a função de prover  a tecnicidade a normas, mas não podem impor sanções, penais ou administrativas. Dessa forma, Resoluções que expandam a aplicabilidade do artigo 44 da Lei 4.595/64 são ilegais. No que toca a responsabilidade civil dos diretores de bancos, entende-se que o elemento subjetivo é essencial a responsibilização dos mesmos, tendo em vista a salvaguarda do interesse público. Assim, interpreta-se a norma com o objetivo de atender a sua função social de forma mais eficiente. Esse entendimento não busca somente a proteção do interesse público, mas também do próprio diretor de banco, que deve ser protegido pela garantia constitucional da presunção de inocência.

Palavras-chaves: Juridicidade, Resoluções do Banco Central, Legalidade, Responsabilidade civil dos diretores de bancos.

ABSTRACT

This paper aims to analyze the constitutionality of the resolutions of the Central Bank of Brazil regarding the sanctions imposed by Law 4.595/64 (National Financial System Law), through the study of such Law. The normative acts issued by the Central Bank have the function of supplying the technicality required for the application of laws which regulate banking activities. This understanding leads to the question concerning the laws complemented by the resolutions of the Central Bank of Brazil. We conclude that the resolutions of the Central Bank have the function of providing technicality to the standards, but cannot impose criminal or administrative penalties. Thus, resolutions that expand the applicability of Article 44 of Law 4.595/64 are illegal. Concerning the liability of the directors of banks, it is understood that the subjective element is essential for the accountability, aiming to safeguarding the public concernment. Thus, the rule is interpreted in order to meet its social role more efficiently. This understanding not only seeks to protect the public concernment, but also to protect the bank director, who must be safeguarded by the constitutional guarantee of the presumption of innocence.

Keywords: Juridicity, Central Bank Resolutions, Legal, Liability of banks directors.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

            O Direito Bancário Brasileiro apresenta-se como ramo do Direito Privado, mas com forte conotação pública, face ao reflexo da atividade bancária no interesse coletivo. Tratando-se de disciplina acerca de operações de banco, essa área jurídica possui caráter profissional. É chamado direito técnico por possuir um viés tecnicista, formalista, alinhando regras extraídas do comércio internacional.

Diante de tais características, que tornam essa área do Direito bastante específica, por tratar de operações bancárias, é de suma importância a atuação do Banco Central como controlador dessas relações, suprindo a necessidade de especificação técnica e formal que lhe é inerente.

O Banco Central vem gozando de maior autonomia no sistema financeiro nacional, com o advento da Emenda Constitucional n. 40, de 29 de maio de 2003, principalmente no que toca a sua consecução de natureza operacional. Fica evidente que essa autonomia crescente, que vem desvinculando a instituição das políticas macroeconômicas governamentais, atribui ao Banco Central um papel contingenciador e ao mesmo tempo preventivo de buscar debelar adversidades conjunturais.

            Com o surgimento de um modelo de Estado regulador, mais distante do modelo dirigista de até então, observou-se um afastamento entre o Direito Bancário e administrativistas. Esse fenômeno explica-se, em parte, pela criação de agências reguladoras, face ao enfraquecimento do controle estatal sobre a fiscalização bancária. Contudo, o Bacen, já existente quando dessa mudança estrutural, destoa do modelo de agências reguladoras, por conta de seu caráter autárquico.

            O modelo de Estado regulador, pautado na promoção do interesse público, na correção de falhas de mercado e na descentralização do poder normativo, permitiu o aumento da independência do Bacen como autarquia federal que atua na fiscalização bancária.

