A influência da mídia como legitimadora do sistema PENAL:

o caso da lei dos crimes hediondos

 

                                                                     André Luís Oliveira [1]

Filipe Franco

Sumário: 1  Introdução; 2 A Mídia como legitimadora do sistema penal;  3 Comentários sobre a lei de crimes hediondos; 4 Mídia sensacionalista – o programa ‘Linha Direta’ da rede globo;  Conclusão;   Referências.

RESUMO

 

 

Procura-se neste artigo caracterizar a influência da mídia como legitimadora do sistema penal, sob o enfoque da lei de crimes hediondos como símbolo dessa legitimação. A pesquisa consiste numa visão critica da atividade desempenhada pelos meios de comunicação, analisando suas características e sua influência na legitimação de discursos de política criminal.

PALAVRAS-CHAVE

Mídia. Sistema Penal. Lei dos Crimes Hediondos.

 

1  INTRODUÇÃO

As distorções das forças de natureza político, econômica e social e o embate entre os mecanismos de produção e seus impulsionadores econômicos, ou seja, entre o capital e o trabalho, empregado e empregador, renda e consumo, ricos e pobres, tem favorecido o crescimento dos conflitos em todo o mundo. Esse fenômeno é antigo na consolidação do Estado brasileiro, na medida em que grupos hegemônicos, ao longo de nossa história, comandaram a concentração de renda, das propriedades e o acesso às estruturas de poder, favorecendo o servilismo, o clientelismo, o nepotismo e o populismo no século XX, onde se buscam soluções simples para problemas da mais alta complexidade, como é o caso da segurança publica e do sistema penal como um todo. 

Ao se considerar a relevante tendência de criminalização da pobreza pela seletividade decorrente da atividade das agências de repressão do sistema penal, a mídia demonstra estar orientada mais por uma ideologia de tutela da propriedade do que pelo princípio da dignidade humana previsto na Constituição Federal. Nesse momento o Estado Democrático de Direito transforma-se num verdadeiro ‘Estado Penal’.

O Estado democrático de Direito é uma evolução humana, uma garantia de sobrevivência do homem neste mundo capitalista. Este foi criado para suprir as conseqüências nocivas da ideologia Liberal. Para garantir isso interveio historicamente o Estado.

Torna-se necessário esclarecer o sentido do termo mídia, ora utilizado neste trabalho. Para Juvenal Zancheta Júnior[2], mídia significa “o conjunto dos diversos meios produtores e difusores de mensagens informativas (...) O jornal e a revista entre outros suportes, compõe a mídia impressa (...) Já a televisão e a internet atuam no campo da mídia audiovisual. Estes meios compõem a chamada mídia de massa”.

Este artigo pretende investigar o papel ou ‘parceria’ da mídia com o sistema penal, para tal fim abordaremos o caso da lei n° 8072, de 25 de julho de 1990, mas conhecida como lei dos crimes hediondos, como símbolo dessa influência da na fundamentação do sistema penal.

2 A Mídia como legitimadora do sistema penal

Num primeiro momento o discurso midiático na Escola positivista asseverava que

“[...] a imprensa legitimou intensamente o poder punitivo exercido pela ordem burguesa, assumindo um discurso defensista-social, que pretendendo enraizar-se nas fontes liberais ilustradas, não lograva disfarçar seus encantamentos com os produtos teóricos do positivismo criminológico que naturalizava a inferioridade biologica dos infratores”.[3]

Na modernidade neoliberal, a mídia aborda o sistema penal sob vários aspectos, mas entre eles principalmente como controle da propriedade, o que se reflete na própria legislação. O sistema penal, segundo seus princípios, é subsidiário, fragmentário e de intervenção mínima e segundo o princípio da “última ratio” o seu “jus puniendi” só se legitima como última medida.

Percebe-se que existem muitos outros meios de controle social, o sistema penal não é uno, mas para problemas de natureza econômica, outros controles não seriam tão eficazes quanto o penal, e por isso, a mídia se utiliza primeiramente daquele, mas quando o faz esquece do princípio da proporcionalidade, omissão esta embutida nas próprias políticas criminais que repete, considerando o desigual como igual na hora de encarcerá-lo.

