A IMPUNIDADE COMO REGRA NO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA PENAL[1]

 

 

Rafaella Costa Marques e

Victor Morais Padre Limeira[2]

 

 

Sumário: Introdução; 1 Mudança de Paradigma: do etiológico ao da reação social; 1.1 O mito da ressocialização; 2 Ideologia penal dominante; 3 O sensacionalismo midiático no Estado neoliberal; Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

Preliminarmente, explica-se como se deu essa transição da mudança de paradigma, em que o paradigma da reação social vai trazer como inovação a questão da seletividade do sistema penal. Ademais, mostra-se que a ideologia penal dominante é uma das principais responsáveis por esse “rotulamento” de criminosos. Por conseguinte, a globalização neoliberal como a principal máquina que produz o lixo para o sistema penal.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Maniqueísmo. Impunidade. Seletividade. Cárcere.

 

Introdução

 

O sistema penal está fadado ao fracasso, as conflitantes metas “punir, prevenir e regenerar” nunca alcançaram e nunca alcançarão  os fins a que se propõe. O discurso declarado do sistema penal não vem sendo cumprido, pois as práticas criminais aumentam paulatinamente e não se consegue mais ter a proteção dos bens jurídicos da sociedade. Outrossim, os indivíduos não se ressocializam e não conseguem se inserir no meio social.

O código penal é infringido diuturnamente por todos os grupos sociais, mas as pessoas que ocupam o sistema carcerário possuem sempre o mesmo estereótipo (negro, pobre, analfabeto), pois as classes sociais que possuem rendas elevadas não são postas no sistema penal, devido o seu caráter seletivo.

 

1 Mudança de paradigma: do etiológico ao da reação social

Antes predominava-se a criminologia positivista-tradicional, que tinha como principais autores Lombroso e Ferri. Segundo Vera Andrade[3], (p. 35):

A criminologia positivista é definida como uma ciência causal-explicativa da criminalidade, ou seja, que tendo por objeto a criminalidade concebida como fenômeno natural, causalmente determinado, assume a tarefa de explicar as suas causas segundo método cientifico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la.

 

Em outras palavras, esse paradigma tenta justificar a questão do crime através de fatores biológicos e psíquicos, em que acreditava-se que certas pessoas já nascem com tendência para delinqüir. O sistema penal se fundamenta nesta concepção, em que propaga-se a idéia de “periculosidade” de alguma parte da sociedade (os homens etiquetados como maus). Por conseguinte, a partir da década de sessenta, surge um novo paradigma na criminologia, que vai ser uma revolução científica no âmbito da sociologia criminal, trazendo como inovação a questão da seletividade (rotulamento). E conforme Alessandro Baratta[4] (p. 103),

Estas conotações da criminalidade incidem não só sobre os estereótipos da criminalidade, os quais, como investigações recentes têm demonstrado, influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a, desse modo, socialmente “seletiva”, mas também sobre a definição corrente de criminalidade, que o homem da rua, ignorante das estatísticas criminais, compartilha.

 

 Ou seja, o paradigma da reação social fornece respostas diferentes das antropológicas e sociológicas, pois afirma que o desvio e a criminalidade não são qualidades intrínsecas do homem como afirmava Lombroso (“criminoso nato”), há apenas uma distribuição seletiva de etiquetas para com as pessoas.

 

 

1.1 O mito da ressocialização

 

O sistema penal apresenta basicamente duas prevenções: a prevenção geral, que seria uma forma de intimidar as pessoas à não cometerem erros, do contrário, serão punidas. Contudo, sabemos que no sistema penal não se predomina a punição e sim a impunidade, portanto só quem é intimidado são as classes mais pobres (clientela do sistema penal), visto que as classes ricas sempre arrumam um jeito de burlar as leis, pois não são a real clientela do sistema penal. A segunda prevenção é a da ressocialização do etiquetado como criminoso, pois o sistema penal acha que descobriu o diagnóstico da patologia criminal e o “remédio” que cura. Não obstante, o cárcere em vez de um método ressocializador, é a consolidação de verdadeiras carreiras criminais, como nos mostra o seguinte texto[5]: “pobres, prisionizados e com o estigma da lei penal, que lhe dificulta cada vez mais a reinserção social (na realidade a própria inserção social, pois de fato nunca foram socializados), o ex-preso dificilmente fugirá de comportamentos considerados ilícitos como estratégia de sobrevivência, engrossando o circulo perverso de reincidência criminal que já atinge a cifra média de 85% no país”.