Nas palavras de Nelson Abrão: “Em suma, o papel crucial desenvolvido pelo Banco Central no monitoramento das instituições financeiras e na relevância que lhe é peculiar impõe uma tendência apta a lhe conferir, sob tal roupagem, típica responsabilidade objetiva, cujo Código do Consumidor, na inversão do ônus da prova, traçaria obrigação de reparar o dano cometido por ação ou omissão em relação a terceiros.”[2]

            A autonomia do Bacen encontra limite na sua subordinação ao Conselho Monetário Nacional, figurando aquele como executor das normas expedidas por este[3]. Normas estas que, nessa nova conjuntura retratada, são expressas em resoluções, circulares e cartas-circulares, tendo em vista o caráter técnico dos temas tratados por estes dispositivos.   

            Essa tecnicidade pauta a independência normativa do Bacen como instrumento do Poder Executivo, fazendo com que atue na fiscalização bancária, regulando comportamentos.

Esse papel foi conferido sob a influência do modelo americano, utilizado no ordenamento jurídico pátrio durante o Estado Novo e a partir de 1964. De acordo com esse método, em face da impossibilidade do Poder Legislativo de acompanhar diariamente as mudanças em determinada conjuntura, editando regras técnicas de cunho analítico, resolve esse impasse por meio da criação de órgãos executivos autônomos, aos quais a lei atribui poderes normativos específicos em determinados setores.

            Os atos administrativos exercidos pelo Bacen, contudo, encontram limites nos princípios constitucionais do devido processo legal e da legalidade.

            O ponto fulcral desse trabalho diz respeito exatamente aos limites que são impostos a essa independência técnica perante a hierarquia constitucional. O choque entre os atos normativos expedidos pelo Conselho Monetário Nacional e o texto constitucional merece análise mais pormenorizada.

 

2 A JURIDICIDADE DAS RESOLUÇÕES DO BANCO CENTRAL 

 

            O conceito de juridicidade, sem muito aprofundamento no tema, refere-se a legalidade com o objetivo de atingir os princípios da administração pública. Na condição de parte integrante da Administração Pública, o Banco Central deve estar adstrito ao princípio da legalidade, caso contrário, estar-se-ia incorrendo em uma situação de insegurança jurídica, pautada na confusão quanto ao conceito de “autonomia”. A Administração Pública é pautada na legalidade, como meio para garantir-se segurança jurídica e evitar excessos diante dos demais entes e dos particulares.

            Assim entende Claus Roxin:

“Primeiro: quanto à fundamentação do princípio da legalidade criminal e penal, Roxin pondera o que segue: o fundamento no qual ainda hoje se baseia o princípio da legalidade reside num postulado central do liberalismo político: a exigência de vinculação do Executivo e do Judiciário a leis formuladas de forma abstrata. A burguesia, em seu enfrentamento contra o absolutismo, tinha conseguido a importante conquista de que os governantes e os juízes (com frequência dependentes daqueles) não pudessem exercer o poder punitivo ao seu livre arbítrio (e em seu caso arbitrariamente) senão apenas na medida em que houvesse uma clara precisão legal daquela.”[4]

            O Bacen encontra-se em uma relação de sujeição geral diante dos demais, ou seja, os particulares aquele estão sujeitos de forma involuntária. Dessa forma, as sanções impostas, com fulcro no artigo 44 da Lei n. 4595/64, devem ser estritamente aplicadas sob o princípio da reserva legal, ou seja, não podem ser aplicadas por analogia. Assim preceitua o texto do dispositivo:

Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente:

        I - Advertência.

        II - Multa pecuniária variável.

        III - Suspensão do exercício de cargos.

        IV - Inabilitação temporária ou permanente para o exercício de cargos de direção na administração ou gerência em instituições financeiras.

        V - Cassação da autorização de funcionamento das instituições financeiras públicas, exceto as federais, ou privadas.

        VI - Detenção, nos termos do § 7º, deste artigo.

        VII - Reclusão, nos termos dos artigos 34 e 38, desta lei.

