A IRRACIONALIDADE AINDA PRESENTE NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO[1]

Filipe Vieira Lima[2]

 

Resumo: O presente artigo analisa uma apelação de reparação de danos acontecida no Tribunal de Justiça de São Paulo de nº 9090372-95.2007.8.26.000, para a partir de tal análise e baseando-se nas teorias e teses defendidas por autores como Ulrich Beck, Giles Deleuze, Jürgen Habermas, Max Weber, Niklas Luhmann, apontar a irracionalidade, riscos, insuficiência e deficiências da aplicação do direito em relação ao caso em particular.

Palavras-chave: irracionalidade; justiça divina; riscos; validade; argumentação; incertezas; expectativas.

 

 

  1. 1.      Introdução

O direito há tempos tenta ser um sistema racional, completo e se consolidar como ciência, entretanto, parece que até hoje os teóricos não foram capazes de nem mesmo estabelecer um conceito para aquilo que realmente deva ser considerado como direito, no sentido de um conceito uno e universal capaz de absorver suas implicações. Além disso, é possível ver nas diárias aplicações institucionais do direito o quanto ele pode se demonstrar irracional, cheio de riscos, incompleto e com sérias deficiências.

Pretendo analisar nesse breve artigo um caso judicial acontecido na cidade de Ribeirão Preto – São Paulo, que chamou atenção devido à referência religiosa encontrada no acórdão. A partir da análise dos argumentos usados pelo desembargador Júlio Vidal para proferir sua decisão, tentarei demonstrar exatamente o mencionado no parágrafo anterior, isto é, os aspectos ainda arraigados no direito como irracionalidade, os riscos envolvidos nas produções de decisões, analisando a forma pela qual o desembargador procura o concílio entre as partes, os aparatos disponíveis para a formulação de juízo e a atuação do desembargador em si. Tentando demonstrar tais aspectos, pelo menos até onde a particularidade do caso me permite, estendidos à vida do direito.

Para tanto me fundarei nas teses desenvolvidas por Max Weber, Ulrich Beck, Giles Deleuze, Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, tentando estabelecer um diálogo entre a prática do direito no caso em questão e as teorias que os autores mencionados defendem relacionadas ao direito e o controle da sociedade. Perseguindo a conclusão de que o desembargador ao estruturar sua decisão compromete a certeza que o direito deveria provir tal como a validade do seu juízo, além de se isentar da responsabilidade como julgador, de não produzir uma decisão racional e capaz de persuadir as partes, da insuficiência, no caso, do direito produzir provas satisfatórias e garantir expectativas, enfim, ver na prática, pelo menos na prática em questão, como o direito pode se distanciar do pretendido por teóricos mergulhados na sua caça à racionalidade.

  1. 2.      Os riscos intrínsecos às produções de decisões

O caso judicial a ser trabalho, como já apontado, ocorreu na cidade de Ribeirão Preto localizada no estado de São Paulo. Trata-se de um acidente envolvendo uma motocicleta e um carro, onde a condutora da motocicleta findou-se como vítima fatal do acidente e o motorista do veículo fugiu logo após a colisão. O caso, apesar de comum, causou um certo furor midiático devido às últimas palavras de Júlio Vidal, o desembargador decidindo então, no acórdão remetendo a uma “justiça divina” acima da justiça dos homens, ponto este que será abordado mais detalhadamente adiante.

Após a tentativa em primeira instância de obtenção de indenização findada como fracassada, a mãe da referida condutora, Maria do Carmo Moraes de Oliveira, entrou então com ação em segunda instância no Tribunal de Justiça de São Paulo, de reparação de danos morais e patrimoniais contra o motorista em questão, José Sebastião Martinez, afirmando ter o acidente ocorrido em face da negligência com que o apelado operou o veículo.