 

2 Ideologia Penal Dominante

 

O senso comum da criminalidade é construído maniqueistamente e de forma seletiva, em que o criminoso é sempre pobre, negro, analfabeto, sendo que o sistema penal defende que o crime é inerente à natureza desses indivíduos.

Segundo Vera Andrade[6], (p.29), essa construção maniqueísta vem desde quando a pessoa é criança, “tanto através da mídia e demais mecanismo de controle social informal (desde os desenhos animados e os brinquedos bélicos que reproduzem a lógica “mocinho x bandido” até a escola e particularmente as escolas de direito (formadoras do senso comum jurídico)”. Ou seja, o senso comum penal é excludente e seletivo, porquanto a impunidade se sobrepõe à punição.

Essa ideologia penal dominante se propaga também através dos controles formais (sistema penal, agências, leis penais), e principalmente através dos controles informais (mídia, escola, família, igreja).  E conforme Zaffaroni[7], (p.46), “os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinqüentes”. Portanto, o resto da população que não se insere nesses estereótipos ficam na impunidade, pois não são considerados delinqüentes e nem perigosos.

 

3 O sensacionalismo midiático no Estado neoliberal

 

Falar em globalização neoliberal significa fazer ênfase à transformação do Estado Social em Estado Penal, que vem a se concretizar com o alvorecer do século XXI. Isto posto, entende-se ser a ideologia neoliberal aquela que rege a política brasileira e mundial na contemporaneidade, assim como que a globalização é um fenômeno irreversível que tem influenciado na mudança de comportamento da sociedade como um todo e, por conseguinte, alterado drasticamente as formas de controle social, mormente o uso do Direito Penal[8].

Por tal via de recrudescimento do controle social repressivo e punitivo, todas as democracias desenvolvidas estão construindo novas prisões e incrementando as despesas destinadas às “forças da lei e da ordem”, sobretudo às forças de polícia e aos agentes penitenciários. Estão se difundindo por toda a parte, medidas para limitar a liberdade em todos os seus níveis, bom exemplo disso é o crescente e maciço uso de vídeo-vigilância nos lugares e meios de transportes públicos. O controle eletrônico é sempre mais utilizado, embora não para substituir a prisão, mas para acrescentar-se a ela. (SANTORO, 2002, p. 57-72)

O que se percebe com o exposto acima é que a globalização vem utilizando-se da indústria da segurança para a manutenção da própria segurança da população, esses meios eletrônicos são muito utilizados no século XXI como forma de garantir a paz, não por completo, porque isso não impede dos bandidos agirem, mas de certa forma, conforta as pessoas que estão a mercê do perigo.

O que se percebe é que há uma exclusão generalizada, e um maniqueísmo no estado neoliberal, os menos favorecidos acabam por incidir em condutas ilegais, sendo então estigmatizados pela pratica da violência criminal que acaba por absorver e mascarar as desigualdades sociais, ou seja, a impunidade está clara aqui como sendo definidora dos “clientes” do sistema penal.

Na visão de Galeano (1996, p.16):

No mundo sem alma que nos obriga aceitar como único mundo possível não há povos, há mercados; não há cidadãos, há consumidores; não há nações, há empresas; não há cidades, há aglomerações; não há relações humanas, há competições mercantis.

 

O que se delineia no horizonte neoliberal é um alargamento da faixa de exclusão social que se reflete através das injustiças – econômica, social, política e jurídica -, gerando pessoas indefesas, pobres, marginais, que não podem mais contar com nenhum um tipo de proteção do Estado, encontrando sua cidadania – quando encontram – apenas no banco dos réus de um processo penal. (GUIMARÃES, 2006, p. 242).

