Nélio Antônio Brito Filho: Aluno do 10º período da UNDB – São Luís/MA

 

 

 

A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO SUCESSÓRIO

 

 

 

RESUMO

 

 

O artigo ora apresentado tem por objetivo expor os efeitos sucessórios advindos da prática da fecundação artificial post mortem diante da lacuna existente quanto à proteção do direito patrimonial do concebido por essa técnica de reprodução assistida. Observa-se que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597 dispôs sobre a presunção de paternidade, considerando como concebidos na constância do casamento os filhos frutos da inseminação artificial homóloga, ainda que realizada após a morte do marido. O maior problema, no entanto, reside na sucessão do filho concebido postumamente, já que o artigo 1.798 desse diploma civil resguarda direitos sucessórios apenas aos nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão. Como não há, até o momento, legislação que regulamente o assunto, abre-se lugar para intensas discussões doutrinárias. De um lado, alguns admitem amplos efeitos ao nascido por concepção post mortem, com relação à filiação e à sucessão legítima, com fundamento no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, enquanto outros apenas reconhecem a presunção de paternidade, desde que haja o consentimento prévio do falecido, concordando com a concepção do filho após a sua morte.

 

 

  1. 1.    Introdução

 

Os estudos científicos na área da biotecnologia conduziram ao aparecimento de técnicas revolucionárias envolvendo a reprodução humana, com repercussão imediata no meio jurídico. Dentre essas técnicas, figura a inseminação artificial homóloga post mortem, técnica de reprodução assistida que consiste na utilização do sêmen congelado para a fertilização da mulher após a morte de seu marido, prática essa mencionada no que concerne às presunções de paternidade, conforme disposição expressa contida no inciso III do art. 1.597 do Código Civil pátrio, versando que “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por: III – fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”.   

O grande questionamento que se faz acerca dos efeitos da filiação nesses casos figura-se quanto aos direitos sucessórios do infante concebido após a morte do pai, já que o artigo 1.798 do Código Civil expõe que “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.

Ora, resta claro que ao momento da abertura sucessória não há que se falar em concepção, muito menos em nascimento, do infante que, por ventura, venha a ser gerado pelo emprego da técnica de inseminação homóloga post mortem. Desse modo o Código Civil mostrou-se indubitavelmente omisso quanto aos efeitos patrimoniais advindos da filiação no caso em tela.

No desenvolvimento do artigo, será exposta uma sucinta explanação sobre a reprodução assistida no Brasil, analisando as técnicas de reprodução assistida, inclusive quanto ao tema central da pesquisa, a inseminação artificial post mortem.

Em um segundo momento, será abordado o direito sucessório no ordenamento jurídico pátrio, expondo as espécies de sucessão e o princípio de saisine.

Por fim, será analisada especificamente a questão sucessória do ser gerado pela técnica homóloga post mortem, expondo-se as posições doutrinárias sobre esse tema controverso

 

  1. 2.            A reprodução assistida no Brasil

 

 

2.1 Breves considerações históricas

 

 

Antes de adentrar em terreno pátrio, cumpre ressaltar que as técnicas de reprodução assistida, a partir do século XX, foram muito desenvolvidas, aperfeiçoadas e, por conseguinte, mais utilizadas pela sociedade. É nessa toada que, em 1940, surgem nos Estados Unidos, os primeiros bancos de sêmen, nos quais os espermatozóides submetidos ao frio, sem emprego de glicerol, podiam se conservar por extenso lapso temporal, sem alteração de sua viabilidade. Após isso, em 1978, pôde-se observar um grande passo da biotecnologia com o nascimento de Louise Brown por intermédio de fertilização in vitro, sendo conhecida como a primeira “bebê de proveta” do mundo. (SCALQUETTE, 2010, p. 57) 

A partir do nascimento de Louise, amplamente divulgado pelos meios de comunicação da época, as práticas biomédicas na área de reprodução assistida se propagaram bastante e passaram a ser uma realidade bem presente na sociedade, trazendo questões como o congelamento de espermas e embriões, as práticas heterólogas de reprodução assistida, inclusive para pessoas solteiras, e a técnica post mortem. (GAMA, 2003, p. 673)

