A (IN)SEGURANÇA DA DOGMATICA E DO SISTEMA PENAL:
IDEIAS E FATOS


Claudean Serra Reis
Daniel Fernandes Fronchetti

Sumário: Introdução; 2.Promessas da dogmática e do Sistema Penal; 2.1 Da Dogmática Penal e da segurança jurídica; 2.2 Do Sistema Penal e da promessa de segurança social 3.Diagnostico da insegurança atual ; 3.1 Do Sistema Penal e da (in)segurança social; 3.2 Da Dogmática Penal e da idéia de segurança jurídica; Conclusão; Referencias

RESUMO
Analisa-se a segurança jurídica proposta em sua fundação no Iluminismo pela Dogmática Penal. Apresenta o novo Sistema Penal através da mudança do objeto da pena. Apresenta-se a criminologia Positiva e o paradigma etiológico que dão sustentação ao atual Sistema Penal. Faz-se um diagnostico da atuação factual do Sistema Penal e da insegurança jurídica da Dogmática Penal e seu desvirtuamento. Conclui-se que a Dogmática e o Sistema Penal, pelos fatos, não realizam as funções as quais se propõem, incorrendo inclusive em uma função invertida.


PALAVRAS-CHAVE
Dogmática Penal. Sistema Penal. Insegurança

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo investigar a realidade da dogmática penal em sua proposta de segurança jurídica e do Sistema Penal na sua proposta de promotor da segurança social. Utiliza-se da comparação a ser estabelecida entre discurso x dados estatísticos. A partir desta analise poderemos concluir se a dogmática e o sistema penal cumprem ou não com suas propostas de segurança jurídica e segurança social.
Além da base teórica que analisa sobretudo a gênese (liberal) destas instituições e suas promessas frente a sociedade , buscou-se dados consolidados do Ministério da Justiça, especificamente DEPEN(Departamento Penitenciário Nacional) darão suporte empírico a pesquisa.
A dogmática penal surge em oposição ao antigo regime, suas penas arbitrárias, desproporcionais e métodos irracionais de julgamento. Além de trazer mais racionalidade ao julgamento, protege o réu contra abusos e violação de direitos e traz segurança jurídica, proposta que será analisada neste trabalho quanto a sua efetividade.
Quanto ao Sistema Penal analisaremos sua proposta fundante de segurança social: promover a paz e extinguir a violência. Os dados verificados deveriam mostrar obrigatoriamente diminuição nos índices de violência, aqui já adiantamos o Sistema Penal como autofágico, pois promove a própria deterioração na medida em que funciona como multiplicador da violência, sociedade mais violenta, eficientismo penal, violação a direitos. Um sistema autodestrutivo que possui função invertida a declarada e pela qual (função declarada) fundamenta-se.

2 PROMESSAS DA DOGMÁTICA E DO SISTEMA PENAL
Faremos um breve histórico do surgimento da dogmática penal, importante entendermos em oposição a que esta surgiu e com que finalidade surgiu. No entanto, mais adiante será exposto que esta vem, em vez de diminuir, intensificar alguns dos males, os quais deveria combater.
Posteriormente analisaremos as propostas do Sistema Penal em sua gênese liberal (Escola Clássica), promessas que serão verificadas nos tópicos subsequentes.

2.1 Da dogmática penal e da segurança jurídica
"(...)Juridicamente não restam duvidas de que há uma oposição declarada entre a antiga idéia de crime/pecado e a noção de ilícito após as Luzes. Da mesma forma o desenvolvimento, dessas idéias que possibilitaram o secularismo jurídico foram determinantes para a queda do regime inquisitorial e para a possibilidade de se pensar o direito como ciência especifica,pura e com objeto próprio." (WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de Historia do Direito)