            O Superior Tribunal de Justiça entende que a aplicação das referidas sanções devem, sim, ser aplicadas de forma restrita. Por conta disso, não conheceu recurso especial interposto pelo Banco Central contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal, que entendeu que a conduta do agente não se enquadrou na previsão da letra “b” do §2º do artigo 44, da Lei 4.595/64, conforme segue:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. LEI Nº 4.595/64. DECRETO Nº 91.152/85. APLICAÇÃO DE MULTA SOBRE FATO TÍPICO. EXAME DE MATÉRIA FÁTICA E PROBATÓRIA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 07/STJ. 1. Ao STJ é vedado a análise de matéria fático-probatória, consoante a ratio essendi da Súmula 07/STJ. 2. Controvérsia acerca da adequação do comportamento de entidade para fins de aplicação de sanção de natureza administrativa . 3. Concluindo o aresto recorrido que:"(...) O comportamento atribuído ao apelante e ensejador da multa não se adequa ao preceito contido na letra b do § 2º do art. 44 da Lei nº 4.595/64. Daí porque, para a aplicação da sanção, a Administração se reporta não a Lei, mas sim a Portarias e Resoluções", a aferição da tipicidade do mesmo implica em análise fático- probatória, que foi decisiva para a conclusão do aresto recorrido, mas cuja verificação é interditada ao STJ pela Súmula 07. 4. Não conhecimento do recurso que mantém, após cognição ampla, a justiça da decisão, tanto mais que a sanção discutida é de duvidosa legalidade, porquanto imposta ao que parece, por normas de hierarquia menor do que a exigível in casu. 5. Recurso especial não conhecido

(STJ - REsp: 430536 RS 2002/0045720-0, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 28/06/2004, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 30.09.2004 p. 218)

            O julgado em apreço condensa o entendimento já apresentado no início desse trabalho, no tocante ao princípio da legalidade. Frise-se que, em face da “duvidosa legalidade” da sanção, imposta por normas de hierarquia inferior, não se aplica a mesma, tendo em vista a salvaguarda da segurança jurídica e o respeito incondicional ao princípio da legalidade.

             Em sua condição de autarquia federal, o Bacen, subordinado ao CMN, vem disciplinar o mercado financeiro nacional mediante o preenchimento das normas em branco contidas na Lei 4.595/64. As normas do Bacen possuem, assim, caráter essencialmente regulamentar.

            Assim dispõe a RESOLUÇÃO Nº 1.631/89:

R E S O L V E U:

I  -  Baixar o Regulamento anexo para a abertura e movimentação de contas de de-pósitos à vista.

II  -  Autorizar o Banco Central do Brasil a baixar normas e a adotar as medidas

julgadas necessárias à execução desta Resolução.

III  -  A  inobservância das disposições desta Resolução sujeitará as instituições fi-nanceiras e os respectivos administradores às penalidades previstas no artigo 44 da Lei nº 4.595, de 31.12.64.

            No tocante ao fornecimento da tecnicidade que é inerente ao Bacen, o mesmo ato normativo ainda dispõe:

CHEQUE COM IRREGULARIDADE

31  -  Erro formal (sem data de emissão, com o mês grafado numericamente, au-sência de assinatura, não registro do valor por extenso);

32 - Ausência ou irregularidade do carimbo de compensação;

33 - Divergência de endosso;

34 - Cheque apresentado por estabelecimento bancário que não o indicado no cru-zamento em preto, sem o endosso-mandato;

35 - Cheque fraudado, emitido sem prévio controle ou responsabilidade do estabe-lecimento bancário ("cheque universal"), ou ainda com adulteração da praça sacada;

            Assim, observa-se que a atuação do Banco Central é de suma importância, para regular a aplicação de normas concernentes a operações bancárias, provendo conhecimento sui generis.

           

3 A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 44 DA LEI 4.595/64

A constitucionalidade da Lei 4.595/64 pouco foi questionada pela doutrina e pela jurisprudência, tendo em vista o referido dispositivo haver editado normas em branco, cujo conteúdo deve ser preenchido pelas deliberações do Conselho Monetário Nacional, com suas resoluções, circulares e cartas-circulares. Assim, as resoluções não constituem meros atos administrativos regulamentares. Visam, na verdade, a preencher essas lacunas da lei, sendo expressão de técnica legislativa do direito econômico.

