A INCIDÊNCIA DO CDC NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

 

Resumo: O presente estudo objetiva estabelecer as possibilidades e as limitações de incidência do CDC nos serviços públicos. O artigo se propõe a identificar uma situação em que seja cabível a aplicação de uma regra genérica, que quando utilizada, aponte a incidência ou não do CDC aos serviços públicos. Para tanto foi utilizado pesquisa bibliográfica com método dedutivo e dialético. Dedutivo já que se partiu de uma ideia básica e a partir da associação desta, com os fundamentos básicos do serviço público, foi possível obter o resultado desejado. Dialético, pois houve o confronto dos institutos básicos que compõe o CDC e a legislação administrativa. Conforme o estudo realizado, os serviços públicos constituem atividades de prestação de bens e serviços necessários à coletividade, incumbidos ao Estado ou delegados a particulares. Nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro aplica o conceito de serviço público para configurar uma relação de consumo regulamentada pelo CDC somente as prestações mediante remuneração direta. As necessidades de serviços públicos eficientes resultaram na evolução da interpretação hermenêutica do ordenamento jurídico e do CDC, objetivando abranger o indivíduo consumidor de serviços públicos.

 

Palavras – chave: Serviços públicos. CDC. Ordenamento jurídico.

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................5

2 DESENVOLVIMENTO...................................................................6

2.2JURISPRUDENCIA.....................................................................8

3CONCLUSÃO...............................................................................11

4REFERÊNCIAS............................................................................12

 

 

 1.    INTRODUÇÃO

            A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos serviços públicos é foco de discussões doutrinarias e jurisprudenciais. O objetivo do presente estudo é estabelecer as possibilidades e as limitações de incidência do CDC nos serviços públicos.

            Conforme os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, serviço público é “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.” (Direito Administrativo, Editora Atlas, 20ª edição, pág. 90).

            A Constituição Federal de 88, em seu art. 175, incumbiu ao Poder Público, a titularidade da prestação dos serviços públicos sendo exercidos diretamente ou sob o regime de concessão e permissão, sempre através de licitação. Estas atividades visam satisfazer as necessidades coletivas. Logo, o Estado é titular dos serviços públicos, mas permite-se ao próprio cumpri-los ou delegá-los. Portanto, existem duas formas de prestação de serviço público, a direta, fornecida pelos próprios órgãos públicos e a indireta, na qual o Poder Público delega à prestação de serviços à outra entidade da Administração Indireta ou a particular.

                        Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias ou permissionárias são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. E nos casos de descumprimento das obrigações serão as pessoas jurídicas obrigadas a cumpri-las e a reparar os danos causados. Assim, a prestação do serviço público deve respeitar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, supremacia do interesse público sobre o particular, indisponibilidade do interesse público, razoabilidade e proporcionalidade e continuidade do serviço público. Conforme o princípio da legalidade é dever do Estado a prestação regular do serviço público, direta ou indiretamente. Já o princípio da eficiência diz respeito a alcançar o resultado pretendido no tocante à qualidade e quantidade. Pelo princípio da segurança o Estado deverá prestar o serviço público de forma a não colocar em perigo a integridade física e a vida do usuário. Por fim, conforme o princípio da continuidade do serviço público, em razão da sua importância perante a coletividade o serviço público não pode ser interrompido.

           

  1. 2.    A APLICAÇÃO DO CDC NOS SERVIÇOS PUBLICOS

            A incidência do Código de Defesa do Consumidor no âmbito dos serviços públicos foi inicialmente alvo de polemica, pois os prestadores de serviços públicos não aceitavam que estavam submetidos ao código supracitado.

            O CDC explana que fornecedor é quem desenvolve atividade de prestação de serviço e inclui a figura da pessoa jurídica de direito público como fornecedora, assim considera o Estado ou seus delegados como sendo fornecedores.

Art.3º do CDC “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.

            Consta, expressamente, em vários outros dispositivos legais a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos, apesar das particularidades ligadas ao regime jurídico destes serviços. No que concerne ao CDC, destacam-se o artigo 4º, II que expressa a melhoria dos serviços públicos como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo, o art. 6º, X que toca a prestação adequada dos serviços públicos como direito dos consumidores, e o art. 22 que concerne a obrigação do Estado e de seus delegatórios pela prestação de serviços adequados. E a Lei 8.987/1995, de Concessões e Permissões de Serviços Públicos, em seu art. 7º, caput, faz alusão genérica à aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos.