Segundo a apelante o laudo produzido pela polícia científica não contribuía e nem elucidava os fatos, pois as características da colisão demonstrariam que a motocicleta conduzida pela vítima já estava terminando de fazer o cruzamento quando foi atingida pelo veículo. Conforme o dizer da parte apelante, o veículo estaria em alta velocidade, haja vista que além de ter colidido, arrastou a motocicleta da vítima e capotou o próprio veículo. Apresenta-se, além disso, argumentos referentes às testemunhas que afirmam que os ocupantes do veículo provinham de bar e apresentavam forte odor etílico.

A partir da própria insatisfação da apelante em relação ao laudo científico produzido, as insuficientes provas colhidas pelos técnicos e ainda nos dizeres do desembargador afirmando que o laudo policial era “imprestável” para imputar culpa ao apelado, mesmo que ele acredite que os indícios apontem para esse caminho, entretanto, não de forma segura, pode-se evidenciar os riscos sob os quais o julgador decidiu em negação à ação da impetrante.

Estes riscos: laudos científicos insuficientes e falíveis, falta de clareza dos fatos apurados, a tecnicidade dos profissionais responsáveis pelo colhimento das provas passível de erro humano, enfim a incapacidade de controlar os conflitos, são característicos da sociedade que estamos vivendo e que foi desenvolvida e conceituada por Ulrich Beck em sua obra “A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva” especificamente a parte intitulada “Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna”.

Segundo o autor a “sociedade de risco” a qual, como apontei, estamos atualmente inseridos, corresponde a uma etapa do desenvolvimento da sociedade moderna em que os riscos sociais, políticos, ambientais, econômicos, individuais, enfim, das mais variadas naturezas já estão escapando do controle e da proteção da sociedade industrial[3]. Beck, apoiado no autor Wolfgang Bonss, aponta que nesta sociedade se configura o retorno da incerteza, ou seja, os problemas agora enfrentados são de risco e não de ordem, e, portanto, são problemas ambivalentes que “estão voltados para a clareza e a faculdade de decisão”[4].

Nesse quadro de incertezas, conforme Beck, cabe a instituições como o direito o dever de produzir decisões, isto é, certezas que considerem todos os riscos pré-existentes na construção das próprias decisões e a meu ver o desembargador Júlio Vidal não foi capaz de tanto ao negar indenização à parte apelante. Tiro tal conclusão das próprias palavras de Vidal:

Contudo, como o trabalho realizado pela polícia científica não concluiu que o capotamento se deu por conta da velocidade e inexistindo prova da suposta embriaguez do condutor, bem como o mero fato de ter ocorrido fuga do sítio dos acontecimentos não implicar em culpa do motorista fugitivo (conquanto intuitivo), lastimavelmente, a improcedência da ação era medida que se impunha, até mesmo para evitar que, a pretexto de realizar justiça nesse caso, seja cometida eventual injustiça com imputação duvidosa de culpa a quem não tenha sido o causador do acidente.[5]

O termo “duvidosa” talvez seja o que mais elucide os riscos sob os quais a decisão se debruça. Como consta no excerto e na decisão como um todo o desembargador considera duvidoso imputar culpa ao apelado devido ao laudo científico apresentado, à ausência de testemunhas, tendo como testemunhas apenas os acompanhantes do acusado que estavam no carro e ao cruzamento ser provido de sinalização semafórica. Entretanto, me pergunto de onde poderia vir a certeza em ele negar a culpa do acusado? Isto é, de onde pode vir a certeza que fundamente que negar a culpa do apelado seja “realizar justiça”?

A sinalização semafórica não impede de forma alguma que o acusado tenha avançado o sinal, as testemunhas, devido ao possível laço de conhecimento com o apelado, não devem ser fontes seguras para afirmarem a situação de embriaguez ou não do apelado, assim como o laudo científico está de qualquer forma passivo de erros humanos e o fato de o condutor do veículo ter fugido do local também poderia exercer forte peso para o desembargador decidir por outra vertente. Parece-me que pelo menos nesse caso o direito não foi capaz de trazer certezas ou de ter os aparatos suficientes para controlar os riscos eminentes na sua atuação.