 

            3.1 Norma em branco

 

            Ponto controverso diz respeito ao artigo 44, da Lei 4.595/64. Muito se questiona se o referido dispositivo é, de fato, norma em branco, como os demais dispositivos da mesma lei.

            Passemos a análise do conceito de norma em branco. Mirabete assim entende:

“Referem-se os doutrinadores às chamadas normas penais em branco ( ou leis penais em branco). Enquanto a maioria das normas penais incriminadoras é composta de normas completas que possuem preceito e sanções integrais, de modo que sejam aplicadas sem a complementação de outras, existem algumas com preceitos indeterminados ou genéricos, que devem ser preenchidos ou completados. As normas penais em branco são, portanto, as de conteúdo incompleto, vago, exigindo complementação por outra norma jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria, etc.) para que possam ser aplicadas ao fato concreto. Esse complemento pode já existir quando da vigência da lei penal em branco ou ser posterior a ela.”[5]

A norma em branco pode ser classificada em homogênea ou heterogênea. É em sentido amplo, ou homogênea, a norma em branco que tem seu complemento na mesma fonte em que foi editada, a exemplo de lei complementando lei.

            Muito se questiona a constitucionalidade das normas em branco em sentido estrito, havendo corrente que afirma a inconstitucionalidade das mesmas, tendo em vista a possibilidade de uma norma penal ter seu conteúdo modificado sem o apreço necessário por parte da sociedade. Por não serem fruto de projetos de lei, os dispositivos que complementariam essas normas não passariam pelo crivo das Casas do Congresso.

            Corrente majoritária é no sentido de que não há ofensa ao princípio da legalidade quando a norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da conduta. Soma-se a esse posicionamento a percepção acerca da anterioridade do dispositivo que complementa a norma em branco, respeitando-se o princípio constitucional da legalidade. Segue esse entendimento Mirabete:

 “As leis penais em branco em sentido estrito não afetam o princípio da reserva legal, pois sempre haverá uma lei anterior, embora complementada por outra regra jurídica de outra espécie.”

3.2 Art. 44 da Lei 4.595/64 como norma penal em branco

 

            Divergência há, ainda, em relação ao artigo 44 do dispositivo em análise, no que toca ser o mesmo norma penal em branco ou não.

            O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não há que se falar em norma penal em branco. Entende a Corte Superior que o artigo 44 não necessita de complementação, estando todos os preceitos e sanções já determinados no texto normativo.

            Eis o entendimento do Ministro Francisco Falcão acerca do artigo 44 da Lei 4.595/64:

 “As  normas  penais  em  branco  possuem  o preceito  incompleto, vago,  necessitando  ser  complementado  por  outra  norma,  que  pode  ser  de categoria  inferior  (decreto,  portaria,  regulamento)  a  fim  de  incidirem  ao caso  concreto.  A  norma  penal  em  branco  é  indeterminada  quanto  ao  seu preceito  e determinada  quanto  à sua  sanção,  o que se  autoriza  a inferir  que não  se  pode  classificar  o  art.  44  da  Lei  nº  4.595/64  como  norma  penal  em branco.  Em  verdade,  o  art.  44,  caput,  dispõe  acerca  de  sanções,  as  quais são  indeterminadas,  uma  vez  que  outras  reprimendas  estabelecidas  na legislação,  além  das  elencadas  nos  incisos  I  a  VII,  poderão  ser  aplicadas, constatando-se  que  não  há  indeterminação  quanto  ao  preceitojá  que  este atinente  à sanção  multa  pecuniária  está  contido  no  parágrafo  2º do  art.  44 da Lei nº 4.595/64”. (STJ - REsp: 430536 RS 2002/0045720-0, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 28/06/2004, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 30.09.2004 p. 218)

            Depreende-se, da leitura do excerto de voto, que a norma penal em branco, para ter essa característica, deve ser indeterminada quanto ao preceito e determinada quanto a sanção. Conclui-se que, na norma penal em branco em sentido estrito, ou heterogênea, há um tipo penal incriminador que traduz os requisitos básicos do delito, havendo, também, um complemento normativo. Ao vincular o estabelecimento de outras sanções a outros dispositivos, o artigo 44 foge do conceito de norma penal em branco heterogênea.