No Brasil não foi diferente. Em âmbito nacional, os avanços tecnológicos na reprodução assistida foram assimilados e experimentados. É nessa senda que, em 07 de outubro de 1984, no Paraná, nasceu Anna Paula Caldeira, a primeira criança brasileira resultante da concepção com o recurso da fertilização in vitro, realizado pela equipe do médico Milton Nakamura. (BARBOZA, 1993, p. 35).

Após isso, nos anos seguintes, ocorreu no país uma profusão de nascimentos através das técnicas de reprodução assistida, sinalizando o domínio dos procedimentos pela comunidade científica, tornando-se cada vez mais comum a realização de procriação artificial. Desse modo, no Brasil, cerca de 190 clínicas de reprodução humana, nas quais são realizados mais de 15.000 ciclos de fertilização, o que resulta em aproximadamente 4.000 nascimentos por ano.

Importante mencionar que, em junho de 2011, após a professora curitibana Kátia Lenerneir obter da prestação judicial o direito de reproduzir com sêmen do seu marido já falecido, nasceu Luiza Roberta, fruto da inseminação artificial com o material genético de seu pai já morto ao tempo da concepção.  

 

2.2.       Das técnicas de reprodução assistida

 

 De início, convém mencionar que as técnicas de procriação assistida podem ser agrupadas em duas ordens que variam de acordo com o local da fecundação (dentro ou fora do organismo materno). Sendo assim, a fecundação pode ocorrer in vivo, ou seja, no próprio corpo feminino, ou in vitro, que se dá fora do organismo feminino, mais especificamente em laboratório.

Além disso, as técnicas de reprodução assistida são classificadas também de acordo com a origem dos gametas. Pode-se recorrer a duas modalidades: a homóloga (material genético proveniente do casal que assumirá a filiação) e a heteróloga (utilização de gametas provenientes de um terceiro). No mesmo sentido, tem-se a lição de Arnaldo Rizzardo (2002, p. 510): “Diz-se homóloga a inseminação quando o sêmen e o óvulo pertencem ao marido e à esposa; e heteróloga será se um destes elementos é doado por estranho”.

Apontadas essas nuances referentes à reprodução assistida, é importante expor as mais comuns técnicas desenvolvidas pela biotecnologia, quais sejam: Inseminação artificial, fertilização in vitro, transferência intratubária de gametas, transferência intratubária de zigoto, transferência peritonial de gametas e a gestação de substituição.

A inseminação artificial é o procedimento mais utilizado dentre as técnicas de reprodução assistida disponíveis. Trata-se, segundo Belmiro Welter (2003, p. 217), de uma técnica pela qual “o material genético do homem é depositado diretamente na cavidade uterina da mulher, não por meio de um ato sexual, mas, sim, assexual (artificial), cuja utilização é dirigida ao casal fértil com dificuldade para fecundar naturalmente”.

Já a fertilização in vitro ou FIVETE (fertilização in vitro e transferência de embriões), conhecida também como técnica de concepção do “bebê de proveta”, trata-se de um procedimento mais dificultoso, já que a fecundação ocorre em laboratório, de forma extra-uterina. De acordo com Heloisa Helena Barboza (1993, p. 73), a fecundação in vitro ou ectogênese é “a técnica mediante a qual se ligam in vitro os gametas masculino e feminino, em meio artificial adequado, propiciando a fecundação e formação do ovo, o qual, já iniciada a reprodução celular, será implantado no útero materno”.