  1. 3.      O atraso brasileiro em relação às dinâmicas das “sociedades de controle”

Diversos aspectos prejudicaram o desembargador a esclarecer os fatos e assim talvez produzir uma decisão que pudesse diminuir ou controlar os riscos. Um destes aspectos foi a fuga do motorista do local, apontado por Vidal como um dos impasses quanto a afirmar a sua situação de embriaguez ou se de alguma forma o condutor agiu imprudentemente. Essa dificuldade na elucidação dos fatos, em estabelecer controle sobre as ações do indivíduo, em propriamente vigiá-lo me transparece como um certo atraso do estado brasileiro em relação às “sociedades de controle” que segundo Giles Deleuze, vivenciamos nos tempos hodiernos.

Deleuze acredita que as sociedades disciplinares antes desenvolvidas por Michel Foucault[6] foram substituídas pelas “sociedades de controle”. Nestas o controle é agora contínuo e ilimitado, não requer o confinamento, como nas sociedades disciplinares[7]. As massas de indivíduos se tornaram dados e o controle é feito a partir de uma cifra, uma senha que indica o indivíduo tal como o CPF, número da identidade.

No caso judicial em particular o condutor ao fugir da cena do acidente abandonou seu veículo capotado, deixando informações como a placa do seu carro, a qual por sua vez poderia levar às suas outras identificações numéricas como CPF e assim por diante, que dessa forma indicariam sua posição na linguagem numérica agora usual nas sociedades de controle.

Porém, o atraso que apontei anteriormente me transpareceu devido ao fato de que mesmo o estado possuindo os dados mencionados acima e podendo controlar e vigiar ilimitadamente o indivíduo, parecia, pelo menos no caso em particular, não possuir os aparatos suficientes para isso, pois a identificação do indivíduo só aconteceu data posterior ao acidente, o semáforo, por exemplo, não possuía uma câmera ou qualquer forma de vigilância e nenhum dado colhido pareceu suficiente para saber como aquele indivíduo agiu de fato naquele momento, para obter informações essenciais ao esclarecimento do caso.

Como consta na decisão por estar em estado de choque, mesmo não estando embriagado, ele assim como seus amigos fugiram, abandonando a vítima a própria sorte. Sendo assim, temos que admitir pelo menos como possibilidade o fato de que o indivíduo ter fugido do local pode ter sido a chave crucial para decretar a sua inocência na hipótese, é claro, de ele ter sido o responsável pelo acidente, o que acaba comprometendo de certa forma a segurança que o direito deveria prover neste caso ao negar culpa ao réu.

 

  1. 4.      A validade e argumentação da decisão

Destarte afirmando que as provas até então produzidas eram insuficientes para imputação de culpa ao réu, o desembargador decide por manter a decisão anterior, isto é, nega a indenização intentada pela parte apelante. Contudo, provavelmente por estar diante da desolação da mãe que sofreu a perda fatal de sua filha e não ser capaz de produzir resultado satisfatório à mesma, o desembargador Júlio Vidal completou sua decisão com uma espécie de lamentação que acaba se tornando uma isenção de responsabilidade pela decisão que foi obrigado a produzir, devido a não ter os meios suficientes e necessários de produzir aquilo que talvez transpareça nas entrelinhas da sua decisão como a verdadeira justiça para ele, isto é, a condenação do réu à indenização à vítima pelo acidente.