            O Ministro Francisco Falcão complementa o entendimento:

“Da  simples  leitura  do  supracitado  dispositivo  legal concluímos  que  a  conduta  do  recorrido  não  se  enquadra  nas hipóteses  estabelecidas  pela  lei  e  o  argumento  utilizado  pelo recorrente  de  que  o  mencionado  dispositivo  é  norma  penal  em branco,  que foi complementada  por Resoluções  e Circulares,  não procede,  porquanto  no  mesmo  dispositivo  existe  previsão  legal expressa  restringindo  a  sua  complementação  ao  âmbito  da própria  Lei 4.595/64”.

            O posicionamento explicitado é no sentido de que, tendo a norma restringido a sua complementação a si mesma, não há que se considerar a leitura de Resoluções e Circulares para preencher as lacunas por ela deixada.

            Assim, depreende-se que o artigo 44 da Lei 4.595/64 não é norma penal em branco.

           

3.3 O poder punitivo sancionador do Banco Central

            A Lei 4.595/64 criou o Conselho Monetário Nacional, dispondo acerca de sua competência, bem como delimitando a atuação do Banco Central, impondo suas competências.

            Enuncia o artigo 10, IX, da Lei 4.595/64:

“Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central da República do Brasil:

IX - Exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas”;

Assim, o Bacen possui função fiscal e sancionadora sobre as instituições financeiras, diretores de bancos e outros sujeitos, conforme preceitua o caput do artigo 44:

“Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente:”

            Válido afirmar que as referidas sanções possuem caráter unicamente administrativo, o que quer dizer que somente a lei pode estabelecê-las.

            É esse o entendimento do STJ acerca do tema:

ADMINISTRATIVO - SANÇÃO PECUNIÁRIA - LEI 4.595/64. 1. Somente a lei pode estabelecer conduta típica ensejadora de sanção. 2. Admite-se que o tipo infracionário esteja em diplomas infralegais (portarias, resoluções, circulares etc), mas se impõe que a lei faça a indicação. 3. Recurso especial improvido.

(STJ - REsp: 324181 RS 2001/0061514-0, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 08/04/2003, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 12/05/2003 p. 250)

            A Ministra Eliana Calmon entendeu que somente lei pode estabelecer sanção administrativa. Assim, os atos normativos que não constituam lei formal, nesse caso, Resoluções e Circulares do Bacen,  não podem prever penalidades. Isso implica dizer que os referidos dispositivos só atuariam na imposição de sanções caso a conduta não se enquadrasse no artigo 44 da Lei, tendo em vista a mesma fazer referência expressa a si mesma como único dispositivo capaz de complementá-la.

            Assim enunciou:

“não se trata, no caso dos autos, de norma penal em branco, mas de norma puramente administrativo-econômico-financeira e não há empecilho a que o preceito sancionador da norma legal seja integrado por atos normativos infralegais, como a Resolução 905/84 e a Circular 237/74, ambas do BACEN, por se tratar de normas técnicas expedidas por autoridade legalmente competente, as quais serviram de base para dosimetria para aplicação das sanções em discussão”

            O cerne da questão gira em torno do cabimento ou não das normas infralegais quando da imposição das referidas sanções. Da análise do julgado, depreende-se que as Resoluções e Circulares do Bacen não podem impor sanções, mas podem integrar o ato normativo sancionador, no sentido de prover  normas técnicas suficientes para se proceder com a dosimetria da pena.

