1. 1.     NOTA INTRODUTÓRIA                                    

                   O presente trabalho busca demonstrar a indissociável relação existente entre direito e justiça. Tal relação, embora indissociável a nosso ver, tem oscilado no transcorrer da história, ora aproximando as partes integrantes (direito e justiça), ora afastando-as. O fato é que atualmente tem se exigido cada vez mais que o direito busque um ideal de justiça, mesmo que não tenhamos bem delineado o próprio conceito de justiça.

                   Como sabemos, a discussão e reflexão sobre justiça não é novidade, tendo ocupado o pensamento filosófico desde a época dos antigos gregos. Por mais que se tenha refletido sobre o tema por todos esses anos, a questão permanece extremamente atual, gerando, ainda hoje, debates acalorados, mas sem qualquer definição precisa acerca do seu conceito e abrangência. 

                   A pretensão deste ensaio não é, e nem poderia ser, tentar esgotar um tema tão complexo, que permanece aguçando o pensamento dos homens há tanto tempo. O que se busca por meio deste trabalho é abordar questões referentes à justiça e correlacioná-las com o direito, demonstrando a indissociável relação existente entre ambos.

                   Desta forma, em um primeiro momento abordaremos os temas direito e justiça, visando sob esta perspectiva correlacioná-los, para, ao final, tecermos algumas conclusões acerca do que foi exposto.

  1. 2.     DIREITO E JUSTIÇA

                   Para facilitar a abordagem, dividimos este tópico em direito e ideia de justiça. Assim, iniciaremos tratando do direito, sua definição e relação com a justiça. Após, discorreremos acerca da ideia de justiça e suas particularidades.

2.1.  Direito

 

                   A definição de direito, assim como a própria definição de justiça, sofreu grandes alterações no transcorrer da história. Ainda hoje diversos são os conceitos de direito e os estudiosos adotam as mais variadas definições para o termo, de acordo com a corrente jusfilosófica escolhida.

                   A questão sobre o conceito de direito é tão ampla, aberta e complexa que jamais foi possível chegar a um denominador comum em termos de definição. Todavia, o que nos interessa no presente estudo é tentar estabelecer se a justiça se relaciona com o direito e de qual maneira. Tal questão, inclusive, conforme já ponderado, é pendular, no sentido de que no transcorrer da história ora se entende que a justiça está associada ao direito, ora se afasta a justiça do direito.

                   Faremos, neste ponto, um recorte didático para abordar o conceito de direito a partir do positivismo jurídico proposto por Hans Kelsen (normativismo jurídico) e amplamente disseminado com a obra Teoria Pura do Direito[1]. É certo que outros importantes conceitos e definições de direito existiram antes de Hans Kelsen, todavia, até para que não se perca o foco do estudo, passaremos a tratar do direito a partir de Hans Kelsen.

                   O normativismo jurídico pressupõe que o conceito direito, enquanto ciência pura, não abarca a justiça ou a moral. Ao afastar a justiça, Hans Kelsen desenvolveu um conceito puramente formal do direito, abstraído de qualquer questão material referente ao seu conteúdo. Para o autor, preenchidos os requisitos formais para a elaboração da norma jurídica, a mesma passa a integrar o mundo jurídico, não podendo o seu conteúdo ser questionado, uma vez que tal análise foge do campo da ciência pura do direito. No pensamento do normativismo jurídico, a norma se justifica pela própria norma e independente de conteúdo material.

                   Todavia, ao afastar por completo a pretensão à justiça do conceito de direito, o positivismo jurídico kelsiano foi utilizado para institucionalizar regimes autoritários, inclusive o nacional-socialismo alemão. Desta forma, após a Segunda Guerra Mundial, o normativismo jurídico foi duramente criticado em razão de seu completo afastamento dos ideais de justiça/moral.

                   Em vista das críticas ao positivismo kelsiano, Gustav Radbruch traz para o direito o “argumento de injustiça”, o qual admite que o manifestamente injusto não pode ser aceito como direito, máxima essa conhecida como “fórmula de Radbruch”. Para Gustav Radbruch[2], “o conflito entre a justiça e a segurança jurídica pode ser resolvido da seguinte maneira: o direito positivo, assegurado por seu estatuto e por seu poder, tem prioridade mesmo quando, do ponto de vista do seu conteúdo, for injusto e não atender a uma finalidade, a não ser que a contradição entre a lei positiva e a justiça atinja um grau tão insustentável que a lei, como ‘direito incorreto’, deva ceder lugar à justiça.”

