A INTER-RELAÇÃO DOS PRINCÍPIOS POLÍTICOS DE JACQUES MARITAIN NA CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA

O pensamento democrático maritainiano se estrutura à medida que ele é considerado como regime político, o que acontece especificamente na obra O Homem e o Estado[1]. É no corpo político que se encontram e do qual emanam a autoridade e o poder, os quais são dirigidos àqueles a quem o corpo político escolher e determinar pela liberdade que lhe é própria e pela vontade que lhe couber.

Os governantes, aos quais foi transmitido o poder, sem imposição, são os responsáveis de comandar e administrar o Estado, com a autoridade que lhes foi confiada, para tomar o melhor caminho possível de efetivação do bem em favor de todos, o que se faz necessário para a realização da dignidade que cada um possui como pessoa humana. Percebe-se, neste caso, que “a autoridade exige o poder. E o poder sem autoridade é tirania”. (Idem, p. 147)

Isto fica claro, por exemplo, quanto ao que tange ao bem comum; ao voto e às eleições, elucidadas agora como representação do poder e autoridade do povo, ou do corpo político; ao que concerne à ação do governante mediante os referidos princípios; além da definição e diferenciação de Estado e corpo político, que se demonstram ainda não amadurecidos e não efetivamente compreendidos na trajetória histórica do Brasil.

Para Maritain a democracia possui um caráter natural, como ele mesmo afirma em Sobre a filosofia da história:

O que pretendo acentuar é que, considerado em seus traços normais e essenciais, o acesso do povo à maioridade política e social, é em si mesmo um desenvolvimento natural – quero dizer algo que corresponde às exigências mais profundas da ordem da natureza, e em que certos requisitos da lei natural se evidenciam. (1967, p. 112-113)

O autor postula seu pensamento democrático com uma grande profundidade teórica e propõe a necessidade da concretização e realização da vigência de tal regime político. Pois, aquilo que advém da democracia também possui um caráter natural, no sentido empregado por ele, como por exemplo, a autoridade.

A autoridade significa, portanto, um direito. Se, no cosmos, uma natureza, como a natureza humana, pode conservar-se e desenvolver-se apenas em um estado de cultura, e se esse estado de cultura necessariamente supõe no grupo social uma função de comando e governo dirigida para o bem comum, é sinal que essa função é exigida pela lei natural e implica um direito ao comando e ao governo. (MARIATIN, 1956. p. 147)

A dimensão temporal, na sua totalidade, implica assim, uma vivência conforme a tudo quanto está correlato a esta lei. Entretanto, não se quer tomar as expressões literalmente, mas a interpretação que se faz também não tem este objetivo. Dessa forma, é mister haver a concordância daquilo que caracteriza o regime democrático, sob os aspectos mais perceptíveis, com aquele seu caráter natural que se desenvolve historicamente.

Maritain aborda muitos outros princípios pertencentes à questão democrática. A liberdade, por exemplo, é uma constante nas suas obras políticas, entendida como liberdade de independência. Conforme ele mesmo esclarece:

Em cada um de nós a personalidade e a liberdade de independência crescem juntas. Porque o homem é um ser em movimento; se não ganha, nada tem e perde o que tinha. É-lhe forçoso conquistar o seu ser. A história toda de sua desgraça e de sua grandeza é a história de seu esforço de conquistar, com sua própria personalidade, a liberdade de independência. É chamado à conquista da liberdade. (1946, p. 22)

Nesta perspectiva da conquista, o homem entendido como pessoa humana, está posicionado sob as aspirações próprias de sua personalidade e realiza-a de dois modos: um falso e um verdadeiro. O falso modo de conquistar a liberdade se dá mediante a retirada da dimensão transcendental da própria personalidade e, consequentemente da própria liberdade. Ao contrário, o verdadeiro modo de entender esta conquista repousa numa filosofia da analogia do ser e da transcendência divina, para a qual a independência e a liberdade se realizam nos diversos graus do ser. (MARITAIN, 1946)

Partindo destas afirmações, Maritain, em Princípios de uma política humanista, segue suas formulações abrangendo outros fatores que, concomitantemente se integram e exigem a presença um do outro para ser esclarecido e, até mesmo, completado em seu sentido mais perfeito. Pois, mediante a conquista da liberdade por parte da pessoa humana, o alcance de uma autonomia lhe é, também, exigido.