Na transição do Antigo Regime para o Iluminismo ocorre o declínio do direito penal pautado no processo inquisitorial, na visão do crime como pecado, ofensa a Deus e ao monarca, e na arbitrariedade dos julgamentos, o iluminismo exige uma maior racionalização e humanização do processo de acusação, julgamento e punição.
A "morte de Deus" como dizia Nietzsche em O anticristo é a perda do valor "Deus" em detrimento da Ciência, uma nova maneira de encarar e explicar o mundo. No ideário iluminista reforçado por Montesquieu e aliado a evolução do Constitucionalismo, o governo "bom" é o "governo da lei", lei que racionaliza os métodos e procedimentos (gerais, todos iguais perante a lei sem distinções) para proteger os cidadãos detentores do "poder constituinte originário " de abusos que possam vir a sofrer por parte do governante, a lei vem para limitar o poder do governante e seu arbítrio.
Em matéria processual ocorre a racionalização (cientifização) do processo buscando julgamentos racionais, visando combater a parcialidade, a arbitrariedade e desproporcionalidade das penas (penas pré-definidas em lei e proporcionais), garantindo direitos ao acusado, o que se se convencionou chamar "devido processo legal", como bem expressa Wolkmer :
"Reserva legal, taxatividade e irretroatividade; tripartição independente dos poderes; intervenção mínima, pessoalidade, individualização e proporcionalidade das penas, devido processo legal e igualdade perante a lei foram os postulados e o solo em que firmaria o rol dos novos direitos legados pelos pensadores do Século das Luzes."

Com este objetivo de racionalização e humanismo do julgamento e penas a proposta iluminista (liberal) vem através do direito posto (e da conseqüente dogmática penal) trazer segurança jurídica aos acusados, seja na proteção de seus direitos fundamentais, na base racional das decisões e julgamentos, na "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali" ou no devido processo legal. No entanto esta segurança jurídica se perde ao longo do tempo na medida em que buscamos maior punição ("tolerância zero") em detrimento dos direitos humanos, o sistema desvirtua-se ao intensificar as punições sem igual aumento na proteção dos direitos dos condenados.

2.2 Do Sistema Penal e da promessa de segurança social
Na passagem do Antigo regime a Idade Contemporânea houve uma modificação quanto a forma de punir. Devido a influencia humanista a punição não era mais vista como "espetáculo" publico, mas como um ato de crueldade, fez-se necessária uma mudança quanto ao objeto da punição passando do corpo para um direito(liberdade) como bem expressa Michel Foucault em Vigiar e Punir : "Sem duvida, a pena não mais se centralizava no suplicio como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito".
Influenciado pelo positivismo e pela visão funcionalista da sociedade, consagrada pela ótica da sociedade como um relógio (ou corpo-humano) qualquer atentado a ordem (modificação das condições ideais) seria tratado como "doença". Para o sistema (e suas autoridades) cabe buscar a solução, o remédio: "conhecer o problema e estabelecer o remédio" está estabelecido o paradigma etiológico (causas do crime), como expõe Vera Andrade :
"O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, pré-constituída ao Direito Penal (crimes "naturais") que com exceção dos chamados crimes "artificiais", não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade."

O Sistema Penal atual assenta-se sobre duas funções (promessas): da segurança social e da ressocialização do delinqüente, será objeto deste estudo o "pilar" segurança social, que foi desenvolvido pela Escola Liberal Clássica, sobretudo com a ideologia da defesa social, exposta em seis princípios por Alessandro Baratta , a saber: do bem e do mal, de culpabilidade, de legitimidade, de igualdade, do interesse social e do delito natural,do fim ou da prevenção.
Ideologia que está presente no senso comum cotidiano e que pressiona o Sistema para uma maior severidade, em detrimento de direitos humanos (direitos dos presos). O eficientismo penal aliado ao desrespeito aos direitos humanos traz um desvirtuamento ao Sistema que segundo sua lógica fundante deveria traçar caminho contrario.
Em suma, o Sistema Penal vem para punir aqueles que atentam contra a "ordem", os delinqüentes, os quais não comungam dos mesmos objetivos da sociedade: o bem-comum. O delito é um atentado a sociedade e o criminoso o comete por livre arbítrio, cabe ao Sistema Penal puni-lo. A crescente violência justifica-se pela falta do Sistema Penal, pois onde ele está presente vigora a ordem e a paz, para a crescente violência precisamos de mais Sistema Penal (eficientismo penal).

3 DIAGNOSTICO DA (IN)SEGURANÇA ATUAL
A partir da análise de estatísticas e da base teórica de doutrinadores procuraremos desconstruir a idéia de segurança social propiciada pelo Sistema Penal e a idéia de segurança jurídica proposta pela dogmática penal.