Por sua vez, a transferência intratubária de gametas, conhecida pela sigla GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer) é uma técnica pouco utilizada que consiste na introdução simultânea do espermatozóide e do óvulo nas trompas de Falópio, local em que acontecerá naturalmente a fecundação.  Desse modo, com o auxílio de uma agulha muito fina, óvulos são retirados dos ovários e são transferidos, juntamente com os espermatozóides, para as trompas de Falópio, onde ocorre a fecundação. (PISETTA, 2005, p. 1)

A transferência intratubária de zigoto, conhecida como ZIFT (Zygote Intra Fallopian Transfer), sendo que nesta técnica ocorre a transferência do zigoto, que é a fusão do espermatozóide e óvulo, para as tubas uterinas do zigoto, fusão do espermatozóide e óvulo. Portanto, após recolhimento e seleção de oócitos e espermatozóides, pelas mesmas técnicas da fertilização in vitro, os gametas são postos em contato, em meio de cultura adequado, durante 18 a 24 horas. Após a fecundação, realiza-se uma laparoscopia e transfere-se o zigoto para as trompas de Falópio. Esse procedimento, assim como o GIFT, não é utilizado em grande escala, visto a baixa porcentagem de sucesso (SCALQUETTE, 2010, p. 72).

Já a transferência peritonial de gametas, também conhecida como POST (Peritoneal Oocyte Sperm Transfer), é um procedimento utilizado para a recuperação de óvulos, que serão introduzidos, em conjunto com o sêmen, no peritônio.  Neste caso, a transferência ocorre no interior do peritônio, distinguindo-se, assim, da GIFT e ZIFT, nas quais a transferência é feita no interior das trompas do sistema reprodutor feminino. Ademais, convém ressaltar que peritônio é a membrana serosa que reveste interiormente as cavidades abdominal e pélvica. (PISETTA, 2005, p. 1)

Por fim, a gestação de substituição não deve ser considerada propriamente uma técnica de reprodução assistida, mas sim um modo de aplicação das técnicas listadas acima. Consiste, como a própria expressão sugere, na gestação de uma criança por uma mulher que não assumirá o efetivo papel materno, entregando-a, após o nascimento, àquela que o exercerá. (GAMA, 2003, p. 748)

Visto esses esclarecimentos, pode-se notar que da inseminação artificial homóloga, desdobra-se também a técnica post mortem, caracterizada pela criopreservação do material genético masculino e sua eventual utilização após o óbito do cônjuge varão.

 

 

  1. 3.    O Direito sucessório no ordenamento jurídico pátrio

 

 

O vocábulo sucessão, em sentido amplo, significa o ato pelo qual uma pessoa assume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de determinados bens. Contudo, no direito das sucessões, o vocábulo é utilizado em sentido estrito, designando apenas a decorrente da morte de alguém, ou seja, a sucessão causa mortis. Nesse sentido, Maria Helena Diniz discorre que:

 

Sucessão é a transferência, total ou parcial, de herança, por morte de alguém, a um ou mais herdeiros. É a sucessão causa mortis que, no conceito subjetivo, é o direito por força do qual alguém recolhe os bens da herança, e, no conceito objetivo, indica a universalidade dos bens do de cujus, que ficaram com seus direitos e encargos (DINIZ, 2012, p. 26)

 

Nesse diapasão, conforme Maria Berenice Dias (2011) constatada a morte do autor da herança, abre-se a sucessão, transmitindo-se de pronto o patrimônio do falecido aos seus herdeiros, em respeito ao princípio de saisine – instituto advindo dos tempos feudais, sistema da era medieval com maior domínio na França, admitido no Direito brasileiro no vigente Código Civil -, que consiste em uma ficção jurídica segundo a qual os bens do falecido são transmitidos no momento da morte aos seus herdeiros. Também tratando do princípio em comento, Giselda Hironaka dispõe que:

 

Nenhum ato do herdeiro se faz necessário para que a herança lhe seja deferida no momento exato em que se abre a sucessão. Morto o autor da herança, esta se transfere de pleno direito e imediatamente aos herdeiros legais ou instituídos, ainda que estes não tenham sequer tomado conhecimento da morte ocorrida e mesmo que não venham a saber dela por sobrevir-lhes morte posterior. (HIRONAKA, 2007, p. 9)

 

Hodiernamente, o preceito de saisine se revela no Código Civil Brasileiro no artigo 1.784, segundo o qual "aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros, inclusive testamentários". Assim, de acordo com esse dispositivo, após a abertura da sucessão com a morte do autor da herança, também chamado de cujus, os sucessores passarão, independentemente de qualquer ato, a receber a propriedade e a posse dos bens do falecido.  