Esta tal lamentação e isenção são demonstradas pela tentativa de consolo à vítima em que o desembargador, recorrendo a aspectos divinos e transcendentais afirma existir uma justiça acima da humana, a qual não seria falha e, portanto poderia decidir favoravelmente à parte apelante. Nas palavras dele:  

Se serve de consolo à apelante, diga-se que a justiça humana, por ser humana, é falha, e imprescinde de prova, mas existe fisicamente a lei da ação e reação, de modo que, eventuais causadores de danos que passem impunes na lei dos homens não os passarão diante dos preceitos daquela regra universal, sem se esquivar, para quem acredita, da justiça divina.[8]

Graças a essa menção o caso ganhou notoriedade midiática, levantando o debate a cerca dos argumentos utilizados por Júlio Vidal. Como desenvolvi anteriormente, os pontos levantados por Vidal para negar indenização à mãe da vítima foram, a meu ver, deficientes de persuasão e convencimento. Pois a partir das provas colhidas, da mínima contribuição do laudo científico e dos depoimentos das testemunhas ligadas ao condutor do veículo pode-se decidir tanto pela procedência da ação da apelante como sua negação e valer-se de uma justiça que esteja acima dos homens que assim acaba o abstendo de responsabilidade na decisão compromete qualquer racionalidade que ele tenha intentado basear-se durante sua argumentação.

Apóio meu ponto de vista nas concepções de Jürgen Habermas quanto à atuação de um juiz diante de um caso, a validade de um juízo e como deve se desenvolver o processo de argumentação. Habermas em sua Teoria Discursiva do Direito defende a validade de um juízo como proveniente de uma argumentação racional que atenda não apenas as condições lógico-semânticas ao construir-se, mas também contribua pragmaticamente para a construção e aceitabilidade racional de todo o juízo. Para ele os argumentos devem ser razões que movem “racionalmente os participantes da argumentação a aceitar como válidas proposições normativas ou descritivas”[9].

Ao iniciar sua conclusão argumentativa com as palavras “Se serve de consolo à apelante[...]”[10] o desembargador já denuncia a deficiência de seus argumentos. Parece claro que a mãe da vítima não se convencera dos pontos até então levantados tanto em primeira quanto em segunda instância para a negação de sua ação. Tentar convencê-la então através de uma apelação irracional, transcendental que no fim o isentou de responsabilidade ao proferir uma decisão tão precária, vai expressamente contra as definições habermasianas de validade de um juízo assim como de como deva ser a conclusão de uma argumentação.

Para ele:

Nós só concluímos uma argumentação, quando os argumentos se condensam de tal maneira num todo coerente, e no horizonte de concepções básicas ainda não problematizadas, que surge um acordo não-coercitivo sobre a aceitabilidade da pretensão de validade controvertida.[11]

Esse tal “acordo não-coercitivo” deve ser um “acordo racionalmente motivado” que a partir dos argumentos tenha força de “[...]’mover’, num sentido não psicológico, os participantes da argumentação a tomadas de posição afirmativas”[12] e que por própria denominação já vai contra o proposto por Vidal. Pois ao concluir seu juízo valendo-se de uma justiça divina abandona qualquer racionalidade que até então pretendera para convencer as partes de um acordo.

No meu entender o juízo construído por Júlio Vidal além de inválido, vai contra qualquer interesse público em uniformizar a aplicação do direito. Pois como assinala Habermas para que aconteça tal uniformização “O tribunal tem que decidir cada caso particular, mantendo a coerência da ordem jurídica em seu todo”[13] e admitindo que vivemos num país declaradamente laico[14] e o ordenamento da mesma forma o deva ser, o coerente seria encadear e fundamentar os juízos e decisões através de argumentos laicizados e racionais, não como fez Vidal, isto é, subordinar o direito a uma instância superior e transcendental que supriria qualquer deficiência sua de racionalmente convencer a parte apelante da negação à sua indenização.

  1. 5.      Irracionalidade ainda presente no direito

 

 

            Essa invocação à “justiça divina” feita pelo desembargador parece se encaixar nas definições de Max Weber para aplicações formais do direito que podem ser consideradas irracionais. Para Weber a aplicação do direito se torna irracional quando “são empregados meios que não podem ser racionalmente controlados”[15] como, por exemplo, uma justiça que está acima da dos homens e que, portanto, não é acessível racionalmente, assim como não comprovável, pois no máximo assenta sua existência na fé incontestável daqueles que como ele deixa transparecer, acreditam em tal instância.