Diante dessa realidade que vem sendo moldada pelo homem vê-se que o caminho que ele tem trilhado é rumo à desagregação social patrocinada por uma explosão de violência em todos os níveis sociais.

Com essa mudança de panorama trazida com a globalização e o neoliberalismo, o cárcere sempre foi instrumento privilegiado de contenção das conseqüências geradas pelas assimetrias sociais inerentes ao mesmo, assim como um poderoso instrumento na configuração ideológica da fundamentação e legitimação do poder de punir do Estado.

Em um país como o Brasil, em que a democracia, a igualdade perante a lei – principalmente a lei penal – a cidadania e outros direitos inerentes ao respeito à dignidade humana ainda não se concretizaram, permanecendo no campo meramente formal como uma noção abstrata e, ainda assim, a poucos revelada, resta configurado um campo propício para repressão dos não-cidadãos através do Direito Penal, forma extrema de violência institucionalizada[9].

O que dá para notar é que o Brasil, sendo um país de terceiro mundo, com sua democracia vista pelo plano formal, ainda não se deu conta que a população pede socorro para que as políticas públicas de contenção da violência sejam aplicadas e não fiquem apenas escrita em um pedaço de papel, que é a Constituição, será que vai ser preciso que se chegue ao caos para que o Estado se dê conta de que a situação a cada ano que passa está mais critica? Que a população carcerária está dobrando, triplicando a cada década que passe? Precisa ser urgente uma posição do Estado brasileiro, em especial, para que a população brasileira não fique mais a mercê da violência urbana.

Segundo Bauman (2000, p.859):

Do jeito que as coisas estão, pode-se muito bem pronunciar que “o destino do direito penal pós-moderno é a reinstitucionalização da antiga dialética da poluição/purificação, com seus mecanismos sacrificais auxiliares”. Hoje, o crime já não é estigmatizado e condenado como uma ruptura da norma, mas como ameaça à segurança. [...] Podemos perceber uma tendência geral de deslocar todas as questões públicas para a área do direito penal, uma tendência a criminalizar os problemas sociais e particularmente aqueles que consideramos – ou que podem ser construídos como – capazes de afetar a segurança da pessoa, do corpo ou da propriedade.

 

 Visto toda essa insegurança que o Estado em si não é capaz de conter, existem instituições que exercem papel preponderante em tal projeto, sendo indiscutível o desempenho da mídia em tal seara, fazendo com que a sua atuação vá muito além da sua conformação social. Quanto a esse papel exercido pela mídia, nos indagamos, qual é a relação que permeia a estreita ligação entre a manutenção do poder, mídia e Direito Penal nos tempos da globalização neoliberal?

Para responder a essa questão é necessário que façamos uma revisão do papel que os meios de comunicação têm nesse processo globalizador, como sendo um meio eficaz e bastante efetivo, moldando desta forma, a opinião das massas quanto as políticas neoliberais do século XXI.

Batista (2002, p.273), adverte:

O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave de compreensão dessa especial vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legitimante. Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como ritmo sagrado de solução de conflitos.

 

A televisão acaba que funcionando como fator estruturante fundamental para o exercício do sistema penal, ou seja, a televisão, na forma dos desenhos animados, sempre trás a figura do bem lutando para exterminar o mau, e isso acaba por traçando um estereotipo do criminoso na sociedade.

Na visão de Galeano (1996, p.15),

 

Ao se apoderarem dos fetiches que oferecem existência às pessoas, cada assaltante quer ser como sua vitima. A televisão oferece o serviço completo: não apenas ensina a confundir qualidade de vida com quantidade de coisas, como oferece cotidianos cursos audiovisuais de violência, que os videogames completam. O crime é espetáculo de maior êxito da telinho.

 

A mídia se encarrega então de implantar na sociedade o sentimento de total tranqüilidade; o medo contagia a todos de tal forma que a segurança do cidadão ocupa a centralidade de suas preocupações. O medo e a insegurança tornaram-se, por via de conseqüência, o tema central do inicio do século XXI. (GUIMARÃES, 2006, p. 270).