A sucessão pode ser classificada quanto à fonte de que deriva, sendo dividida em legítima ou testamentária, conforme o artigo 1.786 do Código Civil. Pode, também, ser classificada quanto à forma de destinação dos bens da herança ou seus efeitos, dividindo-se em sucessão a titulo universal ou a titulo singular.

 

3.1. Sucessão quanto à fonte

 

De acordo com o artigo 1.786 do diploma civil atual, “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”. Observa-se, portanto, que quanto à fonte as espécies de sucessão presentes no ordenamento jurídico pátrio correspondem à sucessão legítima, proveniente dos preceitos da lei, e à sucessão testamentária, atinente à disposição de última vontade do indivíduo. (PISETTA, 2005, p. 3)

 A sucessão legítima é aquela que resulta da lei. De acordo com Eduardo de Oliveira Leite:

 

Sucessão legítima é a que, na falta de disposição testamentária do de cujus, a lei defere aos seus parentes, reforçando o vínculo familiar e atendendo à vontade presumida do defunto. O seu fundamento maior continua sendo a preocupação social com a unidade e a solidariedade da família. [...] A sucessão legítima baseia-se, pois no vínculo de família, de sangue e de afinidade. E verifica-se quando existem herdeiros legítimos (necessários ou facultativos); quando não há disposição testamentária. (LEITE, 2003, p. 4)

 

 

  O fundamento legal para a sucessão legítima encontra-se no artigo 1.788 do Código Civil, que dispõe:

 

Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.

 

 No que tange à ordem da vocação hereditária, a sucessão legítima será deferida às pessoas expressamente elencadas no artigo 1.829 do Código Civil, quais sejam: “I - aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente[...]; II -aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais”.

 Importante registrar que a relação de herdeiros disposta nesse artigo é preferencial, de sorte que uma classe só será chamada quando faltarem herdeiros da classe precedente. Desse modo, o legislador inspirou-se, ao elaborar essa ordem, na tradição familiar herdada de civilizações passadas, na qual o direito de propriedade prevalece, subentendendo que o falecido queria deixar seu patrimônio com os seus familiares. (LEITÃO, 2011, p. 17)

  Já a sucessão testamentária, como sugere o próprio nome, é aquela oriunda de testamento válido ou de disposição de última vontade.

Assim, a transmissão da herança é realizada por meio de testamento, que é ato solene pelo qual se manifesta a vontade de uma pessoa no sentido de dispor de seu patrimônio. De acordo com Maria Berenice Dias essa espécie de sucessão:

 

Ocorre quando houve manifestação de vontade da pessoa – claro enquanto viva esteja – elegendo quem deseja que fique com seu patrimônio depois de sua morte. A sucessão legítima é a regra e a testamentária, a exceção. Os herdeiros testamentários só recebem o que lhes deixou o testador se existirem bens depois de pagas as dívidas do espólio e estiver garantida a legítima dos herdeiros necessários. (DIAS, 2011, p. 114)

 

O instituto do testamento é pouco utilizado no Brasil. Aqui, a transmissão do patrimônio por causa mortis é mais comumente realizado pela sucessão legítima. Isso se dá por causa das normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, que limitam a liberdade do testador, determinando que a parte disponível para testar seja, conforme visto, aquela que restar do montante reservado ao pagamento das dívidas e a parte destinada à legítima. Com isso, se o testador tiver herdeiros necessários, ou seja, cônjuge supérstite, descendentes e ascendentes suscetíveis, só poderá dispor de metade de seus bens, de acordo com o artigo 1.789. Sendo que, a outra metade constitui a legítima desses herdeiros necessários. (PISETTA, 2005, p. 3)

Importante notar que essas duas modalidades estão previstas em nosso ordenamento legal, mas, quando não houver ou não puder ser cumprido o testamento, prevalecerá a vocação legítima.