Weber acredita que o direito evolui da irracionalidade à racionalidade, passando pela:

[...] revelação carismática do direito por ‘profetas jurícos’ – por meio da criação e aplicação empírica do direito por bonoratiores jurídicos (criação de direito cautelar e de direito baseado em precedentes) -, à imposição do direito pelo imperium profano e por poderes teocráticos e, por fim, ao direito sistematicamente estatuído e à ‘justiça’ aplicada profissionalmente, na base de uma formação literária e formal lógica, por juristas doutos (juristas especializados)[16]

A meu ver o jurista Júlio Vidal conclui sua argumentação como se não tivesse alcançado a fase racional do direito a qual, como acentuou Weber, tem como grande característica a racionalidade e lógica nos seus procedimentos. Chego a essa conclusão devido à linha de argumentação precária, desenvolvida pelo desembargador, que se debruça como conclusão a uma garantia que não é lógica e nem racional, tentando assim convencer os litigantes da sua decisão.

Esta atitude do desembargador além de parecer ter voltado no tempo, é de gravíssima irresponsabilidade, pois como evidencia Max Weber, o juiz, no ato da criação do seu juízo, é um dos maiores responsáveis por aquilo que é selecionado como direito ou não. Conforme o autor já mencionado “[...] o juiz ao decretar a garantia coativa num caso concreto e por razões concretas, cria eventualmente a vigência empírica de uma norma geral como ‘direito objetivo’, porque sua máxima ganha importância, que vai além desse caso concreto”[17].

            Dessa forma, admitindo o ponto de vista acima, isto é, o juiz como forte influente daquilo que será aproveitável ao direito e criador de “máximas” que servem de orientação para sentenças posteriores, chego à conclusão de que a aceitação de uma menção e fundamentação religiosa em um acórdão torna instável qualquer orientação quanto às sentenças futuras. Pois, se assim o fosse, estaríamos à mercê das diversas crenças daqueles que julgam os casos, dependentes das “justiças divinas” sob a quais suas crenças se concentrariam e suas deficiências técnicas seriam justificadas.

            Destarte atitudes como a de Júlio Vidal que a pretexto de consolar a impetrante se isenta de responsabilidade, devem ser veementemente repugnadas, pois do caso contrário retornaríamos às imposições do direito por poderes teocráticos. Acredito que o consolo devido à mãe da referida vítima não deve provir de uma divindade, ou de qualquer poder teocrático, mas sim de uma aplicação do direito melhor argumentada, melhor fundamentada, mais apurada, da atualização dos aparatos do estado assim como das formações profissionais daqueles que o operam para que assim possam dar um mínimo de garantia às suas expectativas.

           

  1. 6.      O direito como mantenedor de expectativas

Esta mínima garantia de expectativas, que deve ser operada pelo direito, é, como expõe Niklas Luhmann, indispensável à vida enquanto sociedade. Dessa forma, conforme o autor, o papel do “direito é imprescindível enquanto estrutura, porque sem a generalização congruente de expectativas comportamentais normativas os homens não podem orientar-se entre si, não podem esperar suas expectativas”[18].

            Luhmann vê a sociedade como um sistema social que tem por ambiente o homem e onde existem outros diversos sistemas parciais complexos que emergem devido à diferenciação funcional[19]. E estruturas, como o direito[20], institucionalizadas “ao nível da própria sociedade [...] domesticam o ambiente para outros sistemas sociais”[21] e são indispensáveis para as relações entre os sistemas e seus ambientes de atuação.

            Dessa forma é possível identificar à impetrante apelando à estrutura que, pelo menos formalmente, garantiria suas expectativas. Expectativas tais como a satisfação do condutor do veículo diante do acidente ocorrido, em obter uma indenização do indivíduo que contribuísse para amenização dos danos materiais que, segundo ela, afirma ter sofrido, além do abalo moral irreparável diante da morte da sua filha, a qual havia deixado órfã uma filha e acima destas a expectativa de logicamente e racionalmente o direito garantir ou negar aquilo que ela intentava.