3.1 Do Sistema Penal e da (in)segurança social
Analisemos o Relatório 2008 do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) :
ANO POPULAÇÃO CARCERÁRIA
2005 361.402 mil
2006 401.236 mil
2007 422.590 mil
Crescimento da população carcerária (Fonte: Infopen Estatistica)

Segundo o discurso do Sistema penal a partir de sua função (finalidade) a atuação deste deveria diminuir (e não aumentar) a criminalidade, tragamos novamente a ideologia da defesa social em seu sexto principio :

"Princípio do fim ou da prevenção: A pena não tem (ou não tem unicamente) a função de retribuir o delito, mas de preveni-lo. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contra motivação ao comportamento criminal, isto é, intimidá-lo (prevenção geral negativa)"

Temos a pena (segundo o discurso de legitimação) como contramotivação ao comportamento criminal, prevenir quanto à ocorrência delito. Tal discurso é falacioso, pois o que na prática percebemos é o aumento (e não a diminuição) da criminalidade. O Sistema Penal atua não como pacificador social, mas como multiplicador da violência.
Posição sacramentada pela análise da legislação penal que caminha para o eficientismo penal, como exemplos as leis 9.034/95 e 10.217/01 que concretizam a quebra das garantias das liberdades individuais (como o direito de ter concedida a liberdade provisória e de apelar em liberdade) e da intimidade (como o sigilo de informações fiscais,bancarias e eleitorais) em prol do sucesso da investigação criminal , constituindo atentados aos direitos fundamentais.
A função de ressocialização (apesar de não ser objeto da pesquisa) é aqui peça chave para entendermos a fabrica de criminosos na qual se constitui o Sistema Penal, segundo Louk Hulsman na prisão o homem é colocado em um meio diferente daquele em que pretende ressocializar-se (sociedade), o que ocorre é a dessocialização:
"O clima de opressão onipresente desvaloriza a auto-estima, faz desaprender a comunicação autentica com o outro,impede a construção de comportamentos e atitudes socialmente aceitáveis para quando chegar o dia da libnertação. Na prisão os homens são despersonalizados e dessocializados"

Se o sistema penal não ressocializa, como apresentado, este contribui para uma maior violência, fazendo com que seus "clientes", considerando os estigmas e efeitos psicológicos e sociais da pena, tenham todas as condições necessárias à reincidência, e assim ele (Sistema Penal) "fideliza" aquele cliente e em conjunto com o processo de maior severidade das leis (tolerância zero) contribui para o ingresso de novos.
Verificamos assim a partir dos dados apresentados o aumento (e não diminuição) da violência, motivado por um duplo movimento do Sistema penal: Eficientismo Penal (leis mais severas) e ineficácia da proposta de ressocialização (provocando a reincidência), o Sistema Penal se constitui, a partir dos fatos e em contraponto ao discurso estabelecido, em uma maquina de gerar violência, mais Sistema Penal = mais violência.
A partir daí podemos verificar a diferença entre o discurso oficial de (promoção da segurança) em dissonância com os fatos. O Sistema Penal aumenta (e não diminui) a violência, aumenta a insegurança e não a segurança social.

3.2 Da Dogmática Penal e da idéia de segurança jurídica
Como vimos a proposta de cientifização/positivação do direito veio trazer garantias aos acusados, racionalidade de julgamentos, proporcionalidade de penas, imparcialidade do juiz e igualdade perante a lei, assim ainda diz o discurso oficial. No entanto o que se percebe é o desvirtuamento desta proposta.
Desvirtuamento constatado pela evolução da legislação eficientista em detrimento da garantista, da proporcionalidade de penas de acordo com "quem comete o crime", da desigualdade e da seletividade da lei penal.
Quanto a desigualdade e seletividade da lei penal Allessandro Baratta procura a desconstrução do falso ideário da Criminologia Liberal-Positivista:
"a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quanto pune as ofensas aos bens essenciais faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;
b) a lei penal não é igual para todos; o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; e
c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade."