Além disso, nada obsta que estas duas modalidades possam ocorrer simultaneamente. Daí a ocorrência da denominada sucessão mista, concorrendo à herança herdeiros legítimos e testamentários. (DIAS, 2011 , p. 116)

 

 

3.2 Sucessão quanto aos efeitos

 

 

Como visto acima, quando ocorre a morte de alguém, o seu patrimônio transmite-se aos herdeiros elencados pela lei ou escolhidos pelo falecido através do testamento. Porém a liberdade do testador é limitada quando existirem herdeiros necessários, já que o autor da herança só poderá dispor da metade dos seus bens. Tal distinção permite que sucessão seja classificada pelos seus efeitos, podendo ser: a título universal ou a título singular.

 A sucessão a titulo universal acontece, conforme Maria Helena Diniz (2012b, p. 31), quando houver a transferência da totalidade do patrimônio ou de uma fração indeterminada dele, abarcando tanto o ativo quanto o passivo.  Nesse sentido dispõe José Cahali e Giselda Hironaka:

 

A sucessão a titulo universal caracteriza-se pela transmissão do patrimônio do defunto como um todo (universitas juris), atribuindo-se de forma abstrata, aos sucessores, as respectivas partes ideais (ou cotas hereditárias, em percentual), podendo ser verificada tanto na sucessão legítima como na testamentária, esta última quando o testador instituiu herdeiro em fração de herança. Por. ex., deixo para A 30% da herança. (CAHALI; HIRONAKA, 2003, p. 53)

 

De acordo com Maria Berenice Dias (2011 , p. 111), o herdeiro a título universal – quer legítimo, quer testamentário – “sub-roga-se abstratamente na posição do falecido, pois recebe tanto o ativo como o passivo, encargos e dívidas referentes à parte ideal que recebeu”.

 

Na sucessão a titulo singular, o testador se dispõe a transferir a alguém um bem destacado, como um automóvel, um imóvel, um colar valioso, Nessa situação, quem recebe, através de testamento, bens determinados e perfeitamente individualizados é chamado de legatário. Conforme entendimento de Maria Berenice Dias:

 

O legatário sub-roga-se exclusivamente com relação aos bens que lhe foram destinados. Não representa o falecido e não responde pelas dívidas e encargos da herança. [...] O legatário herda somente o bem designado no testamento, não assumindo o passivo deixado pelo falecido. Mas as obrigações concernentes ao bem legado ao de sua responsabilidade. (DIAS, 2011, p.112)

 

Com isso, quando a sucessão mostra-se a título singular não se responde pelas dívidas do espólio, não sendo o legatário representante do falecido.

 

 

 

 

 

  1. 4.            Direito sucessório do concebido por inseminação homóloga post mortem

 

 

 

Como já visto em linhas iniciais, a lei trata explicitamente das técnicas de reprodução assistida quando elenca as presunções de filiação, constantes no artigo 1.597 do Código Civil. Por outro lado, o mesmo diploma legal é silente quanto à sucessão decorrente dessas técnicas, pois não se encontra qualquer dispositivo quanto aos reflexos do emprego dos procedimentos de reprodução assistida na seara do direito sucessório.

O artigo 1.798 do Código Civil dispõe que somente estão legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. E, conforme exposto anteriormente, o princípio da saisine, vigente em nosso ordenamento jurídico, preceitua que todo o patrimônio se transmite imediata e automaticamente aos herdeiros logo após a morte do autor da herança. De acordo com Maria Berenice Dias:

 

 A lei faz referência às técnicas de reprodução assistida exclusivamente quando estabelece presunções de filiação. De forma injustificável, não há qualquer previsão dos reflexos do uso desses procedimentos no âmbito sucessório. O legislador, ao formular a regra contida no art. 1.798 do CC, não atentou para os avanços científicos na área da reprodução humana, ao referir somente as pessoas já concebidas. Mais um cochilo que traz muitas incertezas. (DIAS, 2011 , p. 122)