Tal prática consiste numa forma de controle penal do contingente humano de excluídos que caracteriza o vigente neoliberalismo. Valendo-se de recursos audiovisuais, a mídia televisiva reconstitui fatos verídicos e ‘implicitamente’ manifesta sua opinião acerca de determinado assunto discutido. Ao considerar empírica e historicamente tal discurso, e sua abrangência social absoluta que atinge os mais diversos setores da sociedade, inclusive no pensamento universitário, o fruto do estudo dos especialistas acadêmicos, normalmente submetidos à constatação cientifica, à negação dialética entre outras técnicas científicas de pesquisa, em uma determinada área, é utilizado parcialmente no interesse midiático[4].

De acordo com Vera Regina P. de Andrade, o discurso oficial do fim de século é de que a “Criminalidade está insuportável”, este argumento comprova que a função real do sistema penal não é a paz. A sociedade, manipulada pela mídia, busca o eficientismo penal, movimento que visa à expansão do sistema em todos os sentidos. O sistema penal não tem sido suficiente, portanto deve-se ampliar e expandir o sistema, com objetivos ‘outros’. Isso traduz o processo de regressar a uma eficiência do sistema pela linha garantista, ideologia do bem e do mal, ou seja, o maniqueísmo como matriz cultural do sistema moderno, uma estrutura distintiva de legitimação do sistema penal.   

Segundo Nilo Batista[5] o discurso da mídia

[...]aspira a uma hegemonia, principalmente sobre o discurso acadêmico, na direção da legitimação do dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos penais. Este discurso habilita as agências de comunicação social a pautar agências executivas do sistema penal, e mesmo a operar como elas (executivação), disputando, com vantagem, a seletividade com tais agências. A natureza real desse contubérnio é uma espécie de privatização parcial do poder punitivo[...]

  Aqui se trata de um Direito Penal de emergência onde quem ocupa o espaço vazio da legitimação do sistema é a mídia pelos meios de comunicação. Não é a ciência que vai comandar a fundamentação ou legitimação do Sistema penal, mas sim o espetáculo midiático pela construção social do medo.   

Ora, se temos a idéia de emergência implantada, há que se observar os caminhos que ela percorre, quais sejam, aqueles que chegam aos milhares de brasileiros através da imprensa, ou seja, a mídia em geral. E nesse contexto é inegável o papel da mídia, otimizando o emprego do sistema repressivo, jamais reeducador ou ressocializador com distribuição igualitária de direitos e deveres.

3 Comentários sobre a lei de crimes hediondos

 

Com a intenção de frear a devastadora onda de criminalidade que castigava a sociedade brasileira da época, atingindo índices nunca antes experimentados no país, o legislador constituinte estabeleceu norma, constante do Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, que previa um tratamento jurídico diferenciado a determinadas espécies de delitos que considerava mais graves.

A constituição Federal prevê a seguinte norma

Art. 5º - […]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

De acordo com esse momento histórico e sob a influência de um movimento social da Lei e da Ordem, que se criou exatamente em função dessa paisagem social e que defende uma teoria radical quanto ao combate à criminalidade, através do endurecimento do sistema penal, o que significa a criação de novos tipos penais, o aumento de penas e o rigor no regime de cumprimento, além de outras medidas que visem à repressão firme e incondicional da violência, ou seja, a busca do eficientismo penal. Aliado a isso temos a pressão da opinião pública, manipulada pela mídia sensacionalista que via no crime o resultado das insatisfações humanas e no Direito Penal o remédio para os fracassos da sociedade.

A lei de crimes hediondos foi, como tantas outras, aprovada às pressas, sem uma análise minuciosa por parte dos legisladores, que o fizeram em um momento de clamor popular pela diminuição da criminalidade devido a seqüestros de pessoas influentes que vinham acontecendo. O que, infelizmente gerou, diante de tudo isto, foi uma lei que seguiu em busca de penas mais rígidas para condenados por certos crimes por elas rotulados. Por outro lado, sob o ponto de vista jurídico, se evidencia um retrocesso, por contrariar, em certos artigos e ou incisos, toda a história da pena, que se mostra contrária a penas severas como as impostas por estas lei, além de ir de encontro também a princípios fundamentais constitucionais relacionados à pena, quais sejam individualização, proporcionalidade e humanidade.