            Seguindo esse posicionamento, foi sancionada a CIRCULAR Nº 3.582, DE 9 DE MARÇO DE 2012, que assim dispõe:

“Art. 3º A penalidade de multa de que trata o inciso IV do art. 1º poderá ser aplicada em razão da ocorrência das seguintes infrações:

§ 1º A penalidade de que trata o caput terá por base as importâncias previstas nos contratos a título de despesa ou de taxa de administração, recebidas ou a receber.

§ 2º A multa será aplicada em até 100% (cem por cento) sobre a base apurada na forma do § 1º, para as pessoas jurídicas, e em até 50% (cinquenta por cento) para as pessoas físicas.

Art. 7º A soma das multas aplicadas à pessoa jurídica, em decorrência das irregularidades apuradas em um processo administrativo punitivo, não excederá a 25% (vinte e cinco por cento) do padrão mínimo de capital realizado ou do Patrimônio Líquido Ajustado (PLA) da administradora de consórcios, na forma do art. 6º da Circular nº 3.433, de 3 de fevereiro de 2009, obtido do último balancete disponível no Banco Central do Brasil na data da decisão do processo administrativo punitivo, prevalecendo o maior valor.”

            Pela leitura do excerto, observa-se que o ato normativo vem, na verdade, prover a tecnicidade que foge do alcance do legislador, estabelecendo porcentagens sobre as quais incidem a pena de multa. Contudo, a referida Circular, em nenhum momento, inova, com aplicação de pena.

            Conforme já exposto nesse trabalho, o Banco Central, por meio de seus atos normativos, possui a função de complementar as normas, fornecendo informações que fogem do alcance do Poder Legislativo, do ponto de vista técnico.

            Conclui-se que as resoluções do Bacen possuem a função de prover  a tecnicidade a normas, mas não podem impor sanções, penais ou administrativas. Dessa forma, resoluções que expandam a aplicabilidade do artigo 44 da Lei 4.595/64 são ilegais.

            No caso concreto do Recurso Especial julgado pelo STJ, foram desrespeitadas a Resolução 905/84 e a Circular 237/74. Partindo do entendimento já explicitado, não há que se falar em sanção de multa conforme o artigo 44, §2º, “b”, pois a conduta descrita foge do rol estabelecido no dispositivo.

            O próprio dispositivo delimitou a sua aplicação, com o intuito de evitar situações nas quais o Banco Central enquadra instituições financeiras, ou diretores de banco, em sanções estabelecidas em dispositivos infralegais.

            Como se observa, o Bacen desrespeita o princípio da reserva legal ao enquadrar condutas em âmbito infralegal, para impor sanções administrativas, sob o argumento de que a Lei 4.595/64 é norma em branco em todos os seus termos, o que, como já demonstrado, não é um argumento cabível quanto a aplicação do artigo 44.

           

4 A APLICAÇÃO DE SANÇÕES SOBRE DIRETORES DE BANCOS

 

4.1 O Direito Bancário e a Responsabilidade civil dos diretores de bancos

            Os bancos só podem ser constituídos sob a forma de sociedade anônima, conforme preceitua o artigo 25 da Lei 4.595/64. Sob esse aspecto, conclui-se que a administração da companhia é feita pelo Conselho de Administração e pela Diretoria, sendo esta a única obrigatória. Em face de seu papel perante a sociedade, é de se esperar que os bancos possuam Conselho de Administração e Diretoria.

            Com o objetivo de proteger os bancos que se encontram sob intervenção ou recuperação extrajudicial, foi editada a Lei 6.404/76, que dispõe acerca da responsabilidade dos administradores da companhia, determinando, dentre outras medidas, a indisponibilidade dos bens dos mesmos.

            Assim dispõe o artigo 138, da referida Lei:

Art. 138. A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria.        § 1º O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da companhia privativa dos diretores.
§ 2º As companhias abertas e as de capital autorizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração.