A autonomia de uma criatura inteligente não consiste em não receber qualquer regra ou medida objetiva de um outro senão ela mesma, mas em conformar-se voluntariamente com isso porque sabe serem elas justas e verdadeiras, e porque ama a verdade e a justiça. (Idem)

Assim, falar de liberdade, que seja conquistada, não como algo que exista fora da pessoa, mas como aquilo que só lhe é dado “nas potências radicais de seu ser” (MARITAIN, 1946, p. 26), onde esta implique numa autonomia que garanta sua aderência na verdade; é falar, também, de uma justiça que permeia a conquista da liberdade e torna permanente a aderência da autonomia na verdade.

Sobre justiça Maritain não propõe um conceito específico, mas como algo que perpassa tudo quanto diz respeito às questões políticas e sociais. Pois “na origem do pensamento democrático – tomado em sua verdade humana – não há desejo de ‘só obedecer a si mesmo’; há o desejo de só obedecer ‘se for justo’”. (MARITAIN. 1946. p. 68). A justiça está inteiramente ligada à democracia, é impossível pensar uma sem a outra.

Por sua vez, esta relação é representada pelas leis, que são “as últimas determinações estruturais que compõem a formação do corpo político e que derivam da constituição posta em vigor e ligada ao movimento da vida...” (Idem. p. 90). Noutro momento, ele ressalta a distinção necessária existente entre lei e decreto.

A lei pertence à esfera das formas estruturais da autoridade; o decreto, à esfera do exercício essencial da autoridade... Uma lei é uma regra geral e durável (geral, isto é, fixando no corpo social certa relação funcional; durável, indo de si para além do momento presente ou da circunstância presente e concebida para não se alterar). Um decreto é uma ordem particular fixando um ponto de fato nos quadros da lei e fazendo parte de dada circunstância por um dado de tempo. (Idem. p. 93)

Dentro da mesma perspectiva personalista, além da lei e da liberdade postas numa dimensão justa que ultrapassa a mera e susceptível corrupção temporal, está também a dimensão da dignidade da pessoa humana. Até aqui, percebe-se que nada em Maritain é tido como banal discussão teorética, ou como debate superficial de problemas da humanidade concernente à política e à sociedade.

Pelo contrário, tudo que ele aborda no campo da democracia está voltado para a realização dos anseios mais profundos do homem. “A democracia pode ser desastrada, grosseira e defeituosa... Entretanto, é a democracia a única via através da qual podem passar as energias progressistas da história humana” (MARITAIN. 1956. p. 74).

 

 

REFERÊNCIAS

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: MATO, D (2004). Políticas de ciudadania y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: Faces - Universidade Central de Venezuela.

KINZO, Maria D’Alva G. (2004) Partidos, eleições e democracia no Brasil pós-1985. RBCS, São Paulo, v. 19, n.54.

MARITAIN, Jacques. (1956) O homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir.

_________________ (1999) Por um humanismo cristão. São Paulo: Paulus.

_________________ (1946) Princípios de uma política humanista. Rio de Janeiro: Agir.

_________________ (1967) Sobre a filosofia da história. Trad. Edgar de Godoi da Mata Machado. São Paulo: Herder.

MOISÉS, José Alvaro. (1989) Dilemas da consolidação democrática no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n.16.

POZZEBON, Paulo Moacir Godoy (1998). Fundamentos do pensamento democrático de Jacques Maritain. Londrina: UEL.

SUNG, Jung Mo; SILVA, J. C (1995). Conversando sobre ética e sociedade. Petrópolis: Vozes.



[1] Esta, sim, é a obra que Maritain esclarece os pontos acerca da democracia sob diversas perspectivas e a partir de conceitos específicos que nela são enfatizados.