                   Percebemos, assim, que a “fórmula de Radbruch” traz para o conceito de direito certa pretensão à justiça. Na verdade, ela afasta do conceito de direito a absoluta injustiça, justamente para que o direito não possa institucionalizar regimes autoritários, completamente divorciados dos ideais de justiça.

                   Assim, a partir da Segunda Guerra Mundial, a dissociação entre direito e justiça foi deixada para trás, passando, então, a admitir-se que a justiça é pretensão do direito, em maior ou menor escala, dependendo da corrente jusfilosófica adotada.

                   No Brasil, Miguel Reale desenvolveu sua “teoria tridimensional do direito”, pressupondo o direito como a interação constante entre três elementos: fato, valor e norma. Ao entender o valor como elemento próprio do direito, Miguel Reale insere em seu conceito a pretensão à justiça, anotando que “o Direito é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade de seu dever-ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores”[3]. Percebe-se, portanto, que o ideal de justiça está arraigado na própria “teoria tridimensional do direito” como elemento informador do direito, não sendo aceita, na visão de Miguel Reale, a dissociação entre direito e justiça.

                   Muitas são as tentativas de conceituação e definição de direito, não cabendo aqui discorrer sobre todas, uma vez que este não é o objeto do presente estudo. As visões de Gustav Radbruch e Miguel Reale, acima trazidas, servem apenas como exemplos ilustrativos aptos a demonstrar que, principalmente a partir do segundo pós-guerra, reforçou-se a relação entre direito e justiça.

                   Atualmente existe o reconhecimento de que o direito tem a pretensão, em menor ou maior grau, de efetivação da justiça. Exatamente por esta razão acreditamos que os conceitos de direito e justiça encontram-se, neste início de século, umbilicalmente associados.

2.2. A ideia de justiça

 

                   A questão da justiça sempre aguçou o pensamento filosófico e esteve muitas vezes associada ao direito. Na filosofia do direito natural, a ideia de justiça ocupava lugar central. No direito romano, a justiça estava ligada ao direito, lembrando, nesse sentido, dos seguintes axiomas romanos: “os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o seu” (Juris praecepta sun haec: honeste vivere, alterum no laedere, suum cuique tribuere) e, ainda, “justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu” (Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi).

                   Na Grécia antiga, Aristóteles ocupou parte de suas reflexões filosóficas com a questão atinente a justiça, que para ele era a virtude perfeita. Assim, observou “que todos entendem por justiça aquela disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar o que é justo, e analogamente, por injustiça aquela disposição que leva os indivíduos a agir injustamente e desejar o que é injusto.”[4]

                   Para Aristóteles, o justo é aquilo que produz e preserva a felicidade (bem supremo), sendo que a justiça pressupõe a estrita observância das leis e, principalmente, a equidade. Logo, fica evidente que para o filósofo grego existe uma pretensão de justiça nas próprias leis e no direito, até porque, segundo ele, “dirigir-se a um juiz é dirigir-se à justiça, pois o juiz ideal é, por assim dizer, a personificação da justiça.”[5].

                   Aristóteles divide a justiça em: (i) justiça distributiva e (ii) justiça corretiva (comutativa). Enquanto a justiça distributiva pressupõe igualdade proporcional no tratamento de uma pluralidade de pessoas (proporcionalidade), que seria a forma primordial de justiça; a justiça corretiva é a justiça entre desiguais, que pressupõe absoluta igualdade entre prestação e contraprestação, o equilíbrio entre o excesso e a deficiência, em conformidade com a justa razão, é o meio-termo entre a perda e o ganho.

                   Já para o filósofo alemão Leonard Nelson justiça significa o igual equilíbrio de todos os interesses afetados por uma decisão, traduzido na máxima “nunca ajas de tal maneira que não aprovasses tua ação se todos os interesses afetados fossem seus”. Apesar de poético, existe certa dificuldade em enxergar a justiça sob esse enfoque em razão da impossibilidade de considerar os interesses dos outros como se fossem seus.