Como já exposto, suas expectativas, entretanto, acabaram por frustradas, isto é, houve a negação de sua ação, que, a meu ver, como acredito já ter apontado, foi feita de forma precária, deficiente, inválida, irracional e evidencia, pelo menos na particularidade do caso, como o direito pode falhar enquanto estrutura elementavel para a orientação dos indivíduos enquanto sociedade.

  1. 7.      Conclusão

 

 

            Diante dos pontos levantados e a caminhos da conclusão, penso ter exposto como o direito está obrigado a atuar num mar de riscos, concordando com as teses de Ulrich Beck, em que os conflitos agora possuem soluções ambivalentes e ao solucioná-los torna-se essencial considerar estes riscos, que no caso em particular, Júlio Vidal não foi capaz de tanto. Da forma como expus anteriormente ele se baseou em aspectos que não são suficientes para construir certeza em sua decisão de negar indenização à apelante, pois da forma como expôs os fatos disponíveis era possível, no meu entender, decidir tanto em procedência quanto em negação da ação.

            É notória a falta de aparatos e mecanismos de controle do estado que poderiam contribuir para elucidação do caso em questão, pois conforme aleguei, a identificação do indivíduo apesar de feita mesmo ele tendo fugido delongou tempo demais para um possível esclarecimento de como ele pôde ter agido no momento, como, por exemplo, se estava embriagado ou não, assim como a falta de um sistema de segurança instalado nos semáforos para controle das ações dos indivíduos, indicando a deficiência do estado diante das novas dinâmicas apontadas por Deleuze quanto às “sociedades de controle”.

            Entretanto mesmo devido a essas dificuldades é importantíssimo ressaltar que o desembargador não teria o direito de se isentar da responsabilidade da decisão que era obrigado a proferir. Como apontei, apoiado nos dizeres de Jürgen Habermas, ele deveria ter buscado uma argumentação fundamentada racionalmente para convencer a litigante e tornar seu juízo válido, em vez de valer-se de uma entidade superior, divina e transcendental que pudesse corrigir os erros que ele enquanto humano parecia conscientemente cometer representando a tal “justiça dos homens”.

            Ao fazer esta invocação divina, o desembargador denunciou o fato, é claro realçando aqui a insegurança em estender a particularidade do caso à vida do direito, de que mesmo o direito devendo ser um sistema racional e lógico, ele ainda pode possuir aspectos de épocas anteriores da sua evolução, tais como as imposições jurídicas feitas através de poderes teocráticos, conforme descreve Max Weber. Pois da mesma forma que os poderes teocráticos não eram racionalmente provados, a tal “justiça divina” que Vidal acredita, irá realizar a justiça última, também parece não ser racionalmente comprovável.

            Além de ainda estar sob forte influência irracional o direito demonstrou-se, contrariando o exposto por Niklas Luhmann de como a estrutura jurídica deve atuar, no caso em particular, a meu ver, incapaz, pelo menos de forma racional, lógica e procedimental a partir da consideração dos riscos de sua atuação, de garantir a expectativa da parte apelante em obter satisfação do indivíduo envolvido no acidente que ceifou a vida de sua filha e deixou órfã uma criança ainda de pouca idade.

            Concluo este breve artigo trazendo exatamente para o foco de discussão a situação penosa em que a órfã de pouca idade foi deixada em relação à morte de sua mãe, pois, a não ser que esta mesma órfã em questão cresça e de alguma forma se apegue e acredite em uma religião, uma entidade divina, algum poder transcendental que atue como justiça entre os homens, ela terá grandes chances de ler o acórdão proferido por Júlio Vidal (no qual qualquer possível forma de amenização, seja econômica ou até mesmo emocional, quanto à morte de sua mãe foi negada sob o pretexto de uma justiça divina que a daria conforto, mas que ela não pode a ver atuar, não pode de forma alguma racional ter provas da sua existência, que não pode de forma alguma suprir a falta que a sua mãe possivelmente lhe fará) e sentir-se extremamente desamparada, a mercê da crença de pessoas que ela talvez nunca teve nem terá a chance de conhecer, pessoas responsáveis por sua proteção e que de nenhum modo parecem para isso preparadas.