 

Assim, quando se trata de inseminação homóloga post mortem a questão acaba sendo tortuosa, já que não há de se falar em concepção, muito menos em nascimento, quando da morte do de cujus. Isso ocorre porque, ao tempo do falecimento apenas existem espermatozóides e óvulos criopreservados. Desse modo, quando restar empregada essa técnica de reprodução assistida após a morte do cônjuge varão, há a presunção de filiação (artigo 1.798, III CC), porém os reflexos sucessórios não estão resguardados no âmbito legal, já que não há ser humano nascido ou ao menos concebido à época da abertura da sucessão.

Diante da ausência legal quanto à sucessão do concebido por inseminação homóloga póstuma, coube à doutrina se posicionar sobre esse tema controverso. Alguns se posicionam à favor de se resguardar os direitos sucessórios do concebidos post mortem; outros são contra os reflexos sucessórios ao infante gerado pela técnica assistida em comento, por respeito ao princípio de saisine e da segurança jurídica, vigentes na legislação brasileira.

Conforme leciona Maria Berenice Dias (2011 , p. 123), não se pode dar mais respaldo a uma ficção jurídica do que ao princípio constitucional da igualdade assegurada à filiação, sendo que, nada justifica excluir o direito sucessório do herdeiro concebido post mortem.  Afirma também que o filho biológico gerado pela técnica assistida homóloga póstuma deve ser considerado herdeiro legítimo necessário, já que o desejo do genitor decorreu de um planejamento realizado ainda em vida, não devendo ser revogado pelo seu falecimento, independentemente de prazos preestabelecidos.  Nesse mesmo sentido dispõe Ana Cláuda S. Scalquette:

 

[...] Os direitos sucessórios devem sim ser garantidos aos filhos advindos do emprego das técnicas de reprodução artificial post mortem, em estrito cumprimento aos mandamentos constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e direito à herança, em razão da admissão expressa da presunção de filiação a eles atribuída pelo art. 1.597 do atual diploma civil, embora dentro de determinados limites que devem ser previstos legalmente, a fim de que seja evitada a insegurança das relações jurídicas no que tange à transmissão da herança e sejam igualmente resguardados os direitos dos demais herdeiros. (SCALQUETTE, 2010, p. 221)

 

Também corroborando o entendimento no qual devem ser resguardados os direitos sucessórios do concebido post mortem, José Luiz de Almeida assevera que:

 

Os filhos nascidos de inseminação artificial homóloga post mortem são sucessores legítimos. Quando o legislador atual tratou o tema, apenas quis repetir o contido no Código Civil anterior, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, hoje a possibilidade existe. O legislador, ao reconhecer efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. (ALMEIDA, 2003, p. 104)

 

Em sentido contrário, não admitindo os efeitos sucessórios ao concebido postumamente, Caio Mário Pereira (2004, p. 318) afirma que não é possível resguardar direitos sucessórios daquele que foi concebido por inseminação artificial post mortem, sendo necessário haver reforma legislativa a fim de prever tal situação, até mesmo para atender ao princípio constitucional de não-discriminação de filhos.

Adepto desse entendimento, Sílvio Venosa (2012, p. 242), dispõe que o filho proveniente dessa técnica não pode ser aceito como herdeiro do pai, pois aquele ainda não vivia e nem havia sido concebido na ocasião da abertura da sucessão, situação esta que não se coaduna ao disposto no artigo 1.798 do Código Civil.

Na visão de Guilherme Nogueira da Gama (2003, p. 1000), o filho nascido de inseminação artificial post mortem, não obstante ter garantido o estabelecimento da paternidade, restaria sem direitos sucessórios, ensejando apenas, de acordo com o pensamento do autor, a possibilidade filho tentar a reparação do dano, arguindo a responsabilidade civil da mãe, que o privou da herança deixada pelo pai, ao ficar fora da sucessão.