Se de um lado a criminalidade, sobretudo a violenta, nos tem causado muita preocupação, vide a banalização do crime, de outro, também é certo que o Estado não está autorizado a desrespeitar a razoabilidade. Não se pode legislar para satisfazer somente a volúpia sangrenta de setores da mídia ou mesmo da população.

Como disse César de Faria Júnior[6], a referida "lei surgiu, sem dúvida, como exigência da sociedade insegura e alarmada com o crescimento dos índices de criminalidade". O novo diploma, afirmou o Desembargador Silva Leme[7], foi "elaborado com a finalidade inequívoca de agravar sanções e excluir mercês legais".

Desta forma conclui-se que a lei de crimes hediondos é um grande exemplo de como não se deve legislar em matéria penal. A ciência penal não pode ser suplantada por pressões sociais manipuladas pela mídia.

 

 

 

4 mídia sensacionalista – o programa ‘linha direta’ da rede globo

 Valendo-se da análise proposta por Nilo Batista, em seu artigo sobre mídia e sistema penal, é relevante a caracterização do programa ‘Linha Direta’ da TV Globo como ilustração das novas funções que a mídia vem desempenhando perante os sistemas penais.

Linha Direta foi um programa da Rede Globo, exibido nas noites de quinta-feira entre 1999 e 2008. O programa dedicava-se a apresentar crimes que aconteceram pelo Brasil e cujos autores estariam foragidos da justiça. Era apresentado primeiramente pelo jornalista Marcelo Rezende, e com a saída deste da emissora, passou para o comando de Domingos Meirelles. Deixou de ser exibido em 2008. A justificativa para tal, de acordo com a Central Globo de Comunicação, em mensagem deixada no site do programa, foi: "A respeito das manifestações de entidades ligadas aos Direitos Humanos pela continuidade do programa Linha Direta - por seu reconhecido interesse público -, informamos que a TV Globo passou a adotar o sistema de temporadas. Mesmo com êxito e importância comprovados, os programas têm sua exibição suspensa, passando por uma reavaliação para nova exibição futura."

De acordo com Nilo Batista a mídia segue diariamente uma espécie de tendencia criminológica, que parte da irrestrita legitimação da pena como modelo eficaz da solução de conflitos. Tal posição que a mídia assume visa reduzir o espectro de análise dos problemas criminais, e ignora a situação dos contigentes humanos marginalizados pela economia neoliberal. Observa, ainda, a coincidência de que o Linha Direta inicia suas caçadas humanas três anos após o processo penal brasileiro ter assumido o princípio de que o acusado tem o direito de conhecer real, e não ficticiamente, a acusação para defender-se (lei n° 9271, de 17 de abril de 1996). E por fim, o autor, nos diz que o programa Linha Direta é um processo e um julgamento público que não devem satisfações à Constituição ou às leis, porém produzem efeitos reais: o mais importante não reside na prisão, e sim no próprio julgamento que fará, por exemplo, o júri de uma cidade do interior, perante o qual provavelmente um promotor zeloso exibirá uma cópia do programa[8].

CONCLUSÃO

 

                        Observa-se que

“O aumento da criminalidade pode estar relacionado com o incremento das desigualdades sociais e econômicas que assolam e desola nosso povo, entretanto ao invés de uma preocupação por parte da mídia em divulgar a realidade ( no sentido de responsabilização dos governantes com a situação vigente) e dos políticos em criar alternativas efetivas de solução para estancar o empobrecimento da população, a primeira divulga sempre com grande sensacionalismo os crimes de repercussão, porque estes dão audiência e os segundos (políticos) defendem o endurecimento do sistema penal pelo rigor da legislação”[9].