                   Amartya Sen[6], por sua vez, acredita que justiça é liberdade, que pressupõe oportunidade e processo de escolha. Assim, a justiça – e, consequentemente, a liberdade - para ele está intimamente ligada à capacidade efetiva de escolhas na vida do cidadão.

                   Arthur Kaufmann[7] entende a justiça como igualdade, englobando, inclusive, a distribuição igualitária. Segundo o autor, justiça é a aplicação correta de uma norma e é diametralmente oposta à arbitrariedade. Assim, destaca três vertentes da justiça, a saber: (i) igualdade – justiça em sentido estrito, que se refere à forma; (ii) adequação – justiça social, que se refere ao conteúdo; e (iii) segurança jurídica – justiça como paz jurídica, que se refere à função.

2.2.1 – Justiça em sentido estrito (igualdade)

 

                   A primeira das vertentes propostas por Arthur Kaufmann pressupõe que a democracia está ligada a forma fundamental de justiça, sendo a igualdade o ethos (fim) da própria democracia. A igualdade, desta forma, seria um ato de equiparação apto a atingir o ideal de justiça. Todavia, é necessário pontuar que a justiça possui dois aspectos que devem ser sempre observados: a justiça como objeto (o que é a justiça) e a justiça como processo (como conhecemos ou realizamos a justiça).

                   As teorias processuais da justiça a enxergam como produto do processo de determinação do direito justo. Assim, relembrando a lição de Aristóteles, o cerne da justiça é a igualdade, entendida neste ponto como proporcionalidade. Conforme já visto, Aristóteles distinguia dois tipos de justiça: distributiva (pública) e comutativa (privada). Tomás de Aquino, por sua vez, acrescentou um terceiro tipo de justiça aos dois tipos elencados pelo antigo pensador grego: a justiça legal (prevista em lei), que coloca em evidência o dever do indivíduo em face da sociedade.

                   A equidade, no entanto, não seria o direito legal, mas sim a correção deste, a retificação da lei quando a mesma é lacunar. Desta forma, a justiça se distingue da equidade, pois são pontos de vista diversos: enquanto a justiça se refere ao legislador, parte da norma geral para o caso concreto (dedução), a equidade diz respeito ao juiz, parte do caso concreto para a norma geral (indução).

2.2.2 – Justiça social (adequação)

 

                   A segunda vertente apresentada é a justiça social, ligada a sua adequação, ou seja, seu conteúdo material, visto como o bem comum. A justiça social, inclusive, é o tema central da filosofia do direito substantivo. Existem, neste caso, algumas doutrinas que ajudam a tentar definir a questão do bem comum.

                   A doutrina dos bens éticos admite a existência de exigências tão elementares que são reconhecidas até em visões diametralmente opostas, de modo a formar bens éticos universais. No transcorrer da história, os pensadores tentaram desenvolver métodos para estabelecer os bens éticos comuns para a vida em sociedade. Aristóteles, assim, elegeu a felicidade como o bem supremo e, portanto, ethos da justiça. Kant, através de seu imperativo categórico[8] trouxe também balizas para tentar identificar o bem comum.

                   Mais recentemente, John Rawls propôs a ideia do utilitarismo negativo, pregando a redução da infelicidade como bem comum e ressaltando que os que se encontram em situação de desigualdade devem dispor da prioridade em relação aos demais, para que com isso se resguarde o bem comum. Na máxima proposta por John Rawls[9], “deve procurar-se realizar a justiça do bem comum de tal modo que o sofrimento existente seja eliminado ou pelo menos reduzido, que não subsista sofrimento susceptível de ser minimizado e que o sofrimento inevitável seja imposto com a máxima ponderação aos membros individuais da sociedade.”     

                   Com a intenção de identificar o bem comum, Arthur Kaufmann[10] propõe, ainda, o imperativo categórico da intolerância nos seguintes termos: “age de tal modo que as consequências da tua acção sejam concordantes com a máxima prevenção ou diminuição da miséria humana.”         