  1. 8.      Referências

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; SCOTT, Lash. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9090372-95.2007.8.26.000. Apelante: Maria do Carmo Moraes de Oliveira. Apelado: José Sebastião Martinez. Relator: Júlio Vidal. São Paulo, 05 de julho de 2011. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev5/files/JUS2/TJSP/IT/APL_9090372952007826_SP_1310272447971.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2011.

BRASIL. Constituição Federal. 1988.

DELEUZE, Giles. Conversações, 1972 – 1990.  Tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir - nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987.

 

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade - I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

WEBER, Max. Sociologia do Direito. In: Economia e Sociedade. Brasília e São Paulo: Editora UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.



[1] Artigo elaborado no contexto de conclusão da disciplina de Sociologia jurídica, ofertada pelo curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí para o 2º período. Desenvolvido sobre orientação da Professora Doutora Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

[2] Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí.

[3] BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: Beck, U.; Giddens, A. e Scott, L. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 15.

[4] WOLFGANG, Bonss apud BECK, Ulrich, op. cit., p. 40.

[5]BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9090372-95.2007.8.26.000. Apelante: Maria do Carmo Moraes de Oliveira. Apelado: José Sebastião Martinez. Relator: Júlio Vidal. São Paulo, 05 de julho de 2011. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev5/files/JUS2/TJSP/IT/APL_9090372952007826_SP_1310272447971.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2011, p. 3.

[6] Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir - nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987, pág. 240-250.

[7] DELEUZE, Giles. Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle. In: Deleuze, Giles. Conversações, 1972 – 1990.  Tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992.

[8] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9090372-95.2007.8.26.000. Apelante: Maria do Carmo Moraes de Oliveira. Apelado: José Sebastião Martinez. Relator: Júlio Vidal. São Paulo, 05 de julho de 2011. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev5/files/JUS2/TJSP/IT/APL_9090372952007826_SP_1310272447971.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2011, p. 4.

[9] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade - I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 281.

[10] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9090372-95.2007.8.26.000. Apelante: Maria do Carmo Moraes de Oliveira. Apelado: José Sebastião Martinez. Relator: Júlio Vidal. São Paulo, 05 de julho de 2011. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev5/files/JUS2/TJSP/IT/APL_9090372952007826_SP_1310272447971.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2011, loc. cit.

[11] HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 282.

[12] Idem, op. cit., loc. cit.

[13] Idem, op. cit., p. 295.

[14] Apesar de constar no preâmbulo da Constituição Brasileira (1988) o termo “sob proteção de Deus”.

[15] WEBER, Max. Sociologia do Direito. In: Economia e Sociedade. Brasília e São Paulo: Editora UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 12.

[16] WEBER, Max, op. cit, p. 143.

[17] Idem, op. cit., p. 71.

[18] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro, 1983, p. 170.

[19] Diferenciação funcional é exposta por Luhmann como o processo pelo qual a sociedade se divide em diversos sistemas parciais que exercem diferentes e específicas funções, além de serem distintos entre si como exemplo a política e a economia.

[20] É relevante destacar a contraposição entre Ulrich Beck e Niklas Luhmann. Pois enquanto este acredita que os sistemas, incluindo o direito, são auto-suficientes, autônomos, autopoiéticos e apenas interdependentes, aquele discorda ao tentar evidenciar as insuficiências dos sistemas que se comunicam e se criticam diariamente.

[21] LUHMAN, Niklas, op. cit., loc. cit.