A INTERPRETAÇÃO DO ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO E A RELATIVIDADE DO ESTADO DE EMBRIAGUEZ:

necessidade de alcançar a voluntas legislatoris[1]

 

Nathália Castelo Branco Almeida2]

Thiago Vieira Mathias de Oliveira[3]

 

RESUMO

A redação do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro não condiz com a forma que se afere o alcoolismo no trânsito atualmente. A redação se refere à quantidade de álcool por litro de sangue, enquanto os nossos agentes de trânsito usam do exame de bafômetro para indicar o alcoolismo. No entanto, muitas pessoas se recusam a fazer o exame amparados pela premissa de que ningém é obrigado a produzir provas conta si mesmo, e aí encontra-se o cerne da questão constitucional do problema. Além do que, o próprio alcoolismo em si é bastante relativo de um indivíduo para outro. Por fim, observa-se que a vontade do legislador acabou por se perder, quando a redação da lei não foi capaz de reproduzi-la fielmente, ou de tentar solucionar o problema que ela buscava ao criar uma norma regulamentadora mais rígida. Dessa forma, demonstra-se a inconstitucionalidade na aplicação desse dispositivo normativo.

Palavras-chave: Relatividade, inconstitucionalidade, bafômetro, embriaguez, vontade do legislador

1 INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho trará em seu primeiro momento uma elucidação acerca do crime de embriaguez ao volante, que se encontra no art. 306 do CTB (Código de Trânsito Brasileiro), trazendo classificação doutrinária e elementos objetivos e subjetivos. Entendendo o bem jurídico protegido, que é a incolumidade pública, passaremos a uma compreensão clínica do estado de embriaguez. Essa compreensão dará suporte à discussão da inconstitucionalidade da aferição da alcoolemia através do bafômetro. Por fim, verificaremos verdadeiro sentido da vontade do legislador, e o distanciamento desta da redação - e vontade- da lei.

 

 

2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

 

            Antes de adentrarmos no cerne da discussão, se faz necessário elucidar questões acerca do crime de embriaguez ao volante, que se encontra disposto no art. 306 da Lei 9.503/97, que regula o Código de Trânsito Brasileiro; artigo posteriormente modificado pela Lei 11.705/08, conhecida por Lei Seca. Essas considerações se fazem necessárias, para que se possa demonstrar o abismo que se encontra entre aquilo que o legislador pensava em regular quando produziu essa norma, e o que acabou sendo produzido no momento da aprovação dessa lei, de forma a não atingir seu objetivo maior, que era inibir indivíduos de conduzir veículo automotor concomitantemente à ingestão de bebida alcoólica, de forma eficaz.

            O art. 306, CTB, apresentava a seguinte redação: "Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem. Pena - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor".

            A lei 11.705 modifica o art. 306, e o crime de Embriaguez ao volante traz a seguinte modificação: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".

            Apesar de tal alteração, não houve nenhuma mudança ontológica, a não ser a especificação da quantidade limite da ingestão alcoólica, assunto ao qual a lei não fazia referência antes da lei seca. Não houve comprometimento dos elementos identificadores deste crime, nem de sua estrutura normativa. No entanto, essa especificação da quantidade foi infeliz, e esse trabalho tentará demonstrar por quê.

            O crime tem como objetivo a incolumidade pública e o sujeito passivo é a coletividade, já que trata-se de um crime vago. Há ainda a possibilidade de um sujeito passivo secundário, ou seja, uma pessoa que esteja em risco ou perigo de dano mais direto, a exemplo, pessoa que porventura se encontre em via pública no momento em que um indivíduo conduza veículo sob efeito de álcool ou outra substância psicoativa. Já o sujeito passivo ativo pode ser qualquer pessoa, seja ela habilitada ou não.

            A conduta típica é conduzir (dirigir o  veículo) sob a influência da substância inebriante, expondo dessa forma a segurança alheia a indeterminado perigo de dano, a saber, dano coletivo.[4] Aproveitando para comentar a natureza jurídica do crime em pauta, o crime de perigo é classificado como crime de perigo abstrato: trata-se de perigo presumido, no qual o simples fato de o agente dirigir o veículo sob efeito de álcool já caracteriza o perigo. Não é necessária a exposição da segurança de alguém a perigo, capaz de demonstrar dano efetivo a terceiros, verificado no caso concreto.

            A partir da análise da conduta típica, inferem-se os elementos objetivos do tipo que são: a condução do veículo automotor em via pública; a ingestão anterior ou concomitente de substância alcoólica ou de efeitos análogos; a alteração do sistema nervoso central, com redução ou modificação da função motora, da percepção ou do comportamento; afetação da capacidade de dirigir veículo automotor; condução anormal do veículo, expondo assim, a inclolumidade coletiva a perigo de dano; e o nexo de causalidade entre a condução anormal e a ingestão de substância alcoólica ou de efeito análogo.[5] Para este crime não há a possibilidade da tentativa.