            Dessa forma entendem Ivo Waisberg e Gilberto Gornati:

“Ocorre que os dois órgãos, Diretoria e Conselho de Administração, são distintos, tendo funções diversas. Enquanto este é um órgão de deliberação colegiada, isto é, suas decisões são necessariamente coletivas, aquela é um órgão no qual seus membros têm funções próprias específicas. De outro lado, somente aos diretores cabe a representação da sociedade. O Conselho de Administração tem competência para nomear e demitir diretores. Ele ocupa uma posição intermediária entre a Assembleia Geral e a Diretoria.”[6]

            Pela leitura do dispositivo, depreende-se que a responsabilidade civil dos diretores de banco possui forte relação com a atuação do Banco Central, no exercício de sua função sancionadora.

            Ainda no que toca a responsabilidade civil dos diretores de bancos, importante apontar a divergência doutrinária acerca da subjetividade ou objetividade da atuação dos mesmos. Assim dispõem os artigos 39 e 40 da Lei 6.024/74:

Art. 39. Os administradores e membros do Conselho Fiscal de instituições financeiras responderão, a qualquer tempo, salvo prescrição extintiva, pelos que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido.


Art. 40. Os administradores de instituições financeiras respondern solidariamente pelas obrigações por elas assumidas durante sua gestão, até que se cumpram.
Parágrafo único. A responsabilidade solidária se circunscreverá ao montante e dos prejuízos causados.

            Pela leitura do dispositivo, a dúvida permanece. Em nenhum momento, a Lei 6.024/74, que é a disposição mais recente a tratar sobre a responsabilidade dos diretores de banco, especificou o aspecto objetivo ou subjetivo, o que dificulta o estudo acerca do tema, tornando imprecisa qualquer conclusão acerca deste ponto.

            Tal dúvida não impede a atuação do Banco Central em sua função punitiva, o que nos leva a crer que há, novamente, situação de insegurança jurídica, quando do reconhecimento de responsabilidade de diretores de bancos. Ora, não se pode depreender com precisão se o elemento subjetivo é exigível ou não, levando a conclusão de que, caso o mesmo não reste configurado no caso concreto, não deveria o diretor de banco ser responsabilizado. Essa conclusão não abrange conceitos tecnicistas do Direito Econômico ou do Direito Bancário. Na verdade, está bem acima, em nosso ordenamento jurídico, quando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê o princípio do in dubium pro reo.

            Há entendimentos doutrinários com diferentes inclinações, contudo, é importante apontar o seguinte:

“Toda a legislação dessa área (Direito Bancário) tem como escopo proteger o mercado bancário e evitar a ocorrência de uma crise sistêmica. Essa a característica principal dessas normas. Mesmo as normas de ‘repressão’, como a decretação dos regimes especiais visam, após constatado o problema e não havendo solução melhor, atuar prontamente para estancar a crise e evitar seu alastramento. [...]

 A teoria do risco não pode exercer sobre os administradores a mesma pressão para uma conduta mais diligente que a culpa. A lição de Mota Pinto citada deixou claro que a adoção da culpa como fundamento da responsabilidade civil exerce um efeito de estimular o zelo, a diligência.  E para a proteção do sistema bancário do modo como estruturado, este efeito é mais eficiente do que o eventual ressarcimento pelo patrimônio do administrador sem culpa.”[7]

             Cabe razão ao entendimento explicitado. Ora, a responsabilidade civil dos diretores de banco deve ter como função regrar suas condutas de forma a evitar o dano, estando em segundo plano o ressarcimento dos credores. O critério é lógico: é preferível que se evite o dano, tendo em vista, como já explicitado no início desse trabalho, a existência de interesse público nas relações bancárias.

            Segue esse posicionamento a Resolução n. 1065/85, do Bacen:

                        2  -  A  ação fiscalizadora e controladora do Banco Central  tem por objetivos principais a estabilidade e a solidez do Sistema sob sua égide, o aperfeiçoamento dos  instrumentos financeiros  e das  instituições  e  o resguardo dos interesses dos investidores e credores.   