Ainda argumenta a doutrina contrária à sucessão do concebido post mortem que o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil de 2002, não fincou um limite temporal para que ocorra a concepção mediante essa técnica, sendo problemática a espera por tempo indeterminado de eventual utilização do material criopreservado do de cujus. É claro que a dinâmica da sucessão está vinculada ao desenlance da situação em pouco lapso temporal, ou seja, a curto prazo, sendo que, admitida a importância sucessória no caso de reprodução póstuma, seria praticamente impossível a fixação precisa dos herdeiros e a partilha restaria indefinidamente sujeita a alteração (PEREIRA, 2004, p. 31).

Importante mencionar que, no campo doutrinário, também existe corrente que defende que o filho concebido post mortem só teria direito sucessório se assim dispusesse testamento, mencionando a possibilidade de sucessão da prole eventual.  O artigo 1.799 do Código Civil assim dispõe: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”. 

Nesse aspecto, Maria Helena Machado (2003, p.32) assevera que a sucessão testamentária de prole eventual, prevista no dispositivo supracitado, não alcança o filho havido por essa modalidade de fertilização artificial, pois o texto não se refere ao próprio filho resultante da inseminação com material genético do testador, mas sim aos filhos de outras pessoas elencadas por ele.

Ainda que haja a disposição testamentária no afã de resguardar a sucessão, daí decorrem algumas questões pontuadas por Guilherme Nogueira da Gama, que diz:

 

  [...] há questões importantes relacionadas à validade, eficácia e revogação dos testamentos em geral que tornam bastante frágil a proteção que o ordenamento jurídico poderia conferir à criança a nascer. Talvez fosse o caso de – em se admitindo a legitimidade do emprego de tal técnica, o que é questionável – se estabelecer na lei a insuscetibilidade da disposição testamentária sobre essa matéria ser revogada, a exemplo do que ocorreu, a respeito da revogação, no artigo 1º, § 1º, da Lei nº 883/49 [319], acerca da disposição testamentária que reconhece filho extramatrimonial que não poderia mais ser revogada. Mas tal disposição não alteraria o sistema existente quanto à invalidade e à ineficácia da disposição, o que tornaria a situação do futuro filho do falecido bastante instável.  (GAMA, 2003, p. 733)

 

Ao tratar da possibilidade de sucessão testamentária do concebido post mortem, Caio Mário Pereira (2004, p. 31) afirma que esta é transmissão hereditária condicional, sendo subordinada a evento futuro e incerto. Afinal, só participará da sucessão se nascer o filho da pessoa designada pelo testador.

Além disso, para essa corrente, consoante o §4º do artigo 1.800 do Código Civil, deve haver um lapso temporal para que o infante seja concebido post mortem e possa, assim, fazer jus ao direito de herança disposto no testamento. Assim, o legislador entendeu por bem fixar um limite de tempo para que haja a concepção de prole eventual, no intuito de evitar a espera ad eternum. (PISETTA, 2005, p. 3)

 O dispositivo em comento assevera que: “se decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrario, caberão aos herdeiros legítimos”. 

Portanto, quem compartilha do entendimento que apenas a sucessão testamentária é aplicável para resguardar direito sucessório do concebido post mortem, acredita que o prazo para a concepção desse infante tem de ser de até de até dois anos. Diferente o entendimento pelo qual o concebido postumamente deve ter assegurado o direito sucessório legítimo, não devendo, assim, ser estabelecido prazo para a sucessão.

Com os posicionamentos expostos acima, pode-se inferir a diversidade de interpretações doutrinárias sobre o questionamento sucessório abrangendo a técnica de reprodução assistida homóloga post mortem, revelando-se a fragilidade da ordem jurídica em face dessa nova realidade. Enquanto não houver essa regulamentação legal acerca do problema, restará ao poder judiciário dar as respostas para solucionar a situação.