            A matéria dos serviços públicos através de uma visão consumerista está ligada à uma mudança na noção de interesse público. Como esboça Alexandre Aragão:

Hoje, com a crescente identificação do interesse público justamente com a maior satisfação possível dos interesses individuais dos usuários de serviços públicos, o papel dessas prerrogativas [de Direito Público], com a conseqüente exclusão do direito protetivo dos interesses dos usuários, deve ser atualizado. O interesse público e os interesses individuais dos usuários, que antes eram vistos como potencialmente antagônicos, passam a ser vistos como em princípio reciprocamente identificáveis.”

            Se faz valido salientar que o CDC não alcançou todos os serviços públicos, prevendo sua aplicação aos serviços remunerados de forma específica (uti singuli), mas calou-se a respeito dos custeados por meio da arrecadação de tributos (uti universi). Portanto, somente os serviços pagos, isto é, mediante remuneração, caracterizam uma relação de consumo de forma a sofrer aplicação do CDC e os serviços públicos prestados sem a exigência de uma remuneração por parte do consumidor, não se enquadram como relação de consumo, não incidindo as regras do código consumerista.      

            Alguns autores adotaram uma postura ampliativa para a incidência do CDC, aplicando a toda e qualquer espécie de serviços públicos, visto que o CDC se refere a serviços públicos sem distinção. Conforme entendimento de Marcos Juruena Villela Souto o CDC deve ser observado em relação a todos os serviços públicos, independentemente de remuneração individual e certa. Inexistindo serviços públicos gratuitos, pois mesmo os serviços gerais (uti universi) seriam remunerados por impostos.

 2.1 A classificação dos usuários dos serviços: Uti universi e uti singuli

            Quanto aos destinatários, os serviços públicos podem ser classificados em uti universi (gerais ou coletivos) e uti singuli (individuais ou singulares). Os uti universi são os prestados à coletividade em geral, sem a identificação individual dos usuários, não existindo a possibilidade de determinar a parcela do serviço usada por cada pessoa. O seu custeio deve ser feito por imposto, não existindo a cobrança de taxa ou tarifa. Como a iluminação pública, calçamento, saúde, educação.

            Já os serviços públicos uti singuli são os prestados à usuários determinados, sendo possível medir a sua utilização individual. Como o fornecimento domiciliar de água e de energia elétrica. A remuneração deste é feita mediante taxa (regime tributário) ou por tarifa (regime contratual). Há discussão doutrinária para se distinguir as taxas e as tarifas.

            As taxas, espécies de tributos, são submetidas às limitações constitucionais tributárias, o que não ocorre em relação às tarifas (ou preços públicos). Para definir uma ou outra forma de remuneração critério que tem prevalecido é aquele que leva em conta a obrigatoriedade ou a facultatividade que o usuário possui para utilizar o serviço. Assim, caso o usuário tenha liberdade para escolher entre usar ou não o serviço, a remuneração deve ser feita por meio de tarifa, se não houver liberdade para o usuário, a remuneração será efetivada por taxa.

2.2 Jurisprudência

            O Superior Tribunal de Justiça vem expressamente identificando como relações de consumo aquelas em que participam usuários de serviços públicos específicos e remunerados, além de adotar uma postura de aplicar o CDC aos serviços públicos no que couber. Conforme o que se pode extrair dos seguintes julgados:

CONCESSIONÁRIA DE RODOVIA. ACIDENTE COM VEÍCULO EM RAZÃO DE ANIMAL MORTO NA PISTA. RELAÇÃO DE CONSUMO.1. As concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com os usuários da estrada, estão subordinadas ao Código de Defesa do Consumidor, pela própria natureza do serviço. No caso, a concessão é, exatamente, para que seja a concessionária responsável pela manutenção da rodovia, assim, por exemplo, manter a pista sem a presença de animais mortos na estrada, zelando, portanto, para que os usuários trafeguem em tranquilidade e segurança. Entre o usuário da rodovia e a concessionária, há mesmo uma relação de consumo, com o que é de ser aplicado o art. 101, do Código de Defesa do Consumidor.2. Recurso especial não conhecido. (REsp 467883/RJ, Terceira Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003, p. 281; grifos adicionados)

ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2º E42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.1. Há relação de consumo no fornecimento de água por entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados.2. A empresa utiliza o produto como consumidora final.3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor.4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação do art.42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor.5. Recurso provido. (REsp 263229/SP, Primeira Turma, Rel. Ministro José Delgado, DJ 09/04/2001, p. 332; grifos adicionados)

            A relação existente entre a concessionário de serviço público e o usuário final é precisamente contratual, assim, regido pelo Código de Defesa do Consumidor. As partes se configuram como fornecedor e consumidor, a teor do que dispõem os artigos 2º e 3º da Lei n.º 8.078/1990