            Somente mais a frente, o referido ato normativo vem tratar sobre o processo administrativo para a correção de irregularidades:

                        1  -  O  processo administrativo é instaurado por  descumprimento  a disposição legal ou regulamentar:                                   
                         a) contra instituição financeira, seus diretores,  membros de  conselhos e gerentes, bem como pessoas físicas ou jurídicas a ela equiparadas, nos termos ao art. 17 da Lei n. 4.595/64;          

            Resta cristalino que, a despeito de o Bacen estabelecer sanções, muitas vezes por meio de resoluções, é sabido que a sua função precípua é sempre buscar o equilíbrio financeiro, com a proteção dos interesses dos investidores e dos credores.

            Os que apoiam a teoria subjetiva entendem que, quando da defesa do interesse público para evitar-se a crise bancária, está-se atendendo a função social da norma de forma mais eficiente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            O Banco Central goza de crescente autonomia em face dos programas econômicos governamentais. Em sua atuação, de importância inquestionável, o Bacen possui competência reconhecida para a edição de atos normativos, com o fito de regulamentar relações bancárias, tendo em vista a tecnicidade exigida nas mesmas, que só pode ser provida, de forma e precisa, por esta autarquia federal.

            Contudo, em alguns momentos, o Bacen excede seus limites normativos, estabelecendo sanções, com o fito de sanar irregularidades. É de entendimento da doutrina majoritária e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que as punições estabelecidas por atos normativos são ilegais, tendo em vista o respeito a hierarquia das normas.

            Assim, os atos normativos do Banco Central tem o papel de regulamentar sanções, não de impô-las.

            É bem fundamentado o entendimento, no que toca a responsabilidade dos diretores de bancos, de que é exigível o elemento subjetivo na atuação dos mesmos, para que sejam responsabilizados. Esse posicionamento busca cumprir a função social da norma de maneira mais eficiente, bem como respeitar o princípio administrativo da supremacia do interesse público.

 

 

6 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. Ed. Saraiva. 9 ª Edição. 2005;

MIRABETE, Julio Fabrinni; Fabrinni, Renato N. Manual de Direito Penal. Editora Atlas. 2012. V. 1;

ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Trad. Luzon Peña, Díaz e García Conlledo e Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. V. 1;

SALAMA, B. M. Como interpretar as normas emitidas pelo Bacen e CMN? Uma resposta apartir da evolução do modelo de Estado brasileiro.Latin American and Caribbean Law and Economics Association. 2009. Outubro.

SANTOS, M. B. D. O Princípio da Legalidade no âmbito das sanções aplicadas pelo  Bacen.Revista Escola da Magistratura do Paraná. 2011. Vol. 2.

WAISBERG, Ivo; Gornati, GILBERTO. Direito Bancário: contratos e operações bancárias. Editora Quartier Latin. 2012. Vol. único;

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;

Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

 

Lei 4.595 de 31 de Dezembro de 1964;

Lei 6.024 de 13 de Março de 1974;

 

Resolução Nº 1.631/89

Resolução n. 1065/85

 



[1] Graduando em Direito (UFC). E-mail: [email protected]

[2] In ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. Pág. 371.Ed. Saraiva. 9 ª Edição. 2005.

[3] Lei 4.595/64, art. 9º

[4] Roxin, Claus. Derecho Penal: parte general. Trad. Luzon Peña, Díaz e García Conlledo e Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. V. 1, p.139-141.

[5] Mirabete, Julio Fabrinni; Fabrinni, Renato N. Manual de Direito Penal. Vol. 1. Pág. 33. Editora Atlas. 2012.

[6] Waisberg, Ivo; Gornati, Gilberto. Direito Bancário: contratos e operações bancárias. Pág. 209. Vol. Único. Editora Quartier Latin. 2012.

[7] Waisberg, Ivo; Gornati, Gilberto. Direito Bancário: contratos e operações bancárias. Págs. 220 e 221. Vol. Único. Editora Quartier Latin. 2012