A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) gerou muita polêmica ao publicar, no mês passado, uma decisão embasada na legalidade da prisão em flagrante fundamentada no testemunho exclusivo de policiais militares, sendo desnecessários os testemunhos civis. A alegação formulada pela defesa no processo, de que a prisão não poderia ser consumada, vez que o próprio policial que conduziu o suspeito à delegacia fora o mesmo que sustentou a acusação, atrelada ao fato de que as outras testemunhas do ocorrido também eram policias militares, não lograram êxito. O desembargador Celso Limongi, relator do habeas corpus (152392), fundamentou a decisão com base em jurisprudências do STJ, embora pertencentes à corrente minoritária, para rejeitar as preliminares arguidas pela defesa quanto à necessidade de testemunhas civis para que se possa prosseguir com a prisao em flagrante, instaurando assim, o inquérito policial. Confira-se, nesse sentido, o seguinte precedente que sustentou o voto do relator:
HABEAS CORPUS ? NULIDADES PROCESSUAIS ? FALTA DE EXAME DA MATÉRIA PELO TRIBUNAL A QUO ? SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA ? EXCESSO DE PRAZO ? CULPA EXCLUSIVA DA DEFESA ? PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO ? INEXISTÊNCIA DE TESTEMUNHAS CIVIS ? FLAGRANTE PREPARADO ? INVIABILIDADE DO EXAME DA TESE NA ESTREITA VIA DO HABEAS CORPUS ? REFUTAÇÃO ? FUNDAMENTAÇÃO SATISFATÓRIA NA DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE RELAXAMENTO ? PRIMARIEDADE, BONS ANTECEDENTES, RESIDÊNCIA FIXA E OCUPAÇÃO LÍCITA. ORDEM DENEGADA. (...) O auto de prisão em flagrante delito prescinde de testemunhas civis para se manter formalmente perfeito. (...)

(HC 81193 / GO, relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), DJ 17/09/2007)


Vale ressaltar também que o relator não considerou as afirmações da defesa de que suas alegações não foram examinadas pelas instâncias ordinárias relativas à liberdade provisória.
Ocorre que, ao tomar tal decisão, no que tange à dispensa das testemunhas civis, a Turma não levou em consideração certos preceitos que se encontram petrificados na Constituição Federal, além de outros fatores que envolvem a reputação e conduta dos policiais militares, que serão expostos a seguir.
Primeiramente, uma das maiores críticas acerca do tema diz respeito ao caráter inquisitivo que é atribuído a casos como este. Isso porque ao se prosseguir com a prisão em flagrante delito apenas com base no depoimento de policias, a parte tem o seu direito lesado, não tendo acesso às garantias fundamentais do contraditório e ampla defesa, ferindo assim o devido processo legal. Tal restrição dá margem para instauração de um inquérito pautado no autoritarismo, sendo conduzido com base apenas em juízos de valor do delegado responsável pelo caso, julgando o que achar pertinente ou não dentro do que lhe foi apresentado e assim, proceder com as investigações, realizando as diligencias do modo como lhe aproveita.
Cumpre ressaltar que os princípios constitucionais referentes ao contraditório e ampla defesa não são aplicáveis à fase inquisitorial. A privação da liberdade, in casu, está adstrita a depoimentos cujo teor possui presunção de veracidade.
Em segundo lugar, pode-se dizer que decisões como esta também deveriam ser tomadas com mais cautela por parte dos magistrados ao se levar em conta a falta de preparação que atinge grande parte dos nossos militares. Não raramente, convivemos com diversas situações onde é nítido o abuso de poder por parte dos policiais, que às vezes poderiam resolver os conflitos de maneira contenciosa, mas preferem recorrer à injustiça. Acabam por muitas vezes, prendendo alguém que não tem culpa do fato pelo qual é considerado suspeito por mero despreparo, ainda mais quando essa pessoa não tem direito de se defender, já que o inquérito policial será instaurado tendo por base, apenas, afirmações policiais.
Essa atitude também ilustra uma grande afronta ao princípio da presunção de inocência, ocorrendo uma generalização e um preconceito diante de todos que chegam a uma delegacia, vez que em inúmeras situações o acusado deve ficar a mercê da justiça em uma cadeia pública junto a bandidos já condenados, ignorando-se o fato de ter ou não residência fixa, ser réu primário, estar ou não comprovada a autoria, dentre outros fatores, ocasionando transtornos irreparáveis ao indiciado com base, tão somente, nos depoimentos policiais. Isso sem falar dos diversos casos onde policiais distorcem a verdade para se beneficiarem de alguma forma, ou meramente por abusar do exercício da autoridade que detém, ultrapassando os limites da fé pública que lhes é confiada. Quanto a essa presunção de veracidade, corrobora a jurisprudência:

"O VALOR DE DEPOIMENTO TESTEMUNHAL DE SERVIDORES POLICIAIS ESPECIALMENTE QUANDO PRESTADOS EM JUÍZO, SOB A GARANTIA DO CONTRADITÓRIO - REVESTE-SE DE INQUESTIONÁVEL EFICÁCIA PROBATÓRIA, NÃO SE PODENDO DESQUALIFICÁ-LO PELO SÓ FATO DE EMANAR DE AGENTES ESTATAIS INCUMBIDOS, POR DEVER DE OFÍCIO DA REPRESSÃO PENAL. O DEPOIMENTO TESTEMUNHAL DE AGENTE POLICIAL SOMENTE NÃO TERÁ VALOR QUANDO SE EVIDENCIAR QUE ESSE SERVIDOR DO ESTADO, POR REVELAR INTERESSE PARTICULAR NA INVESTIGAÇÃO PENAL, AGE FACCIOSAMENTE OU QUANDO SE DEMONSTRAR - TAL COMO OCORRE COM AS DEMAIS TESTEMUNHAS - QUE AS SUAS DECLARAÇÕES NÃO ENCONTRAM SUPORTE E NEM SE HARMONIZAM COM OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS IDÔNEOS" (HC 73.518-5, REL. CELSO DE MELLO - DJU - 18.10.96, P. 39.846).

Por todo o exposto, restou comprovado o quanto esse tema deve ser tratado de maneira mais cautelosa, vez que ao prosseguir com a prisão e consequente instauração do procedimento do inquérito, pautado única e exclusivamente no depoimento de policiais, muitas vezes pode se verificar não somente injustiças, vez que restringe, e muito, a possibilidade de defesa do investigado, como também uma verdadeira afronta ao principio da dignidade da pessoa humana.