Em Louk Hulsman é questionada ate mesmo a parcialidade do juiz, segundo o qual teria a missão de "identificar quais sujeitos se enquadrariam no estereótipo de criminoso" dar continuidade ao processo e colocar este no cárcere. O juiz é influenciado pelas etiquetas e estigmas criados (pela sociedade, mídia e instituições oficiais) para o criminoso, impossibilitando-o de fazer um julgamento imparcial.
Na verdade percebemos que a dogmática penal que veio para excluir privilégios, os intensificou através da seletividade ?, que buscou em sua gênese proteger o individuo e seus direitos fundamentais da severidade da pena, os desconsiderou em nome do eficientismo penal, por fim racionalizou os processos ,processos no entanto que permaneceram desiguais.
Por fim percebemos que a proposta de segurança jurídica não atinge a todos, "uns são mais iguais que outros". Se é que há segurança jurídica, a dogmática preservou alguns dos males os quais visou combater, como a seletividade, e com a onda de "severidade nas punições", a própria proteção dos direitos fundamentais do homem.
CONCLUSÃO
A dogmática e o Sistema Penal estruturas que vieram combater o Antigo Regime nos tempos atuais parecem repetir alguns dos erros deste, parecem cometer os mesmos males contra os quais lutaram.
Diante de sua proposta de segurança jurídica de combate a desproporcionalidade das penas e da remoção de privilégios perante a lei, a dogmática vê-se frustrada: promove a seletividade, tanto na elaboração quanto na execução da lei e, elabora e executa leis visando atingir determinados segmentos sociais, em regra os "desafortunados" das camadas baixas. Ainda de acordo com o tipo de pessoa que usualmente comete determinado "crime" temos penas mais leves ou mais severas: furto de coisa comum (sócios, co-herdeiros): 6 meses a dois anos , furto: "a pena aumenta-se em um terço se o crime é cometido durante o repouso noturno".
O Sistema Penal por sua vez busca a segurança social , no entanto, devido a sua falha na ressocialização (que contribui para a reincidência) este promove a intensificação da violência, disponível em qualquer estatística do Sistema Penitenciário, em uma tentativa desesperadora e auto-destrutiva o Sistema aumenta a severidade das leis, alem dos não-ressocialisados temos agora o ingresso de novos "delinqüentes", "se existe violência é porque falta punição". Em nome da eficiência, direitos e garantias são cerceados. O Sistema cumpre função inversa da declarada a máquina de "pacificação" gera ainda mais violência, mais violência é entendida como falta de punição, ou leis "brandas", assim o Sistema entra em um ciclo vicioso de autodestruição e promoção da violência.
Talvez o caminho não seja propriamente o Abolicionismo Penal defendido por Hulsman ou Alessandro Baratta, talvez como defenda Vera Andrade , o caminho pode estar em deslocar a intensidade aplicada no pilar punição para o pilar direitos humanos, o minimalismo ou garantismo penal, que foi basicamente a função perdida pelo sistema ao longo dos anos, no entanto, há alem uma critica a se fazer na fundação do sistema: a falta de dialogo entre a Dogmática Penal e a realidade social, ou como defende Vera Andrade: "a receptação dos resultados das Ciências Sociais", mais precisamente a criminologia crítica. A partir da pesquisa podemos constatar a dissonância entre o discurso oficial e a realidade factual, em uma função invertida do Sistema Penal e na insegurança jurídica e seletividade da Dogmática Penal.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de.Dogmática e Sistema Penal: em busca da segurança jurídica prometida.Florianópolis,1994.Tese(Doutorado em Direito) ? Curso de Pós-Graduação em Direito,Universidade Federal de Santa Catarina.1994.504p.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

__________. Do Paradigma Etiológico ao Paradigma da Reação Social: Mudança e Permanência de Paradigmas Criminológicos na Ciência e no Senso Comum. Seqüência ? Estudos Jurídicos e Políticos. Florianópolis: UFSC, 1995.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

MINISTERIO DA JUSTIÇA. DEPEN. Sistema de Informação Penitenciaria. Dados Consolidados, 2008

HULSMAN, Louk & CELIS, Bernat J de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro, Luam, 1993.
_________. O Anticristo: Ensaio de uma crítica do cristianismo. In: OBRAS INCOMPLETAS. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Coleção Os Pensadores.
SOUZA, Mauro Araújo de Souza. O anticristo. São Paulo: Fontes Marins, 2004.
SECONDANT, Charles-Louis de, Barão de Montesquieu: Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.
WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 2 edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.