O presente estudo tem por objetivo analisar a constitucionalidade do dispositivo normativo artigo 21 do Código de Processo Penal Brasileiro que regulamenta a incomunicabilidade do indiciado preso, que “será permitida sempre quando o interesse da sociedade ou conveniência da investigação permitir.“ Vejamos a transcrição do referido artigo, in ver bis:

 

“Art. 21.  A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir.

Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de três dias, será decretada por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no artigo 89, inciso III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 4.215, de 27 de abril de 1963) (Redação dada pela Lei nº 5.010, de 30.5.1966)

 

Em face deste dispositivo legal, o legislador permitiu que o indiciado preso pudesse ser colocado em situação de incomunicabilidade, para se evitar sua comunicação com demais pessoas, com o intuito de se impedir que ele, mesmo estando preso, possa embaraçar o curso das investigações, destruindo provas ou ameaçando testemunhas do crime. Para tanto, ressaltou-se: “quando do interesse da sociedade ou conveniência da investigação o exigir”.

Há de se frisar, no entanto, que esta incomunicabilidade de que se trata o referido artigo não atinge a pessoa de seu advogado e ás autoridades responsáveis pelas investigações.  Principalmente em relação ao advogado, trata o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, lei n° 8.906/94, in verbis:

 

Art. 7º São direitos do advogado:

III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

 

No entanto, ainda que respeitado o direito de poder comunicar a sua prisão ao seu advogado, é inconcebível a possibilidade de que, em um estado democrático de direitos, ainda seja possível que um cidadão seja retirado do meio social sem que a nenhum familiar seu seja comunicado a sua situação de preso, a lembrar os períodos ditatoriais em que a dignidade do indivíduo fora ignorada com o pretexto de se manter a paz e a ordem social. Trata-se de um claro desrespeito à dignidade humana, e não fora por acaso que a atual constituição cidadã estabelece como principio fundamental, dentre outros, o respeito à dignidade do indivíduo. Vejamos:

 

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

III - a dignidade da pessoa humana;”

 

Ainda, a carta magna, em demais dispositivos constitucionais, trata de efetivar a dignidade e os direitos do cidadão em outros dois de seus incisos em seu artigo 5°, vejamos:

 

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

LXII - A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

 

LXIII - O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

 

Nota-se que ao indivíduo preso é garantido não apenas o direito á presença de um advogado, mas também a assistência familiar ou qualquer pessoa que ele possa indicar. Isso por que ao cidadão não se deve impor tamanha violência e restrição de direitos, haja vista que sequer este indivíduo se encontra condenado, e mesmo se assim o fosse, tal despropósito não se mantém, pois mesmo condenado, o ser humano não perde sua condição digna, não podendo ser privado totalmente do meio social através do corte aos laços familiares.

Há de se ressaltar também que, uma vez que haja a possibilidade de o preso se comunicar com o advogado como forma de se garantir o direito constitucional ao contraditório e à defesa, não se sustenta o pretexto de se impossibilitar o contato com o mundo externo para se evitar o embaraço às investigações, haja vista que este contato não é de todo interrompido e as investigações, na prática, não estão completamente sigilosas.

Não obstante a polêmica da permanência de tal dispositivo infraconstitucional, encontra-se pacificado na doutrina majoritária o entendimento da inconstitucionalidade de tal artigo do Código de Processo penal. A maior parte da doutrina compartilha a posição de que o referido artigo não fora recepcionado pela Constituição de 1988, não se podendo mais aceitar a incomunicabilidade do indivíduo preso. Isto por que a atual Constituição Federal, em seu título V (Da Defesa do Estado), no capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), estabelece, em seu art. 136, §3°, inciso IV:

 

“Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

 

§ 3º - Na vigência do estado de defesa:

 

 IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.”

 

Fernando da Costa Tourinho Filho, comenta a questão, pontificando:

“Ora, se durante o estado de defesa, quando o Governo deve tomar medidas enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, podendo determinar medidas coercitivas, destacando-se restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, o sigilo da correspondência e o sigilo da comunicação telegráfica e telefônica, havendo até prisão sem determinação judicial, tal como disciplinado no art. 136 da CF, não pode decretar a incomunicabilidade do preso (CF, art. 136, § 3° IV), com muito mais razão não há que se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial”.

Também sobre o assunto, acrescenta Guilherme de Souza Nucci: “Cremos estar revogada essa possibilidade [incomunicabilidade] pela Constituição Federal de 1988. Note-se que, durante a vigência do Estado de Defesa, quando inúmeras garantias individuais estão suspensas, não pode o preso ficar incomunicável (art. 136, §º 3, IV, CF), razão pela qual, em estado de absoluta normalidade, quando todos os direitos e garantias devem ser fielmente respeitados, não há motivo plausível para se manter alguém incomunicável.”

Além das opiniões já expostas, trata uma corrente minoritária a cerca do assunto entendendo que a incomunicabilidade ainda subsiste no que tange aos presos comuns, vez que o art. 136, § 3° da Constituição de 1988 veda unicamente a decretação da incomunicabilidade de pesos políticos. Ressalta-se mais uma vez o referido autor, Guilherme de Souza Nucci: “Há posição na doutrina admitindo a vigência da incomunicabilidade e justificando que o art. 136, §3o, IV, da Constituição federal, voltou-se unicamente a presos políticos e não a criminosos comuns. Alis, como é o caso da previsão feita pelo código processo penal, art. 21.”

Entendo como sendo equivocada esta interpretação, e a atribuo esse equívoco interpretativo à posição espacial do referido artigo e inciso dentro do corpo normativo (Capítulo I, do Estado de Defesa e Do Estado de Sítio), o que estaria causando entendimento contrário ao sentido exposto no inciso IV.

A Constituição deve ser lida em sua estrutura como um conjunto orgânico e sistemático de caráter normativo, sendo interpretada como um corpo único de unidade estrutural sendo adequada a realidade social vigente, servindo sempre como plano diretor às demais normas do sistema jurídico. Assim sendo, o Código de Processo Penal deve ser lido sob a égide dos princípios constitucionais, não podendo ser interpretado em apartado.

Portanto, em respeito aos princípios constitucionais, não há mais de se cogitar a possibilidade da incomunicabilidade do indiciado preso, impondo qualquer meio que venha restringir o seu direito a livre comunicação. Ato contrário deve ser encarado como de claro desrespeito e abuso de poder imposto ao indivíduo que por diversas vezes é tratado como condenado antes mesmo da sentença condenatória transitada em julgado, clara ofensa á presunção de inocência prevista no artigo 5°, LXII da CF.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

Código de Processo Penal Anotado. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, PP 97-98.

Curso de Direito Processual Penal / Francisco de Assis do Rêgo Monteiro da Rocha – Rio de Janeiro: Forense, 1999.

 

Código de Processo Penal. Comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 93-94.

 

Curso de Processo Penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 21-22.

 

Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal, 18ª Ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1997.

 

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4898.htm (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

 

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm (Código de Processo Penal Brasileiro)