                   Ainda no que tange à justiça social (ou do bem comum), muitos apontam os direitos humanos como o núcleo fundamental da ética e do direito, com validade universal. Todavia, a dificuldade da adoção dos direitos fundamentais se deve a sua abstração material, o que dificulta o estabelecimento objetivo do bem comum.

2.2.3 – Justiça como segurança jurídica (função)

                   A terceira vertente da justiça admitida por Arthur Kaufmann é a de segurança e paz jurídica e diz respeito a sua função. A justiça como segurança jurídica pode se referir a segurança da sociedade através do direito, mas também a segurança do próprio direito, ou seja, sua eficácia social.

                   Ao pensarmos na justiça atuando como segurança do próprio direito, temos que considerar a positividade, exequibilidade e estabilidade do direito. A positividade prevê que os pressupostos da lei devem ser estabelecidos da forma mais precisa possível e, portanto, serem determinados sem arbitrariedade. A exequibilidade prática impõe que o conhecimento dos fatos jurídicos relevantes deve ser, na medida do possível, isento de erro. Por fim, a estabilidade assegura que o direito não seja alterado com rapidez, uma vez que a justiça não tolera constantes alterações legislativas.

                   As três vertentes da justiça apresentadas possuem finalidade próprias. Assim, o princípio da igualdade veda o arbítrio, a justiça social busca a realização do bem comum e a segurança jurídica visa a paz jurídica e social. Portanto, é de se esperar que existam conflitos no interior da ideia de direito, até porque a lei jamais será justa, sob todos os prismas, em razão da sua generalidade.

  1. 3.     CONCLUSÕES                       

                  

                   Feitas as considerações acima expostas, concluímos que hoje se mostra indissociável a relação existente entre direito e justiça. Certo é que atualmente não se pode negar que o direito possui a pretensão, em maior ou menor grau, de efetivar os ideais de justiça. Desta forma, é de se reconhecer que a justiça, apesar de seu conceito fluído, integra e conforma o direito, em maior ou menor escala, dependendo da corrente jusfilosófica adotada.

                   Uma vez admitido que na atualidade a justiça é elemento intrínseco do próprio direito mostra-se extremamente relevante o estudo acerca da justiça.

                   Hoje vivemos uma crise do direito, que leva à descrença social e a sensação de que o direito está, cada vez mais, se afastando dos ideais de justiça. Muitas vezes, no universo do direito, o conteúdo cede à forma, questões formais obstam o enfrentamento de relevantes questões materiais, o que só faz aumentar a descrença dos cidadãos no direito.

                   Nesta conjectura, é imprescindível que o direito cada vez mais procure atender sua pretensão à justiça, de modo a responder os anseios sociais e cumprir sua função de harmonização da sociedade.

BIBLIOGRAFIA

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito; tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; tradução, textos adicionais e notas Edson Bruni. - 3ª ed. – Bauru/SP: Edipro, 2009.

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito; prefácio e tradução António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução João Baptista Machado. – 7ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MIRANDA, Jorge & SILVA, Marco Antonio Marques da – (Coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. – 10 ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 1983.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito.

ROSS, Alf. Direito e justiça; tradução Edson Bini – revisão técnica Alysson Leandro Mascaro – 2ª ed. – Bauru, SP: EDIPRO, 2007.

SEN, Amartya. A ideia de justiça; tradução Nuno Castello-Branco Bastos. Coimbra: Almedina, 2010.

SILVA, Marco Antonio Marques da & MIRANDA, Jorge – (Coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.



[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; tradução João Baptista Machado. – 7ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[2]  Apud ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito; tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. P. 34.

[3] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. P. 38.

[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; tradução, textos adicionais e notas Edson Bruni. - 3ª ed. – Bauru/SP: Edipro, 2009. P. 145.

[5] Idem, ibidem. P. 155.

[6] SEN, Amartya. A ideia de justiça; tradução Nuno Castello-Branco Bastos. Coimbra: Almedina, 2010.

[7] KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito; prefácio e tradução António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

[8] “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre simultaneamente valer como princípio duma legislação geral” e, mais tarde, “age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de cada um dos outros, sempre simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.

[9] Apud KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito; prefácio e tradução António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.P. 262.

[10] KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito; prefácio e tradução António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.P. 262.