3 ASPECTOS CLÍNICOS ACERCA DA EMBRIAGUEZ

 

Vimos que um dos elementos objetivos do crime de embriaguez ao volante é o nexo de causalidade entre a condução anormal e a ingestão de substância alcoólica ou de efeito análogo. Esse nexo de causalidade deve ser observado, uma vez que a ingestão de substância inebriante pode não ocasionar a condução anormal do veículo, bem como essa condução de veículo de forma anormal pode ser em decorrência de outras razões que não a ingestão de bebida alcoólica, situação em que um dos elementos objetivos do tipo se encontraria ausente e a conduta seria, desta feita, considerada atípica. Mas a questão central que pretendemos discutir é com relação à aferição da alcoolemia e com sua relatividade.

O aparelho largamente utilizado para aferir essa alcoolemia é o bafômetro ou etilômetro, que como já sugerem as nomenclaturas, vai examinar o índice de álcool contido no ar que sai dos pulmões do indivíduo através de um sopro. Ora, o tipo penal refere-se ao índice de álcool que se encontra no sangue. O material a ser examinado não é o sopro, mas o sangue desse indivíduo. Até porque a concentração contida no ar dos pulmões e a contida no sangue podem ser diferentes, e já que a lei é taxativa, não sendo alcançada essa concentração no sangue, não haveria que se falar na prática deste crime. Foi por isso que o Decreto 6.488, pensando em remediar a atecnia, mas não o fazendo, acabou por fazer a equivalência: seis decigramas por litro de sangue, por força do decreto, correspondem a três décimos de miligrama por litro de ar.[6]

Ele também não é capaz de indicar o uso de outras substâncias de efeito análogo, o que permitiria que uma pessoa colocasse em risco a incolumidade pública, passasse por uma barreira fiscalizatória, fizesse o exame do bafômetro, e ainda assim continuasse seu trajeto conduzindo seu veículo e causando perigo à coletividade.

Quanto à taxatividade, há que se pensar que a mesma quantidade de álcool no sangue provoca reações diferentes de um indivíduo para outro, e a embriaguez vai depender de inúmeros fatores, alheios à quantidade de álcool que foi ingerida: vai depender da massa corpórea, da resistência de uma pessoa à ingestão de álcool, e até mesmo da ingestão, por exemplo, de um medicamento capaz de potencializar seus efeitos. Por isso, acreditamos que a indicação da quantidade de álcool no sangue para configurar o crime não foi acertada por não ter necessária relação com o estado de embriaguez, que está para além da ingestão ou não de bebida alcoólica.[7]

4 A INCONSTITUCIONALIDADE DO EXAME DO BAFÔMETRO

O legislador ao idealizar uma lei mais severa e penalidade mais dura, ao estipular a quantidade de álcool no sangue, acabou por originar uma inconstitucionalidade. A modificação acabou por beneficiar os condutores que se recusam a submeter-se ao teste.

A inconstitucionalidade da lei está no fato de que o condutor pode recusar-se ao teste, devido ao princípio constitucional que diz que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo -  nemo tenetur detegere.

Dessa forma,  ao estipular expressamente o quantitativo permitido, seria inconstitucional, aferir a alcoolemia da forma como estipula a nova legislação. A atecnia, em vez de punir com maior rigor, em verdade gera impunidade. E se aplicada mesmo assim, ou havendo decisões que tentem em seu bojo consertá-la, provavelmente teremos situações de  abusos e prisões indevidas.

 

5 A VONTADE DO LEGISLADOR E NÃO A VONTADE DA LEI

 

"A lei é "mais racional" que o seu autor e , uma vez vigente, vale por si só", diria Larenz.[8] Por essa premissa, o texto normativo se adaptaria às novas realidades provocadas por constantes mudanças sociais. Essa é a tendência dos dias atuais, e inclusive, a discussão da dicotomia entre vontade da lei x vontade do legislador é considerada defasada pela doutrina. Principalmente  porque a vontade objetiva da lei acaba por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador na doutrina jurídica do séc. XX. A vontade do legislador, sob esse entendimento, se demonstraria através da subjetividade, enquanto entende-se que a objetividade da lei na apliacação demonstra mais fielmente sua vontade. A questão da segurança jurídica tem bastante peso nisso, pois se configuraria uma permissividade a arbitrariedades por parte do aplicador das normas.

No entanto, este trabalho demonstra o desacerto que seria conduzir uma decisão através da interpretação objetiva do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, e a necessidade que há em entender a genuína vontade do legislador para que se possa atingir suas intenções ao elaborar essa norma em particular.