 

 

 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

Com todo o exposto nesse trabalho monográfico, notou-se que os avanços alcançados pela biotecnologia, cada vez mais presentes no seio social, trazem consigo diversas indagações atinentes ao mundo jurídico, o qual não consegue vislumbrar soluções prontas e acabadas a fim de solucionar essas atuais questões que clamam por tutela.

Entre esses novos questionamentos está o tema central dessa pesquisa, qual seja, a inseminação artificial homóloga post mortem e seus reflexos no direito sucessório. 

  No caso do Brasil, não há uma regulamentação específica quanto à utilização das técnicas de reprodução assistida, cabendo apenas ao Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597, inciso III, fazer a única menção sobre essa técnica ao dispor que “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”.

Ainda que bem-vinda essa abertura legislativa, a falta de disciplina e tutela legal dos efeitos e consequências do emprego da técnica de procriação artificial post mortem pode ser sentida principalmente no âmbito do direito sucessório. Isso porque o artigo 1.798 do Código Civil atual afirma que somente estariam legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

Ora, como visto, a sucessão se dá no instante da morte do autor da herança, com a transmissão imediata dos bens aos nascidos ou concebidos. O problema é que o fruto gerado por inseminação homóloga post mortem ainda não é concebido, muito menos nascido, à época da sucessão. Assim, resta evidente o conflito: de um lado o direito dos herdeiros já nascidos ou concebidos ao tempo do falecimento e o secular princípio de saisine, pelo qual os bens do falecido são transmitidos no instante da morte aos seus herdeiros; e, de outro lado, a salvaguarda do direito sucessório dos seres em potencial, ou seja, daqueles que poderão ser concebidos após o falecimento do de cujus, sendo reconhecidos presumidamente como filhos.

Para que seja dirimida essa problemática, deve ser imposta uma regulamentação firme e específica da matéria, com a inserção de novos dispositivos legais no Código Civil atual ou através de legislação especial. Urge observar que a temática da inseminação artificial homóloga post mortem não deve ser assunto para meras discussões jurídicas, mas deve, sim, ser regulada ante a realidade vivenciada hodiernamente. Negar essa realidade e a necessidade de sua regulamentação significa fechar os olhos para a efetivação da justiça.

Enquanto a atividade legislativa se mostrar inerte quanto ao tema, afere-se que os filhos advindos da técnica artificial homóloga post mortem, devem ter assegurados seus direitos sucessórios, como herdeiros legítimos, coadunando-se aos princípios constitucionais da igualdade entre os filhos e da dignidade da pessoa humana. Nesse caso, estes princípios devem superar o preceito de saisine e a segurança jurídica dos herdeiros já nascidos ou concebidos à época da sucessão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado. Direito das Sucessões. vol. XVIII. São Paulo: Atlas, 2003.

 

 

BARBOZA, Heloísa Helena. A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização “in vitro”. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.

 

 

CAHALI, José Francisco; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

 

 

DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2. ed. rev. atual e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

 

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das sucessões. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

 

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: O biodireito e as relações parentais. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

 

 

LEITÃO, Camila Bezerra de Menezes. Análise jurídica sobre direitos sucessórios decorrentes da inseminação artificial homóloga post mortem. Publicado em: 2011. Disponível em: <http://www.mp.ce.gov.br/esmp/biblioteca/monografias/dir.familia/analise.juridica.sobre.direitos.sucessorios.decorrentes.da.inseminacao.artificial.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2012.

 

 

LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

 

 

MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida: controvérsias éticas e jurídicas. Curitiba: Juruá, 2003.

 

 

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das sucessões. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

 

 PISETTA, Francieli. A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002. Publicado em: 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20022/a-filiacao-e-o-direito-sucessorio-dos-filhos-havidos-por-inseminacao-artificial-e-fecundacao-in-vitro-homologas-post-mortem-frente-ao-codigo-civil-brasileiro-de-2002>. Acesso em: 10 mar. 2012.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

 

 

SCALQUETTE, Ana Cláudia S. Estatuto da reprodução assistida. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

 

 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

 

 

WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.