CONSUMIDOR E CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. CHOQUE ELÉTRICO. NEGLIGÊNCIA. NEXO DE CAUSALIDADE. DANO ESTÉTICO. DANO MORAL. 1. A relação entre concessionária de serviço público e usuário final, para o fornecimento de serviços públicos essenciais como a distribuição de energia elétrica é consumerista, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor. Precedentes do STJ. 2. A interrupção da distribuição de energia elétrica em decorrência da chuva ocasionando princípio da incêndio e colocando em risco a propriedade e integridade física do consumidor, caracteriza falha na prestação do serviço, que deveria ser contínuo. 3. A chuva não é considerada caso de força maior. É que, embora constitua um fator externo ao serviço (Agostinho Alvim), tal acontecimento não é anormal a ponto de afastar a responsabilidade do fornecedor. A chuva, como evento normal, natural e previsível, ingressa na esfera do risco da atividade de fornecimento de energia elétrica. Ademais, consoante o art. 14, § 3º, do CDC, só é afastada a responsabilidade do fornecedor quando provar a culpa exclusiva da vítima ou a inexistência do defeito. 4. Adota-se, para investigação do nexo de causalidade, a teoria da causalidade adequada, desenvolvida por Von Kries. Por ela, diante de vários fatos que contornam o evento danoso, causa é aquela que for a mais adequada à sua produção. 5. O consumidor que, após negligência do fornecedor em atender chamado de emergência, se coloca em perigo para salvar sua propriedade e proteger sua integridade física e de sua família age em estado de necessidade gerado pela omissão do fornecedor. Desse modo, a omissão da prestadora de serviço que coloca em risco o consumidor é causa adequada ao acidente sofrido por este em decorrência da situação de perigo provocada pela Concessionária de Serviço Público. 6. Consoante o disposto no enunciado n. 387 da Súmula da jurisprudência dominante do STJ: "É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e moral". 7. Recurso conhecido e improvido. (Acórdão n.º 781489, 20100111883757APC, Relatora: ANA CANTARINO, Revisor: JAIR SOARES, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 23/04/2014, Publicado no DJE: 29/04/2014. Pág.: 193)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EMRECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535, II, DO CPC. INEXISTÊNCIA.
FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. SUSPENSÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO. MEDIDOR. AVARIA. CONSUMIDOR DE BAIXA RENDA.TARIFA SOCIAL. REQUISITOS. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE.SÚMULA 7/STJ. INCIDÊNCIA.1. Não ocorre contrariedade ao art. 535, inc. II, do CPC, quando o Tribunal de origem decide fundamentadamente todas as questões postas ao seu exame, assim como não há que se confundir entre decisão contrária aos interesses da parte e inexistência de prestaçãojurisdicional.2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a relação entre concessionária de serviço público e o usuário final, para o fornecimento de serviços públicos essenciais, tais como energia elétrica, é consumerista, sendo cabível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.3. Colhe-se do acórdão estadual que, "compulsados os autos, verifica-se que a ré, ora apelante, não logrou comprovar quer a efetiva ocorrência de irregularidade na unidade consumidora em questão, quer a legitimidade do demandado para responder pelo débito decorrente de recuperação de consumo. Em que pese entenda ser possível a suspensão do fornecimento de energia elétrica e a recuperação do consumo não faturado quando comprovada a ocorrência de fraude, na casuística apresentada tenho que os elementos constantes dos autos não são suficientes à comprovação da fraude imputada à parte autora". 4. As conclusões do Tribunal de origem derivaram da análise dos elementos fático-probatórios constantes dos autos, cuja revisão é defesa em sede de recurso especial, ante o que preceitua a Súmula7/STJ.5. Não havendo tese jurídica capaz de modificar o posicionamento anteriormente firmado, é de se manter a decisão agravada, por seus próprios fundamentos.6. Agravo regimental a que se nega provimento. Acórdão. Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator. Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Assusete Magalhães, Humberto Martins e Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator.
  1. 3.    CONCLUSÃO

            Conforme demonstrado na presente pesquisa os serviços públicos, desde que remunerados, direta ou indiretamente são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, no entanto, os serviços públicos prestados sem a exigência de uma remuneração por parte do consumidor, não se enquadra como relação de consumo, não se aplicando o Código de Defesa do Consumidor.

            A exigência de remuneração específica para configuração do serviço, contida no art. 3°, § 2° do CDC, assim como a não configuração de relação tributária entre o usuário de serviços públicos e o Estado ou concessionária, a incidência do CDC deve ser restringida aos serviços públicos uti singuli remunerados por tarifa.