Em países periféricos, como os da América Latina, já estão sendo implantados modelos de técnicas de vigilância e ostensividade extremamente arbitrários – tolerância zero, broken windows, segurança total, cárcere radical, supermax, entre outros -, cujo principal efeito é propagar e intensificar a violência.

Sobre as políticas de repressão máxima, Wacquant (2000ª, p. 113) esclarece que,

Esta doutrina é instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e problemas no espaço público, alimentando assim um sentimento difuso de insegurança ou mesmo simplesmente de tenaz incômodo e de inconveniência. Facilitando a amálgama com a imigração, os delinqüentes (reais ou imaginários), os sem-teto, os mendigos e outros marginais são assimilados como invasores estrangeiros, elementos alógenos que devem ser expurgados do corpo social, o que acaba trazendo resultados eleitorais positivos nos países varridos por fortes correntes xenófobas.

 

Pode-se notar dessa forma que a mídia consegue o impensável, ou seja, que os próprios setores vulneráveis ao sistema penal sejam exatamente aqueles que mais apóiam as políticas públicas de repressão desenfreada.

 

Conclusão

 

Diante do exposto, podemos concluir que não adianta criar novas leis para o sistema penal, pois há um limite estrutural para o sistema carcerário, e se fôssemos colocar todas as pessoas que cometem crimes no sistema penal, não existiriam presídios para comportá-las. A criminalidade se manifesta como o comportamento da maioria da população, e não de uma minoria “perigosa”. Por isso, só há duas soluções: puni-se todas as pessoas que cometem crimes de forma igual (inviável), ou se utiliza a lógica da seletividade.

Em suma, o direito penal, através da eficácia instrumental invertida, reproduz as desigualdades sociais, e como não consegue punir todos os indivíduos da mesma maneira, seleciona uma parte desses indivíduos, visto que a grande parte não é punida. Portanto, a impunidade é a regra no funcionamento do sistema penal.

 

Referências

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003

 

ARAUJO, Edna Del Pomo de. Vitimização carcerária: propostas e alternativas. Disponível em: < http://www.achegas.net/numero/vinte/edna_araujo_20.htm>. Acesso em 10 de maio de 2008.

 

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do Direito Penal. 3 edição. Rio de Janeiro: Revan, 1999

 

BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

 

ELBERT, Carlos Alberto. Alternativas à pena ou ao sistema penal. Discursos Sediciosos Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 3, nº 5 e 6, p. 113-119.

 

GALEANO, Eduardo. A escola do crime. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 1. nº  2, p. 15-16, 2º semestre de 1996.

 

GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Renan, 2007.

 

SANTORO, Emilio. As políticas penais na era da globalização. Direito humanos e globalização contra-hegemônicas. In: Lyra Rubens Pinto. Direitos humanos. Os desafios do séc. XXI. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 57-72.

 

ZAFFARONI, E. Raúl e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro – I. 2º edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 

WACQUANT, Loic. A globalização da tolerância zero. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 5, nº 9 e 10, p. 111-120, 1º e 2º semestres de 2000ª.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Paper elaborado à disciplina de criminologia para obtenção da segunda nota

[2] Alunos do segundo período do curso de direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB)

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 35.

[4] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do Direito Penal. 3 edição. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 103.

[5] Texto disponível em: <http://www.achegas.net/numero/vinte/edna_araujo_20.htm>. Parte deste artigo foi publicado com o título “Vitimização Carcerária: Uma visão sociológica”, no livro Vitimologia em Debate II. Rio de Janeiro: Editora Lumen  Juris Ltda, 1997. 202 págs.

 

[6] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 29.

 

[7] ZAFFARONI, E. Raúl e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro – I. 2 edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.46.

[8] Para McChesney (2002, p.7), “O neoliberalismo é o paradigma econômico e político que define nosso tempo. Ele consiste em um conjunto de políticas e processos que permitem a um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte possível da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios individuais”.

[9] Abordagem histórica sobre as influências do capitalismo no Sistema Penal Brasileiro, Batista (1990, p. 35-46)