Para a Escola da Exegese, a palavra escrita sob a forma da lei impede os arbítrios judiciais. No momento de sua aplicação, é necessária a atualização de seus termos, por conta da constante transformação da sociedade, que pede uma interpretação adequada ao novo tempo.

A Teoria Objetivista foi desenvolvida pelo pandectista alemão Windsheid. Margarida Lacombe consagra essa teoria, ao afirmar que: "A lei é mais sábia que o legislador, por ser capaz de imaginar situações não previstas por ele."[9]

Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a intrepretação ex tunc revelaria um compromisso com a vontade do legislador, enquanto que para a doutrina objetivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos, independente até certo ponto, do sentido que lhe tenha desejado dar o legislador. Essa seria a concepção de interpretação como uma compreensão ex nunc, em que se pode verificar a predominância do método sociológico de interpretação.

No entanto, a hipótese que queremos demonstrar com nosso trabalho, é de que, aplicar essa lei de forma objetiva, consistiria numa incongruência jurídica, e por isso entendemos que deve-se recorrer à vontade primeira do legislador.

Para Savigny, a junção dos elementos ou métodos interpretativos histórico e sistemático + lógico e gramatical resultaria em um único processo hermenêutico capaz de atualizar o direito, conformando-o à atualidade dos institutos jurídicos.

Tércio Júnior diz que "Na grande maioria das vezes a adesão a uma corrente ou a outra é feita de maneira ad hoc, ocorrendo, frequentemente, uma imbricação entre ambas."[10] Diz ainda que a intrepretação literal é apenas o início do processo interpretativo. A interpretação literal é mencionada em sua obra como algo capaz de ser realizado por qualquer pessoa alfabetizada em posse de um dicionário, o que tornaria o ensino universitário um esforço inútil.

A ciência jurídica é um saber dogmático, mas por meio da doutrina subjetivista que Tércio apresenta em sua obra, ressalta-se o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas que lhe são apropriadas. Percebe-se aqui, uma grande importância do método histórico, para se pensar a vontade do emissor da norma, quando o fez. Se pensássemos que o legislador, ao elaborar o art. 306, queria enrigecer a norma, prevendo maior dureza na punição de condutores embriagados, haveremos de entender que não foi isso que a modificação da lei de fato alcançou. A vontade do legislador deveria prevalecer, e não a vontade da lei.

 

6 CONCLUSÃO

 

Atrávés deste trabalho, não queremos demonstrar oposição à tentativa de controlar e punir condutores que se aventurem em dirigir embriagados e coloquem em risco ou mesmo dano a vida de outras pessoas e também a sua. Acidentes no trânsito são mais freqüentes entre pessoas alcoolizadas, e geram enormes prejuízos ao Poder Público, mas a expressão da lei não foi capaz de satisfazer os objetivos do legislador, necessitando de uma reformulação de seu conteúdo. A atividade jurídica deve primar pela justiça, e a aplicação dessa lei seria injusta, pois fere nossa Carta Magna.

A reformulação por sua vez requer urgência, pois não podemos continuar coma  impunidade dos condutores irresponsáveis. É louvavel que, no dia da apresentação deste trabalho, tenha sido veiculada a notícia de que o Senado aprovou projeto de lei que prevê o teor zero de alcoolemia para condutores.

 

REFERÊNCIAS

ABREU, Angela Maria Mendes. O impacto do álcool na mortalidade em acidentes de trânsito: uma questão de saúde pública. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n1/v10n1a11.pdf.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante: legislador continua embriagado. Disponível em http://www.lfg.com.br - 28 abril. 2010.

GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (art. 306 do CTB): um erro atrás do outro. Disponível em http://www.lfg.com.br - 01 outubro. 2009.

NOGUEIRA, Fernando Lopes. Ponderações ao crime de embriaguez ao volante. Disponível em http://jusvi.com/artigos/34505.

STRECK, Lenio Luis. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

           



[1] Paper apresentado à disciplina de Hermenêutica, Lógica e Argumentação, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Alunas do 4º período de Direito, UNDB.

[3] Professor Mestre da disciplina de Hermenêutica, Lógica e Argumentação. Orientador.

[4] NOGUEIRA, Fernando Lopes. Ponderações ao crime de embriaguez ao volante.

[5] Op cit.

[6] GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (art. 306 do CTB): um erro atrás do outro.

[7] ABREU, Angela Maria Mendes. O impacto do álcool na mortalidade em acidentes de trânsito: uma questão de saúde pública.

[8]  LARENZ, Karl apud LACOMBE, Margarida.

[9] CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 130.

[10] STRECK, Lenio Luis. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 102.