Em qualquer leitura de textos que se faça, para que haja uma plena compreensão acerca dos temas por eles abordados, é preciso levar em consideração diversos fatores. Quando iniciamos o trabalho do entendimento textual devemos, antes de qualquer coisa, saber por quem foi escrito, quando foi escrito, onde foi escrito, qual foi o intuito do autor ao escrevê-lo e também qual o contexto da sociedade na época de sua confecção. Tendo em mãos todos esses elementos, já se possui grande parte das ferramentas para a captação da mensagem central da produção literária. Assim, no estudo das Leis, esse raciocínio não deve ser diferente. É necessário ponderar todos os fatores listados para que seja feita uma interpretação crítica e condizente capaz de extrair os reais interesses do legislador na época de confecção dos textos normativos. É exatamente esse o intuito do presente artigo, ponderar alguns pontos do atual Código de Processo Penal Brasileiro (CPPB), levando-se em consideração mais precisamente o seu artigo 28, diante do atual paradigma constitucional.
Com o início de sua vigência no ano de 1941, o Código de Processo Penal Brasileiro há tempos já se demonstra anacrônico considerando-se o nosso atual modelo de Estado Democrático de Direito. Inspirado na legislação processual penal italiana da década de 1930, época em que o regime fascista vigorava na península ibérica, o nosso CPPB teve como base regimes e idéias totalitárias. Sendo assim, apesar das diversas mudanças que ocorreram nos seus quase setenta anos de vida, muito do que ainda sobrevive nele ainda está escorado em um protótipo ditatorial que vai de encontro com a Carta Magna promulgada em 1988. Desta feita, mesclando o sistema acusatório e o sistema inquisitivo, o CPPB outorga diversos poderes ao Juiz que, notadamente, ainda refletem o modelo antidemocrático tão repudiado nos dias de hoje. Ou seja, embora a Constituição Federal de 1988 tenha trazido inovações ao campo do Direito Penal, tais inovações não foram aplicadas de integralmente ao Processo Penal e, principalmente, ao Inquérito Policial.
No inquérito policial, nos parece, que o que se tenta provar é a culpa do sujeito suspeito. A forma inquisitiva como o é conduzido não garante ao indivíduo o contraditório ou a ampla defesa tão importantes que devem estar presentes no processo constitucionalizado, mitigando qualquer segurança quanto à sua possibilidade de defesa. Nesse diapasão, um ponto que muito nos chama a atenção, e que é o objeto da presente discussão, é a forma como as fases que precedem a denúncia são, atualmente, conduzidas com a atuação significativa do Juiz julgador. O procedimento penal dita que, encerradas as investigações da policia judiciária concernentes ao inquérito policial, os autos do inquérito devem ser enviados ao Ministério Público que poderá adotar uma dentre três providências. Quais sejam: 1) oferecimento da denúncia; 2) devolução à autoridade policial para a realização de novas diligências indispensáveis para o ajuizamento da ação penal; 3) requerer o arquivamento do inquérito.
Portanto, diante do inquérito policial, deverá o membro do parquet, considerando todas as provas, eleger qual a melhor providência a ser tomada. A nós interessa destacar somente a ocorrência da terceira hipótese. Se, ao conhecer os autos do Inquérito Policial, o integrante do Ministério Público entender que não houve o crime ou se o conjunto probatório não for suficiente para comprovar a autoria e materialidade, poderá requerer, ao Juiz, o arquivamento do processo. A partir desse momento, dois caminhos podem ser seguidos. No primeiro, o Juiz concorda com o requerimento do Ministério Público e determinada o arquivamento dos autos, que só poderão ser desarquivados no caso de surgimento de novas provas. Se por acaso o Juiz entender não ser o caso de arquivamento do Inquérito, e esta é a segunda via que pode ser seguida, remeterá os autos para o Procurador Geral da República que emitirá seu parecer. Sendo favorável ao arquivamento, somente assim, deverá o Juiz, obrigatoriamente, arquivar o processo. É exatamente isso que dita o artigo 28 do CPPB e é esse poder de negativa, dado ao Juiz, que nos interessa discutir.
O artigo 129, I, da Constituição Federal assim preceitua: "Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;"
Destarte, a nossa Carta dita que a função de promover a ação penal pública está somente nas mãos do Ministério Público. Logo se conclui que, quando o Juiz se nega a arquivar os autos do Inquérito Policial, ele está adentrando em uma seara que lhe foi negada pela Constituição. Ora, se o responsável por promover a ação entende que ela não possui os requisitos necessários para a condenação do réu, não deveria ficar nas mãos do Juiz a faculdade de acatar a decisão ministerial.
Como se não bastasse o claro dispositivo constitucional, o Juiz, atuando dessa maneira, também vai contra os preceitos de imparcialidade do órgão julgador uma vez que, visivelmente, ele está se envolvendo na busca pela condenação do réu. Então, fica claro que o juiz, ao considerar que o caso é de denúncia e não de arquivamento, está emitindo um juízo de valor que é incompatível com a função julgadora que deve ser neutra. Isso ainda porque o Ministério Público é, constitucionalmente, o nomeado titular da ação penal, sendo sua e apenas sua a função de sujeito ativo do processo.
O Anteprojeto de Lei da Reforma do CPP, cuja comissão foi presidida por Ada Pellegrini Grinover, foi enviado ao Congresso Nacional em 8/03/2001 (Projeto de Lei 4.208/2001), visa a reforma do atual Código de Processo Penal e, evidentemente, moldá-lo tomando como parâmetro as atuais bases constitucionalistas. Neste anteprojeto, o legislador retira do Magistrado o poder de indeferir o pedido feito pelo membro do Ministério Público de arquivamento do Inquérito Policial, e confere às instâncias de revisão do próprio Ministério o poder de recusa ao arquivamento. Assim, o anteprojeto se adéqua aos ditames constitucionais e contribui de maneira significativa para que a democracia e os parâmetros do Estado Democrático de Direito sejam cada vez mais presentes na legislação brasileira.
Por óbvio que somente tais modificações em muito pouco alterarão a realidade do sistema penal brasileiro como um todo. Todavia, os primeiros passos na direção certa estão sendo dados. Desse modo, agora nos resta, seja como operadores do direito ou cidadãos, discutir o anteprojeto de reforma ao CPPB, este que ainda se encontra em trâmite no Congresso, para que ele se ajuste da melhor maneira possível ao paradigma constitucional e o, mais breve possível, venha vigorar de maneira plena no nosso ordenamento jurídico.


Referências Bibliográficas:

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 13ª edição. São Paulo: Lumen Juris, 2010. 949 pág.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. 741 pág. 17ª edição.
BRASIL. Constituição, 1988.
BRASIL. Código de Processo Penal, 1941.