                        Conclui-se que, de acordo com o exposto, existe uma profunda relação de influência dos meios de comunicação de massa sobre a propositura e fundamentação do sistema penal. A mídia tem seus próprios interesses, interesses do capital, e assim sendo, essa suposta ‘parceria’ com o Estado é séria e deturpa as verdadeiras funções que norteiam o direito penal, fundamentadas nas teorias legitimadoras da pena; teorias absolutas, relativas e ecléticas de acordo com conceitos de retribuição moral, prevenção geral ou especial, dialética unificadora e direito penal mínimo e garantista.          

             Reforça-se o tema pela produção de leis como a de crimes hediondos que reflete muito mais anseios de uma sociedade amendrontada pela criminalidade do que, propriamente um processo legislativo pautado na coerência e na busca da pacificação social através do Direito. 

             Conclui-se que, de acordo com o exposto, existe uma profunda relação de influência dos meios de comunicação de massa sobre a propositura e fundamentação do sistema penal. A mídia tem seus próprios interesses, interesses do capital, e assim sendo, essa suposta ‘parceria’ com o Estado é séria e deturpa as verdadeiras funções que norteiam o direito penal, fundamentadas nas teorias legitimadoras da pena; teorias absolutas, relativas e ecléticas de acordo com conceitos de retribuição moral, prevenção geral ou especial, dialética unificadora e direito penal mínimo e garantista.   

                        Ademais, juntamente com a influência midiática, o sistema penal ao selecionar  os candidatos mais vulneravéis, que são em regra pessoas desprovidas de meios para defender-se das agências criminalizantes se mostra seletivo, ao contrário do que transmite o Direito Penal por seus princípios.

                        O presente trabalho não esgota a discussão sobre o assunto e se redime pela simplicidade da exposição, pretendendo, ainda, em outro momento fudamentar o debate com novos olhares e novos questionamentos. Espera-se que, o mesmo, tenha alcançado suas finalidades, visando, sobretudo, conscientizar os estudantes da ciência jurídica para a crítica dos novos papéis da mídia no sistema penal.

                           

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da

violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2003.

BATISTA, Nilo (2002). ``Mídia e sistema penal no capitalismo tardio'', in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, p. 271-289 (também disponível em www.bocc.ubi.pt).

BEMFICA, Thaís Vani. Crimes Hediondos e Assemelhados: Questões Polêmicas. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998.

FARIA JÚNIOR, César. Crimes Hediondos, a nova lei, Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, 1990, v. 3, nº 4

MOTA, Guilherme Gustavo Vasques. A influência do discurso criminal da mídia no sistema penal e decorrentes violações ao Estado democrático de Direito. Anais CONPENDI, Manaus 2006. <disponível em http://www.conpedi.org/manaus/anais.php >. Acesso em 18/05/2009.

Zaffaroni, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal; tradução Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Renan, 1991 - 4º ed., junho de 1999.

ZANCHETTA Jr., Juvenal. . Imprensa escrita e telejornal. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2004. 134 p.



[1] Alunos do 3º período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB, turma 2008.1. E-mails: [email protected] e [email protected]

[2] ZANCHETA, Juvenal Júnior, Impressa escrita e telejornal, São Paulo, Unesp, 2004. Pg 130.

[3] BATISTA, Nilo (2002). ``Mídia e sistema penal no capitalismo tardio'', in Discursos Sediciosos nº 12, Rio de Janeiro, Revan/ICC, p. 272

[4] MOTA, Guilherme Gustavo Vasques. A influência do discurso criminal da mídia no sistema penal e decorrentes violações ao Estado democrático de Direito. Anais CONPENDI, Manaus 2006. Pág. 4

[5] BATISTA, Op. Cit. , p. 271-289

[6] FARIA JÚNIOR,César. Crimes Hediondos, a nova lei, Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, 1990, v. 3, nº 4, pág. 27, n 6.

[7] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo - HC 99.872, 3ª Câm. Crim. do TJSP, em 05.11.90

[8] BATISTA, Op. Cit. , p. 289

[9] MOTA, Maria Nazareth Vasques. A Política criminal dos anos noventa: as duas faces da Justiça. Tese de Mestrado, Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes 2000. Pg-50